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Editorial

A silicose (ainda) entre nós

Silicosis (still) among us

Eduardo Mello De Capitani

A silicose continua sendo a pneumoconiose mais prevalente no Brasil e no resto do mundo, principalmente nos países em desenvolvimento. Nesta edição do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Ferreira et al.(1) ressaltam esse fato epidemiológico na introdução de seu estudo sobre tomografia computadorizada de tórax na forma complicada/acelerada da doença.

A ocorrência de silicose fora do ambiente de trabalho está praticamente restrita a situações geológicas e climáticas muito específicas, de difícil controle, nenhuma delas, felizmente, encontrada em nosso meio.(2-3)
Por sua vez, a silicose como doença de etiologia ocupacional é passível de prevenção definitiva. Trata-se de uma doença com etiologia, mecanismo fisiopatogênico, relação dose-resposta e ocupações de risco bem definidos e estabelecidos ao longo dos últimos cem anos.

No entanto, sua prevalência continua elevada em certos ramos de atividade profissional, como mineração em geral, metalurgia e cerâmica de porcelana e pisos, pela dificuldade de se eliminar a exposição à poeira nesses ambientes de trabalho. Essa dificuldade está relacionada a diversos fatores interdependentes, como: baixo nível de investimento financeiro em controle ambiental dos processos de trabalho (exaustão, enclausuramento de máquinas, pesquisa de novas matérias- primas, etc.); fiscalização governamental inadequada e insuficiente; ausência de um cadastramento específico das indústrias que manipulam matérias-primas contendo sílica; desconhecimento do risco por parte dos trabalhadores, principalmente dos setores informais ou ligados a pequenas e médias empresas; não priorização do problema por parte dos sindicatos de trabalhadores; e baixa qualidade dos programas de controle médico e de saúde ocupacional praticados pelas empresas, o que leva a um baixo índice de diagnósticos precoces. Este último fator está basicamente relacionado à formação inadequada dos médicos do trabalho nesse campo específico e dos pneumologistas de modo geral.

No âmbito dos serviços de referência em Pneumologia, não são incomuns casos de silicose encaminhados como suspeitos das mais diversas doenças, pela simples falta da anamnese ocupacional prévia.
Recentemente, a Portaria 99/out-2004 do Ministério do Trabalho e Emprego proibiu, em todo o território nacional, as atividades de jateamento de areia de qualquer tipo a partir de janeiro de 2005. Trata-se de importante decisão desse Ministério num esforço conjunto, interministerial, dentro do Programa Nacional de Eliminação da Silicose (PNES), iniciado em 2002, e que tem por objetivo principal desenvolver ações em quatro grandes frentes: definição e implementação de legislações específicos; construção de banco de dados nacional sobre exposição à sílica e silicose; qualificação de recursos humanos e produção de material técnico-científico nacional de qualidade; e desenvolvimento de estudos e pesquisas específicas por ramo de atividade. O Programa Nacional de Eliminação da Silicose solicita e incentiva a participação de todos os interessados na questão, por adesão individual e institucional nos diversos projetos e subprogramas.(4)

Neste sentido de esforço conjunto de divulgação do conhecimento sobre a doença entre nós, médicos e outros profissionais da saúde, todo aporte de informações e de discussão, com relação à silicose, é sempre bem-vindo. Este é o caso do trabalho de Ferreira et al.,(1) que traz informações de casuística, na sua maioria de jateadores de areia, que reforçam os achados de tomografia computadorizada de alta resolução de tórax (TCAR) já característicos da silicose complicada com fibrose maciça (grandes opacidades). Essas características, quando evidenciadas num caso clínico específico, asseguram ao pneumologista, radiologista ou médico do trabalho o diagnóstico dessa forma de silicose, evitando investimento e riscos relacionados a procedimentos invasivos normalmente utilizados em presença de massas pulmonares.

Os autores levantam ainda a importante discussão sobre a freqüente associação dessa forma de silicose com a tuberculose, tendo em vista a alta endemicidade da infecção tuberculosa em nosso meio, aliada às alterações na defesa celular macrofágica causadas pela presença da sílica e à possível menor drenagem linfática no pulmão silicótico. Esta associação já havia sido definida no final do século XIX e continua uma realidade em nosso meio, devendo-se estar atento à sua possibilidade frente ao paciente tuberculoso e ao paciente silicótico.

Apesar de não dispormos no Brasil de dados confiáveis sobre morbidade e mortalidade por silicose, o artigo chama a atenção para a ocorrência de silicose complicada em determinados tipos de processo de trabalho e de ocupação, ressaltando a necessidade de investimentos na prevenção.

O diagnóstico de silicose é baseado na interpretação e análise da imagem radiográfica e da história ocupacional do trabalhador/paciente.(5) O exame histopatológico está limitado apenas aos casos em que a discrepância entre o resultado dessas duas análises aponta para uma possibilidade significativa de outro diagnóstico.

A radiografia simples de tórax continua sendo o instrumento de maior versatilidade e eficácia no monitoramento regular e repetido de trabalhadores expostos, tendo em vista seu baixo custo e baixa dose de radiação.(6) A nova edição da Classificação Internacional de Radiografias de Pneumoconiose da Organização Internacional do Trabalho, revisão 2000, com pequenas modificações com relação à revisão de 1980, vem ratificar a importância desse exame nos programas de controle médico de populações expostas. Ainda nesse sentido, está em curso uma investigação internacional sobre o uso da radiografia digital de tórax, e é consenso entre especialistas no assunto que a TCAR, apesar de sua maior sensibilidade em algumas situações, não deverá tornar-se exame de monitoramento, justamente por ter baixa competitividade nos dois aspectos acima levantados: custo e dose de radiação.

No entanto, no âmbito clínico e de seguimento de pacientes com silicose já diagnosticada, a tomografia computadorizada tem aspectos vantajosos que a tornam exame complementar de importância.(7-8) A TCAR tem demonstrado maior sensibilidade para o diagnóstico da presença de grandes opacidades não visualizadas à radiografia simples de tórax e avaliação de adenopatia mediastinal. Em casos limítrofes, quando a profusão da radiografia simples se encontra entre 0/1 e 1/0, a TCAR pode demonstrar presença de opacidades centrolobulares em vidro fosco cuja correlação anatomopatológica pode autorizar a formulação de diagnóstico de silicose em sua fase inicial, dentro de um contexto de história de exposição compatível e ausência de hábito tabágico recente (early silicosis, segundo a literatura de língua inglesa).

Um estudo recente, comparando achados na radiografia simples de tórax com TCAR, demonstrou correlação de 100% entre os métodos quanto à ausência de pneumoconiose (categoria 0 na radiografia simples e categoria 0 na TCAR).(8) Tendo em vista o achado de elevada freqüência de imagens de reforço da ramificação bronquiolar dicotômica centrolobular (alteração vista com maior freqüência nas TCAR analisadas), foi demonstrada a possível vantagem do método no diagnóstico precoce de fases iniciais de silicose, antes da presença de nódulos mais sólidos. Com relação à freqüência de visualização de lesões não nodulares (coalescências e grandes opacidades) demonstrou-se que a TCAR é mais sensível para acusar a presença dessas alterações. O achado de calcificação em casca de ovo na TCAR foi raro nesse estudo,(8) resultado, no entanto, concorde com a literatura, que tem descrito com mais freqüência os tipos de calcificação pontuada ou uniforme, o que difere dos achados de Ferreira et al.(1,9)

Vários trabalhos têm demonstrado a importância da padronização na leitura das TCAR visando a minorar as diferenças de achados entre leitores, principalmente quando a preocupação aponta para a profusão e a extensão das lesões. A utilização de um protocolo padronizado de leitura baseado em Bégin et al.(10) com certeza contribuiu para os elevados índices de concordância com relação ao diagnóstico de silicose entre os leitores no estudo de Antão et al.(8) Desde os anos 1990, radiologistas têm proposto protocolos padronizados para esse tipo de leitura visando a diminuir a variabilidade entre leitores e à possibilidade de comparação de estudos clínicos e epidemiológicos feitos na área, da mesma forma como tem sido feito com a radiografia simples de tórax desde 1930.(11)

Uma proposta extensa e detalhada de protocolo de leitura padronizada para TCAR em casos de pneumoconiose (contemplando expostos a sílica, poeira de carvão e asbesto), tendo como anexo um conjunto de padrões de imagens mostrando lesões características para fins de comparação em mídia digitalizada, foi recentemente publicada. Espera-se que tal proposta seja adotada quando da realização de estudos clínicos e epidemiológicos, visando a garantir a comparabilidade entre resultados.(12)

Algoritmos práticos para a indicação de TCAR em expostos à sílica estão sendo pesquisados, com o intuito de se utilizar o exame de forma rentável e racional. Um estudo recente entre mineiros de ouro de subsolo no Brasil, por exemplo, mostrou que um índice semiquantitativo de exposição, associado ao resultado da medida da capacidade vital forçada, apresentou bom poder discriminativo na indicação de TCAR.(13)

Assim, no contexto geral das atividades necessárias ao controle e eventual eliminação da silicose em nosso país, o estudo publicado nessa edição do Jornal Brasileiro de Pneumologia contribui retratando, mesmo que pontualmente, a existência de uma situação de descontrole.
Os pacientes/trabalhadores estudados apresentaram evolução clínica para formas complicadas da doença, com alto índice de associação com tuberculose pulmonar. O estudo evidencia também, mesmo que de forma indireta, a existência de ambientes de trabalho que expõem trabalhadores a altas concentrações de sílica livre, reforçando a necessidade de investimento em prevenção.

REFERÊNCIAS

1. Ferreira A, Moreira V, Ricardo H, Coutinho R, Gabetto J, Marchiori E. Fibrose maciça progressiva em trabalhadores expostos à sílica - Achados na tomografia computadorizada de alta resolução. J Bras Pneumol. 2006;32(6)523-8.
2. Saiyed HN, Sharma YK, Sadhu HG, Norboo T, Patel PD, Patel TS, et al. Non-occupational pneumoconiosis at high altitude villages in central Ladakh. Br J Ind Med. 1991;48(12):825-9. Comment in: Br J Ind Med. 1992;49(6):452-3.
3. Norboo T, Angchuk PT, Yahya M, Kamat SR, Pooley FD, Corrin B, et al. Silicosis in a Himalayan village population: role of environmental dust. Thorax. 1991; 46(5): 341-3. Erratum in: Thorax. 1991;46(7):544.
4. Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. FUNDACENTRO. Programa Nacional de Eliminação da Silicose. PNES.[texto na Internet]. Brasília; 2003. [citado Jul 18]. Disponível em: http://www.fundacentro.gov.br/CTN/detalhesprograma.asp D=CTN&cod=13
5. Algranti E, De Capitani E, Carneiro A, Saldiva P. Patologia respiratória relacionada com o trabalho. In: Mendes R, editor. Patologia do trabalho. 2a ed. São Paulo: Atheneu; 2003. p. 1329-98.
6. Occupational Safety and Health. Guidelines for the use of the ILO International Classification of Radiographs of Pneumoconioses. 2000 ed. rev. Geneva: International Labour Organization; 2002.
7. Webb W, Muller N, Naidich D. High-Resolution CT of the Lung. 3rd ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2001.
8. Antão VC, Pinheiro GA, Terra-Filho M, Kavakama J, Muller NL. High-resolution CT in silicosis: correlation with radiographic findings and functional impairment. J Comput Assist Tomogr. 2005;29(3):350-6.
9. Ooi CG, Khong PL, Cheng RS, Tan B, Tsang F, Lee I, et al. The relationship between mediastinal lymph node attenuation with parenchymal lung parameters in silicosis. Int J Tuberc Lung Dis. 2003;7(12):1199-206.
10. Begin R, Ostiguy G, Fillion R, Colman N. Computed tomography scan in the early detection of silicosis. Am Rev Respir Dis. 1991;144(3):697-705.
11. Jacobsen M. The international labour office classification: use and misuse. Ann N Y Acad Sci. 1991;643(1):100-7.
12. Kusaka Y, Hering K, Parker J. International classification of HRCT for occupational and environmental respiratory diseases. Tokyo: Springer-Verlag; 2005.
13. Carneiro A. A tomografia computadorizada de alta resolução de tórax em casos borderline de silicose: quando indicá-la? [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2006.


Eduardo Mello De Capitani
Professor da Disciplina de Pneumologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - Campinas (SP) Brasil.



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