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Hipercoagulabilidade e câncer de pulmão

Hypercoagulability and lung cancer

Felipe Costa de Andrade Marinho, Teresa Yae Takagaki

ABSTRACT

The relationship between cancer and coagulopathy was suggested by Trousseau nearly 150 years ago. Later, it became more evident that oncologic patients are at a higher risk of experiencing thromboembolic events. This can be due to activation of the coagulation system either by neoplastic cells or by prescribed therapies (chemotherapy or surgical procedures). In fact, these events can constitute the first manifestation of cancer, and their recurrence, despite efficient anticoagulation, has been described. The coagulation system is normally activated in order to provide healing. In the presence of neoplasms, this complex system is activated as a response to multiple stimuli and seems to contribute to cancer progression. Activation of the coagulation system has a greater effect on metastatic foci than on the primary tumor. However, most cancer victims die from complications caused by metastasis, which underscores the importance of this theme. In this area, various mechanisms have been described, creating promising perspectives for future treatments. The current success in using low-molecular-weight heparins against small cell lung cancer is encouraging. Although the knowledge of those mechanisms is relatively incipient, many basic research and clinical studies are underway.

Keywords: Lung neoplasms; Thrombophilia.

RESUMO

A relação entre câncer e alteração na coagulação já havia sido sugerida há quase 150 anos por Trousseau e, subseqüentemente, ficou claro o maior risco que os pacientes oncológicos têm de desenvolverem fenômenos tromboembólicos. Isto pode ser conseqüência da ativação do sistema de coagulação pelas células neoplásicas ou pelas terapias empregadas (quimioterapias e cirurgias). Tais fenômenos podem, ainda, ser a primeira manifestação do câncer e a sua recorrência, mesmo com anticoagulação adequada, foi descrita. O sistema de coagulação é ativado, normalmente, com finalidade reparativa. Na presença de neoplasias, este complexo sistema está atuante frente a variados estímulos e parece contribuir para a progressão tumoral. Este efeito é mais importante para os focos metastáticos que para o próprio tumor primário. Contudo, a maior parte das vítimas de neoplasias morre das complicações das metástases, revelando a importância deste tema. Nesta área, vários mecanismos já são conhecidos e geram interessantes perspectivas para tratamentos futuros. Atualmente, o sucesso obtido com as heparinas de baixo peso molecular no carcinoma de pequenas células de pulmão é animador. Embora o conhecimento sobre esses mecanismos sejam relativamente recentes, os campos de pesquisa e tratamento estão amplamente abertos.

Palavras-chave: Neoplasias pulmonares; Trombofilia.

Introdução

O câncer de pulmão é o tumor com maior impacto em mortalidade, e ainda em ascenção, no mundo inteiro.(1,2) No Brasil, o câncer de pulmão é responsável por 12% das mortes por câncer nos últimos 30 anos.(1) Apesar do problema crescente, seu tratamento pouco evoluiu desde a consagração dos esquemas baseados em platina na década de 1980. As curvas de sobrevida parecem não mudar significativamente apesar de novos quimioterápicos, terapias-alvo, radioterapia conformacional, adjuvância e neo-adjuvância. O maior conhecimento sobre a patogenia e a patofisiologia da doença pode sugerir novas terapias ou facilitar o entendimento do insucesso de outras. Neste contexto, a relação destas células doentes com os tecidos sãos e seus sistemas surge como área promissora, talvez sem a pretensão de definir a cura para uma doença que depende de múltiplas variáveis, mas com a perspectiva de melhorar o controle local ou da disseminação das neoplasias.

A relação entre câncer e alteração na coagulação já havia sido sugerida há quase 150 anos por Trousseau(3); posteriormente, ficou claro o maior risco que os pacientes oncológicos têm de desenvolverem fenômenos tromboembólicos. Isto pode ser conseqüência da ativação do sistema de coagulação pelas células neoplásicas ou pelas terapias empregadas (quimioterapias e cirurgias). Tais fenômenos podem, ainda, ser a primeira manifestação do câncer e a sua recorrência, mesmo com anticoagulação adequada, já foi descrita.(4)

No entanto, estes fenômenos são efeitos paraneoplásicos, representando apenas a parte visível deste binômio. Os conhecimentos atuais nos revelam que as células tumorais podem utilizar estes mecanismos para promover a progressão da doença e garantir o sucesso do clone.

O sucesso obtido, principalmente com as heparinas de baixo peso molecular no carcinoma de pequenas células de pulmão, é animador, embora o conhecimento sobre esses mecanismos sejam relativamente recentes e os campos de pesquisa e tratamento estejam amplamente abertos.

Patogênese

O sistema de coagulação é fundamental para a homeostase. Evita a perda sangüínea, inicia a cicatrização e o remodelamento tecidual, além de orquestrar a proliferação, migração, síntese e secreção celulares. Em células normais, este complexo sistema é ativado secundariamente a diversas agressões químicas ou físicas e duas vias principais são acionadas. A primeira pela ação de substâncias pró-coagulantes (como o fator tecidual) e a segunda através da expressão de urokinase-type plasminogen activator e tissue-type plasminogen activator (uPA e tPA, respectivamente, ativador do plasminogênio tipos uroquinase e tecidual) que, ativando o plasminogênio, coordena a proliferação celular e o remodelamento tecidual.(5)

A patogênese da interação das células neoplásicas com o sistema de coagulação é complexa e não totalmente esclarecida, mas é caracterizada por um desequilíbrio entre fatores pró-coagulantes e ­anticoagulantes. De forma geral, a resposta do hospedeiro à neoplasia apresenta-se com inflamação, produção de paraproteínas, necrose e desordens hemodinâmicas como fatores implicados. Fatores externos a este sistema, como quimioterapias, cirurgias e cateteres centrais, também contribuem para gerar o estado pró-trombótico. Ademais, recentes avanços bioquímicos na biologia molecular e celular promoveram um melhor entendimento sobre o assunto e revelaram a ativação direta ou indireta da cascata de coagulação por substâncias liberadas pelas células oncológicas (Figura 1).



Anormalidades na coagulação

Mais de 50% dos pacientes com neoplasia e 90% daqueles que possuem metástases têm alteração na coagulação. Com a ativação do sistema de coagulação, com geração de trombina, formação e deposição de fibrina nos vasos sangüíneos, gera-se um processo de coagulação intravascular disseminada (CID), parcialmente controlado pelo sistema fibrinolítico.

Níveis elevados de fibrinopeptídeo A (fragmento do fibrinogênio quando quebrado pela trombina), fragmentos de trombina e complexos trombina-antitrombina são observados na grande maioria dos pacientes com câncer. Geralmente as alterações laboratoriais mais encontradas são o alargamento discreto do tempo de protrombina e do tempo de tromboplastina parcial, assim como níveis aumentados de produtos de degradação da fibrina, incluindo o dímero D. Isto demonstra uma atividade aumentada do sistema fibrinolítico. Além disso, os níveis de fibrinogênio também se mostram elevados refletindo um estado de CID compensado. Cerca de 30% dos pacientes ainda têm aumentos na plaquetometria e na atividade plaquetária.

A inibição da fibrinólise, seja por diminuição das proteases fibrinolíticas (uPA, tPA), seja por aumento dos seus fatores inibidores, tais como plasminogen activator inhibitor 1 (PAI-1, inibidor de ativação do plasminogênio tipo 1), já foi reportada em diversos tipos tumorais.(6) Contudo, alguns tipos de malignidade, como a leucemia promielocítica e alguns casos de neoplasia de próstata disseminada, ativam exageradamente o sistema fibrinolítico, via uPA e tPA, gerando quadros graves de sangramentos.

Algumas alterações laboratoriais podem ser bastante sensíveis para a detecção de muitas dessas anormalidades, todavia sem estabelecer uma clara relação entre o risco de trombose e a indicação de anticoagulantes a longo prazo.(7)

Mecanismos pró-trombóticos das células malignas

Fatores pró-coagulantes

As células tumorais produzem fatores pró-­coagulantes; os mais estudados e implicados são o fator tecidual e o pró-coagulante oncológico.(6-8)

O fator tecidual forma um complexo com o fator VII, a fim de ativar os fatores X e XI da cascata de coagulação, sendo seu principal ativador. A via final deste processo é a transformação da protrombina em trombina. Normalmente, o fator tecidual não é expresso por células endoteliais saudáveis mas pode ser induzido por estímulo inflamatório - como por citocinas, como o fator de necrose tumoral alfa e a interleucina-1 beta.(7)
Já em células malignas, ele é expresso constitutivamente, como em alguns linfomas, leucemias e adenocarcinomas. Monócitos e macrófagos também podem ser ativados através dos receptores nas células tumorais e passam a expressar fator tecidual.(6)

O pró-coagulante oncológico é uma protease dependente da vitamina K encontrada em extratos de alguns tipos de neoplasias: sarcoma, neuroblastoma e melanomas, assim como em tumores de pulmão, mama, rim, cólon, vagina e tumores hematológicos. Ele pode ativar o fator X independentemente do fator VII e, apesar de não ser encontrado em células normais, seu uso não ficou claro como marcador tumoral ou como indicativo de desenvolvimento de tromboses. Exceção se faz à leucemia pró-mielocítica, na qual sua presença em blastos é preditor de transformação maligna e também de resposta ao ácido trans-retinóico.(6)

A mucina produzida por carcinomas é outro agente pró-coagulante potente que pode ativar a protrombina em trombina diretamente, quando lançada na circulação.(6)

Modulação do sistema fibrinolítico/anticoagulante

A trombose pode ser gerada também por inibição do sistema anticoagulante ou do sistema fibrinolítico endógenos. Os ativadores de plasminogênio fazem com que o plasminogênio seja transformado em plasmina e esta lisa a fibrina formada no processo de coagulação. O PAI-1, principal inibidor desta via, é geralmente produzido por plaquetas e pelo endotélio, porém pode ser produzido por algumas células tumorais. Adicionalmente, a angiostatina, produto do plasminogênio, inibiria a angiogênese, evitando a progressão tumoral. Desta maneira, a produção tumoral de fatores inibidores do sistema fibrinolítico (PAI-1, por exemplo) tem papel na hipercoagulabilidade e pode contribuir para a angiogênese tumoral.(6)

As células tumorais podem ainda expressar proteínas reguladoras do sistema fibrinolítico, como o uPA, tPA e seus receptores.(5,9) A modulação desta via interfere no remodelamento tecidual e na proliferação tecidual.(5)

A proteína C (PC) e a antitrombina III (ATIII) são os principais fatores do sistema anticoagulante. A PC é ativada através da ligação da trombina com a trombomodulina, um co-fator de membrana da PC, e interage com a cascata de coagulação através da inibição dos fatores Va, VIIIa e PAI-1. A ATIII inibe proteases da coagulação, incluindo a trombina, e outros fatores como o Xa. Os níveis séricos da PC e ATIII estão diminuídos na CID decorrente de neoplasia, bem como sua produção hepática em doença metastática. Entretanto, e infelizmente, seus níveis não se correlacionam com o desenvolvimento de fenômenos trombóticos.(6)

Ativação celular

As plaquetas são particularmente afetadas na presença de neoplasias: até 30% dos pacientes apresentam aumentos na plaquetometria e 11% apresentam diminuição.(10) Também já foi demonstrado que as plaquetas agregam-se in vitro na presença de células neoplásicas e ocorre plaquetopenia quando da infusão dessas células in vivo.(11) A ativação de plaquetas pode ser mediada tanto diretamente pelo contato célula-célula, quanto por liberação de alguns fatores como adenosina difosfato, trombina, outras proteases ou interleucinas. Plaquetas ativadas têm maior poder adesivo e interagem com outras células como leucócitos, células endoteliais ou células tumorais.(12). Êmbolos tumorais usualmente são envoltos em uma rede de fibrina e plaquetas que contribuem para a adesão endotelial. Esse trombo tumoral, uma vez aderido ao endotélio, leva à lesão e, conseqüente, à liberação do fator de permeabilidade vascular, além de perda da inibição da agregação plaquetária, anti­coagulação e vasodilatação locais.(6)

A resposta fisiológica, mediada por macrófagos e células T ativadas por antígenos tumorais e substâncias pró-coagulantes lançadas na circulação, gera a liberação de potentes mediadores inflamatórios, como a interleucina-1 beta e fator de necrose tumoral alfa.(6) Estas citocinas podem induzir a expressão de fator tecidual (inclusive no endotélio, em macrófagos e células tumorais), ativar plaquetas e diminuir a trombomodulina (e, por consequência, a via anticoagulante da PC).(6,7)
Finalmente, a via do PAI-1 é estimulada e a via da PC, inibida. Todas estas modificações contribuem para a promoção da coagulação, em detrimento dos sistemas anticoagulante e fibrinolítico.(6)

Outra citocina derivada destas células, vascular endothelial growth factor (VEGF, fator de crescimento endotelial vascular), pode ser produzida por células malignas, mas também aumenta em decorrência de estímulo do fator tecidual e, retroalimentando o sistema, também o induz nas células endoteliais de permeio. Isto sugere a participação do fator tecidual na neovascularização do tumor.(6,7)

Além de promoverem alterações na balança trombose-anticoagulação, tais citocinas aumentam a expressão de moléculas de adesão nas células endoteliais, facilitando a interação e a adesão de plaquetas e leucócitos, o que promove a ativação local da coagulação e a formação de fibrina.

Interação celular

As células tumorais, direta ou indiretamente, ativam monócitos, que expressam o fator tecidual nas suas membranas. Leucócitos polimorfonucleares também são ativados, liberando proteases e radicais reativos de oxigênio. É mais um mecanismo de lesão e ativação das células endoteliais, promovendo o estado de hipercoagulabilidade.(7)

A indução de moléculas de adesão em células endoteliais, leucócitos e plaquetas fornece o substrato para a interação destas com as células tumorais. Tal fato ganha importância, principalmente, na disseminação hematogênica da doença.

As células tumorais ligadas ao endotélio geram ativação da coagulação local com formação de trombo, adesão e ativação de plaquetas e leucócitos (por meio de citocinas liberadas), conseguindo atravessar a parede dos vasos. A formação do trombo permite todo esse processo e os leucócitos ajudam na invasão da parede vascular (Figura 2).(7)



Progressão tumoral

Diversos braços desse sistema contribuem para a progressão da doença neoplásica, conforme visto acima. A interação celular, a indução de moléculas de adesão, a neovascularização, interleucinas e a ativação celular (incluindo células de defesa como macrófagos e leucócitos polimorfonucleares) são todos pontos de potencial auxílio para a progressão da neoplasia.

A ativação da cascata da coagulação culmina na geração de trombina e conseqüente formação de fibrina. Estas duas substâncias têm efeitos que auxiliam no crescimento e disseminação neoplásicos.(7) A fibrina especialmente tem capacidade para modular a expressão do VEGF nas células neoplásicas e também no endotélio normal. Esse efeito é particularmente importante para a formação de novos vasos sangüíneos (Figura 3).(13)



Os diferentes tumores têm respostas também diferentes quanto ao mecanismo de ativação do sistema de coagulação, alguns via fator tecidual e outros via sistema fibrinolítico (uPA). No entanto, estes tumores podem dividir vias comuns, como interações com plaquetas, dependência de fatores de crescimento e vias de neovascularização. Isto faz com que muitos pacientes possam beneficiar-se dos efeitos das drogas anticoagulantes.(5) No grande braço do sistema fibrinolítico, o inibidor PAI-1 estimula a angiogênese, regulando a proteólise mediada por plasmina.(14) Além disso, diversas enzimas proteolíticas como colagenases, metaloproteinases e proteases, incluindo a plasmina, estão envolvidas na invasão tumoral,(14) pois são fundamentais na quebra da membrana basal e da matriz extracelular. Neste campo, matrix metalloproteinase 2 (MMP-2, metaloproteinase de matriz 2) e matrix metalloproteinase 9 (MMP-9, metaloproteinase de matriz 9) têm um papel de destaque e também agem na liberação de fatores de crescimento locais e na modulação de moléculas de superfície.(15,16) A expressão da MMP-9 em adenocarcinomas em estágio inicial tem valor prognóstico.(17)

Todavia, determinar a real importância desse sistema in situ não é tão simples como as dosagens séricas ou as reações enzimáticas que podem ser realizadas no plasma. Sondas de imunohistoquímica contra fator Xa e trombina, além de anticorpos monoclonais contra o complexo trombina-antitrombina ou fibrina (fibrinogênio ativo por clivagem da trombina), são metodologias factíveis em estudos. Técnicas similares podem detectar ativação da via uPA.(5,14) Estas técnicas experimentais podem definir, nos diversos tipos tumorais, quais são as vias da coagulação inicialmente implicadas.(18)

Condições associadas

Imobilização

A imobilização é um dos maiores fatores de risco neste grupo de doentes, especialmente durante internações prolongadas. Em uma série de autópsias, embolia pulmonar foi encontrada em até 14% dos óbitos hospitalares de indivíduos com câncer, em contraste aos 8% no grupo sem neoplasia.(19)

Quimioterapia

O uso de agentes citotóxicos pode ter poder trombogênico por múltiplos mecanismos, sendo que a lesão endotelial direta e a liberação de produtos pró-coagulantes e citocinas por lise celular são os principais. Doentes que receberam 5-fluoracil em associação ou não com cisplatina apresentaram queda dos níveis de proteína S e PC, assim como aumento do PAI-1.(6,20) Em um estudo retrospectivo com pacientes submetidos à quimioterapia, a taxa de complicações tromboembólicas nos primeiros 3 meses foi inesperadamente alta, gerando uma taxa anual de 11%.(21)

Cirurgia e radioterapia

A incidência de trombose venosa profunda em pacientes submetidos à cirurgia sem tromboprofilaxia é duas vezes maior no grupo com neoplasias que no grupo livre desta doença.(22) Ela ainda é maior mesmo com a anticoagulação profilática, uma vez que outros fatores se somam, incluindo o quadro clínico mais grave, performance status mais baixo, imobilização, etc. O risco persiste se o paciente recebe alta sem a devida profilaxia medicamentosa.(23)

Apesar da crença existente de que a radioterapia esteja implicada em maior risco de fenômenos trombóticos, nenhum estudo conseguiu comprovar esta relação.(7)

Cateteres venosos centrais

Cateteres de longa duração são valiosos no manejo dos pacientes com neoplasias, porém estão associados a um risco maior de trombose venosa em membros superiores. Sem o uso de profilaxia, o risco desta complicação pode chegar a incríveis 37%.(24) No entanto, dados discrepantes com menores incidências são encontrados atualmente. Isto se deve, provavelmente, a cateteres mais modernos e ao desenvolvimento de procedimentos menos invasivos.(7)

Efeito dos anticoagulantes no câncer

Estudos com drogas anticoagulantes demonstram o aumento da sobrevida de pacientes com neoplasia, especialmente no subgrupo câncer de pulmão. Isto fomenta a crença da participação da coagulação na progressão desta doença.(5) Uma metanálise, publicada em 2000, dos estudos comparando heparina de baixo peso molecular (HBPM) e heparina não fracionada (HNF) para o tratamento de trombose venosa profunda revelou uma tendência de melhor sobrevida para HBPM. A análise de subgrupos em 5 de 9 trabalhos revelou que os pacientes com neoplasia foram os responsáveis por esta tendência.(25)

As drogas anticoagulantes têm efeitos diretos sobre os produtos da ativação do sistema, a trombina e a fibrina. Estas duas substâncias estão aumentadas por conseqüência direta ou indireta do tumor e, em contrapartida, estimulam o seu crescimento. A simples quebra deste círculo já explica o potencial benéfico destas drogas. A trombina é uma protease com potente capacidade angiogênica nas células endoteliais e também atua como fator de crescimento para as células tumorais. Já a fibrina induz a expressão endotelial de fator tecidual e da interleucina-8, que têm propriedades angiogênicas. A fibrina também serve de matriz para a migração das células neoplásicas para fora da circulação e serve como pano-de-fundo para a confecção dos novos vasos sangüíneos, necessários para nutrição tumoral. Além destas propriedades, a fibrina forma uma camada protetora nas células oncológicas, dificultando assim o ataque do sistema imune, gerando resistência à quimioterapia e auxiliando o ancoramento na parede vascular.(7)

As heparinas formam um grupo especial desta classe por terem propriedades específicas antitumorais. Primeiramente, as heparinas impedem a ligação das células malignas com plaquetas, leucócitos e endotélio, já que se ligam a moléculas de adesão, como a P-selectina ou integrinas. Estas drogas também inibem uma enzima tumoral chamada heparanase, que facilita a penetração maligna na membrana basal vascular, pois quebra a barreira polissacáride. A heparanase também facilita a liberação de fatores de crescimento vascular no microambiente tumoral que estão ligados ao heparan-sulfato na matriz extracelular. As heparinas ainda podem ligar-se diretamente aos receptores endoteliais e interferir na ação de fatores de crescimento. Finalmente, elas exercem ação reguladora no sistema imune, modulando a ação de diversas citocinas envolvidas na migração de leucócitos e na destruição de câncer (Figura 4).(7) As HBPM ligam-se de forma mais intensa a alguns receptores de fatores de crescimento do que as HNF,(26) assim como inibem outros, como o VEGF e o fator de crescimento fibroblástico tipo beta.(27) Por estas vantagens, além de apresentarem melhores propriedades farmacocinéticas e menor toxicidade frente às HNF, as HBPM são atualmente preferidas em estudos clínicos.(5)



Como já visto, vias diferentes de ativação do sistema de coagulação podem ser deflagradas por diversos tipos tumorais. Provavelmente isto explica, em parte, a resposta heterogênea dos tumores aos tratamentos com anticoagulantes e o melhor conhecimento dessa área pode sugerir melhores abordagens de acordo com o tipo histológico. Os tumores de mama, próstata, cólon e pulmão (não-pequenas células), por exemplo, expressam uPA e seu respectivo receptor, mas não uma via geradora de trombina.(5,28) A aprotinina, um antifibrinolítico, inibindo a formação de plasmina (via uPA), parece ter efeito benéfico na progressão tumoral em casos submetidos à ressecção de metástases hepáticas de câncer de cólon.(29) Este tipo de câncer não responde ao uso de antagonistas de vitamina K.(30) Já o carcinoma pulmonar tipo pequenas células responde às terapias inibidoras da coagulação, como varfarin ou heparinas.(30,31)

Por fim, estudos clínicos mostraram que terapias relativamente curtas com estas drogas, tais como, por exemplo, aprotinina ou HBPM, melhoram o desfecho da neoplasia de meses a anos depois, talvez por induzir uma reprogramação nas células malignas.(5,29)

Uso de anticoagulantes no câncer de pulmão

O primeiro trabalho científico a demonstrar um real benefício dos anticoagulantes no câncer de pulmão de pequenas células foi publicado em 1981 por Zacharski com o uso de varfarin.(32) Esse resultado foi comprovado por um estudo randomizado com 328 pacientes.(33) Em uma recente metanálise, que avaliou a eficácia e segurança do uso de anti­coagulantes (varfarin ou ximelagatran) em pacientes com neoplasia, foram analisados 5 estudos e concluiu-se que atualmente o único grupo que se beneficia desta estratégia é o de pacientes com câncer de pulmão de pequenas células. Este benefício foi devido ao grupo com doença mais avançada e o impacto foi principalmente na sobrevida após 6 meses da introdução da medicação. Houve aumento do risco de sangramentos graves em todos os grupos.(34) Metanálises anteriores sobre o uso de anticoagulantes para trombose venosa profunda e/ou tromboembolismo pulmonar já revelaram que os pacientes com câncer beneficiam-se do uso de anticoagulantes e a HBPM traz um benefício maior que a HNF.(25) Diante dos referidos dados, as heparinas tornaram-se mais estudadas que os anticoagulantes orais e, aparentemente, com melhores resultados.

Em 2004, em um estudo, 385 pacientes com tumores sólidos em estágio avançado, porém sem evidência de tromboembolismo, foram randomizados para o uso de doses profiláticas de HBPM (dalteparina) ou placebo por 12 meses. A sobrevida global não foi diferente entre os grupos; contudo, no subgrupo de pacientes com melhor prognóstico (sobreviventes por mais de 17 meses após a randomização), houve diferença estatisticamente significativa a favor dos pacientes que receberam heparina, na sobrevida aos 2 e 3 anos.(35) Em outro estudo,(36) comparou-se o uso de doses terapêuticas de HBPM (nadroparina) por 2 semanas, seguidas por 4 semanas com meia dose, num grupo de 302 pacientes com tumor sólido, também sem evidência de doença tromboembólica. Houve redução na mortalidade aos 12 e 24 meses (12 e 10%, respectivamente), com ganho na sobrevida geral, passando de 6,6 para 8 meses. Mais uma vez, o benefício foi maior no subgrupo de pacientes com melhor prognóstico à entrada do estudo (expectativa de vida maior que 6 meses), que obtiveram uma sobrevida média de 15,4 meses frente a 9,4 meses do grupo controle.

Mais direcionado para o câncer de pulmão, em 2004 foi publicado um ensaio clínico, duplo-cego, randomizado e prospectivo.(31) Neste estudo analisou-se o uso, por 18 semanas, de dalteparina (HBPM) associada ao esquema de quimioterapia em 84 pacientes com câncer de pulmão de pequenas células. O ganho em sobrevida, em média, foi de 5 meses (13 meses de sobrevida média no grupo HBPM + quimioterapia vs. 8 meses no grupo quimioterapia). Nesse e nos outros estudos com heparinas, o risco de sangramento grave não foi significativamente maior.(31,35,36)

Perspectivas

As heparinas formam um grupo heterogêneo de moléculas polissacárides de diferentes tamanhos. As suas funções em bloquear alguns pontos na hipercoagulabilidade, além de outros mecanismos na progressão tumoral, como fatores de crescimento ou angiogênese, parecem vir de algumas moléculas específicas da sua composição. Em um estudo,(37) demonstrou-se elegantemente que as moléculas com 8 (octassacárides) e 10 (decassacárides) resíduos glicídicos conseguem impedir a angiogênese, em modelo animal, tanto induzida por fatores de crescimento (fator de crescimento fibroblástico 2), quanto em modelos mais complexos com células tumorais de carcinoma de pulmão e de endométrio. Essas moléculas não trazem o potencial de anticoagulação ou plaquetopenia das outras frações maiores das heparinas, tornando-as promissores alvos de terapias futuras em ensaios clínicos.

A terapia genética pode trazer grandes novidades para o controle de alguns mecanismos celulares tumorais que geram o estado de hipercoagulabilidade. O tratamento ex vivo de células tumorais de câncer de pulmão com adenovírus que impede a expressão do receptor do uPA mostrou diminuição da invasibilidade tumoral e do potencial de metástases neste grupo de células.(38) O mesmo grupo de pesquisadores, mais recentemente, demonstrou um benefício superior ao se bloquear dois pontos deste sistema: o uso de adenovírus modificado geneticamente que infecta e impede a expressão genética nas células tumorais do receptor do uPA e da MMP-9. Esta estratégia revelou, também em modelo animal de câncer de pulmão, diminuição da invasibilidade in vitro, mobilidade celular in vitro, angiogênese dependente do tumor in vitro, além de inibir o crescimento tumoral e potencial metastático in vivo, de forma que não foram detectadas metástases nos animais que receberam o referido vírus.(15) A inibição da MMP-2 em outro estudo com metodologia similar também revelou o potencial terapêutico desse bloqueio específico na progressão tumoral do câncer de pulmão.(39)

Os benefícios do bloqueio deste braço da coagulação e progressão tumoral têm incentivado o surgimento de diversos trabalhos, que até então não revelaram resultados expressivos. Alguns dos inibidores das metaloproteinases estudados em câncer de pulmão não-pequenas células são: batimastat (BB-94), marimastat (BB-2516), prinomastat (AG-3340) e BMS-275291.(40-42) Tais resultados não foram animadores, provalvelmente porque algumas metaloproteinases podem aparecer num mecanismo de defesa contra a gênese tumoral.(15,41,43) Enfim, outros pontos podem ser bloqueados de forma mais específica como o fator tecidual (inibidores químicos, anticorpos monoclonais), fator Xa, trombina (hirudina, ximelagatran), alguns receptores de membrana das plaquetas (anti-glycoprotein IIb-IIIa), inibidores da via do fator tecidual, entre outros.(5) Os novos conhecimentos permitirão tratamentos mais direcionados para que obtenhamos respostas mais concretas e sólidas.

Conclusão

É complexa a ligação do nosso sistema de reparo tecidual (sistema de coagulação) com as células malignas. Diversos fatores externos (terapias empregadas, imobilização, cateteres, entre outros) somam-se à ativação direta (fator tecidual ou pró-coagulante oncológico) ou indireta (citocinas, inflamação, aumento de adesão, ativação e interação celulares) daquele sistema pelas células tumorais. Os novos conhecimentos também apontam para fatores não menos importantes, como variáveis do micro-ambiente tumoral (matriz extracelular, metaloproteinases, proteases, fatores de crescimento, neoformação vascular) e modulação do sistema fibrinolítico. Esta relação vai além dos fenômenos tromboembólicos e é notável o vínculo com a progressão maligna. De certa forma, o câncer pode ser visto como uma fase sólida desta coagulopatia,(5) que sucinta uma resposta fisiológica sem, no entanto, haver uma queda nesse estímulo ou correção do dano/lesão inicial.

As drogas anticoagulantes se encaixam neste contexto com a promessa de minimizar os efeitos pró-oncológicos deste relacionamento, não só por inibir produtos diretos, tais como a trombina e fibrina, mas também por dificultar a penetração nos tecidos e a angiogênese, incluindo o estímulo de produtos tróficos locais. Até então, as heparinas, particularmente as HBPM, acumulam melhores perfis de ação e de segurança.

Recentes estudos revelam o promissor benefício das HBPM na evolução dos tumores sólidos,(35,36) especialmente no câncer de pulmão de pequenas células.(31) Neste tipo histológico, vantagens já haviam sido alcançadas com varfarin desde a década de 1980.(32-34) Os poucos estudos sólidos sobre o uso de HBPM, sendo que nenhum com um grande número de pacientes, inviabiliza, no momento, sua prescrição indiscriminada.

De maneira mais experimental, os focos de pesquisas se viram para o microambiente tumoral, as metaloproteinases e a modulação do sistema fibrinolítico. Com base nas novas descobertas fisiopatológicas, intervenções neste âmbito podem gerar benefícios, impedindo a progressão tumoral e disseminação à distância.

O sucesso das metástases depende mais destas complicadas ligações que o desenvolvimento tumoral em si, mas a maioria dos óbitos por câncer se deve às complicações metastáticas e não ao tumor primário. Isto encoraja o aprofundamento neste campo de pesquisa e com o desenvolvimento de drogas com muito menor potencial tóxico que os atuais quimioterápicos. A terapia genética surge como meio de promover um tratamento guiado, com a finalidade de impedir múltiplos mecanismos de ativação da coagulação pelas células oncológicas.

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Trabalho realizado no Serviço de Pneumologia, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.
1. Médico Residente da Disciplina de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.
2. Supervisora da Disciplina de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.
Endereço para correspondência: Felipe Costa de Andrade Marinho. Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44, bloco II, 5º andar, sala 01, CEP 05403-000, São Paulo, SP, Brasil.
Tel 11 3069-6366. E-mail: fca.marinho@gmail.com
Recebido para publicação em 29/11/2007. Aprovado, após revisão, em 7/1/2008.

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