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Artigo Original

Modelo experimental de perfusão pulmonar ex vivo em ratos: avaliação histopatológica e de apoptose celular em pulmões preservados com solução de baixo potássio dextrana vs. solução histidina-triptofano-cetoglutarato

An experimental rat model of ex vivo lung perfusion for the assessment of lungs regarding histopathological findings and apoptosis: low-potassium dextran vs. histidine-tryptophan-ketoglutarate

Edson Azevedo Simões, Paulo Francisco Guerreiro Cardoso, Paulo Manuel Pêgo-Fernandes, Mauro Canzian, Rogério Pazetti, Karina Andriguetti de Oliveira Braga, Natalia Aparecida Nepomuceno, Fabio Biscegli Jatene

ABSTRACT

Objective: To compare histopathological findings and the degree of apoptosis among rat lungs preserved with low-potassium dextran (LPD) solution, histidine-tryptophan-ketoglutarate (HTK) solution, or normal saline (NS) at two ischemia periods (6 h and 12 h) using an experimental rat model of ex vivo lung perfusion. Methods: Sixty Wistar rats were anesthetized, randomized, and submitted to antegrade perfusion via pulmonary artery with one of the preservation solutions. Following en bloc extraction, the heart-lung blocks were preserved for 6 h or 12 h at 4°C and then reperfused with homologous blood for 60 min in an ex vivo lung perfusion system. At the end of the reperfusion, fragments of the middle lobe were extracted and processed for histopathological examination. The parameters evaluated were congestion, alveolar edema, alveolar hemorrhage, inflammatory infiltrate, and interstitial infiltrate. The degree of apoptosis was assessed using the TdT-mediated dUTP nick end labeling method. Results: The histopathological examination showed that all of the lungs preserved with NS presented alveolar edema after 12 h of ischemia. There were no statistically significant differences among the groups in terms of the degree of apoptosis. Conclusions: In this study, the histopathological and apoptosis findings were similar with the use of either LPD or HTK solutions, whereas the occurrence of edema was significantly more common with the use of NS.

Keywords: : Organ preservation; Organ preservation solutions; Lung transplantation; Reperfusion injury; Apoptosis.

RESUMO

Objetivo: Comparar os achados histopatológicos e de apoptose em pulmões de ratos preservados em soluções low-potassium dextran (LPD, baixo potássio dextrana), histidine-tryptophan-ketoglutarate (HTK, histidina-triptofano-cetoglutarato) ou salina normal (SN) em 6 h e 12 h de isquemia pela utilização de um modelo experimental de perfusão pulmonar ex vivo. Métodos: Sessenta ratos Wistar foram anestesiados, randomizados e submetidos à perfusão anterógrada pela artéria pulmonar com uma das soluções preservadoras. Após a extração, os blocos cardiopulmonares foram preservados por 6 ou 12 h a 4°C, sendo então reperfundidos com sangue homólogo em um sistema de perfusão ex vivo durante 60 min. Ao final da reperfusão, fragmentos do lobo médio foram extraídos e processados para histopatologia, sendo avaliados os seguintes parâmetros: congestão, edema alveolar, hemorragia alveolar, hemorragia, infiltrado inflamatório e infiltrado intersticial. O grau de apoptose foi avaliado pelo método TdT-mediated dUTP nick end labeling. Resultados: A histopatologia demonstrou que todos os pulmões preservados com SN apresentaram edema alveolar após 12 h de isquemia. Não houve diferenças em relação ao grau de apoptose nos grupos estudados. Conclusões: No presente estudo, os achados histopatológicos e de apoptose foram semelhantes com o uso das soluções LPD e HTK, enquanto a presença de edema foi significativamente maior com o uso de SN.

Palavras-chave: Preservação de órgãos; Soluções para preservação de órgãos; Transplante de pulmão; Traumatismo por reperfusão; Apoptose.

Introdução

O transplante pulmonar constitui-se na única modalidade terapêutica definitiva para doenças pulmonares terminais em pacientes selecionados.

Ao longo de duas décadas, tem-se observado um aumento significativo no número de centros de transplante e no número de pacientes transplantados ou em lista de espera,(1) sendo que a média anual ultrapassa os 1.500 transplantes pulmonares.(2) Entretanto, a mortalidade relacionada ao transplante pulmonar permanece significativa. A disfunção do enxerto é considerada a causa mais frequente de mortalidade precoce e tem sua etiopatogenia na lesão de isquemia-reperfusão.(3,4)

A preservação do pulmão doado possui importância fundamental na sua função inicial após o transplante.(5) A presença e a gravidade da lesão de isquemia-reperfusão são influenciadas por fatores concernentes ao doador e às técnicas de preservação.(3) A lesão de isquemia-reperfusão está associada à morte celular em vários sistemas orgânicos, havendo correlação entre o grau de apoptose e a lesão de isquemia-reperfusão.(6) Durante a apoptose, uma cascata de eventos bem regulados e dependentes de energia ativa endonucleases específicas, entre elas as caspases, que são cisteinases especificamente envolvidas nas fases de iniciação e de execução do processo de apoptose.

O programa clínico de transplantes pulmonares de nosso hospital utiliza a solução low-potassium dextran (LPD, baixo potássio dextran) na preservação pulmonar. Entretanto, o seu custo e as dificuldades logísticas de sua obtenção levaram-nos a buscar alternativas logisticamente mais eficientes e com benefício clínico similar. A solução histidine-tryptophan-ketoglutarate (HTK, histidina-triptofano-cetoglutarato) tem seu uso frequente em transplantes cardíacos em nossa instituição. Assim sendo, sua utilização como única solução que atendesse ambos os programas de transplante seria desejável no intuito de facilitar e reduzir a relação custo-benefício da preservação de ambos os órgãos.

Na literatura até o momento, não há estudos experimentais em modelos ex vivo em pulmões de ratos utilizando HTK como solução de preservação, a despeito dos estudos demonstrando vantagens com sua utilização na preservação cardíaca, hepática, renal e pancreática.(7-9)

O modelo de perfusão pulmonar ex vivo para a avaliação de novas estratégias de preservação tem se mostrado eficiente e confiável em estudos de preservação pulmonar.(10) Demonstramos recentemente que, quando o uso das soluções HTK e LPD, em tempos de isquemia de 6 e 12 h, foi comparado, à exceção de um aumento de peso nos pulmões preservados por 12 h, não houve diferenças significativas nos resultados dos parâmetros fisiológicos.(11)

O presente estudo teve como objetivo avaliar as alterações histopatológicas e a presença de células apoptóticas em pulmões preservados com HTK, comparando-os com pulmões preservados em solução LPD e em salina normal (SN, soro fisiológico 0,9%) em dois períodos diferentes de isquemia hipotérmica em um modelo de perfusão pulmonar ex vivo.

Métodos

No presente estudo, foram utilizados 60 ratos Wistar machos, pesando entre 250 e 300 g. Os animais foram randomizados, e os grupos foram divididos conforme os diferentes tempos de isquemia e as soluções de perfusão utilizadas (10 ratos/grupo): grupo LPD-6 (LPD, 6 h de isquemia), grupo LPD-12 (LPD, 12 h de isquemia), grupo HTK-6 (HTK, 6 h de isquemia), grupo HTK-12 (HTK, 12 h de isquemia), grupo SN-6 (SN, 6 h de isquemia) e grupo SN-12 (SN, 12 h de isquemia). As composições das soluções de preservação estão descritas na Tabela 1. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa em animais da instituição. Após anestesiados (pentobarbital, 50 mg/kg i.p.), os animais foram traqueostomizados e conectados ao ventilador (IL2 - Isolated Perfused Rat or Guinea Pig Lung System; Harvard Apparatus, Holliston, MA, EUA) com volume corrente de 10 mL/kg, em ar ambiente, FR = 70 ciclos/min e positive end-expiratory pressure (PEEP, pressão expiratória final positiva) = 3cmH2O. Os animais foram anticoagulados (heparina,1.500 UI, via veia cava inferior). Os demais detalhes da extração e perfusão já foram descritos anteriormente.(10,12)



Conforme a randomização, foram utilizados para perfusão 20 mL de solução LPD (Perfadex®; Vitrolife, Kungsbacka, Suécia), HTK (Custodiol®; Franz Kohler Chemie GMBH, Bensheim, Alemanha) ou SN a 4°C, administradas sob pressão constante de 20 cmH2O por elevação do frasco. Ao término da perfusão, o bloco cardiopulmonar foi extraído e acondicionado a 4°C durante o tempo de isquemia pré-determinado pela randomização, sendo preparado e conectado ao sistema de perfusão ex-vivo (IL2 - Isolated Perfused Rat or Guinea Pig Lung System; Harvard Apparatus, Holliston, MA, EUA; Hugo Sachs Elektronik, Hugstetten, Alemanha). O bloco foi perfundido com sangue homólogo obtido de 3 animais anestesiados de forma similar, e o volume foi acrescido de soro fisiológico 0,9% na quantidade suficiente para obter-se hematócrito em 15-20%. A reperfusão foi realizada por canulação da artéria pulmonar/átrio esquerdo e ventilação pela traqueia durante 60 min. O circuito foi preenchido com o sangue, aquecido, recirculado no sistema por 10 min com mistura gasosa (nitrogênio 90%, dióxido de carbono 10% e fluxo de 200 mL/min) utilizando um desoxigenador de membrana (D150 MediSulfone® Hemofilter; MEDICA s.r.l. Medolla, Itália). O bloco cardiopulmonar foi perfundido (5-7 mL/min) e ventilado (volume corrente = 10 mL/kg, FR = 70 ciclos/min e PEEP = 3 cmH2O). Após 5-10 min, iniciou-se a coleta de dados, realizada em intervalos de 10 min, durante 60 min. Coletaram-se dados de hemodinâmica, mecânica ventilatória e hemogasometria, utilizando um equipamento ABL 800 (Radiometer, Copenhagen, Dinamarca). Ao término da reperfusão, fragmentos do lobo médio foram extraídos, fixados em formaldeído a 4% em solução tamponada e incluídos em blocos de parafina, sendo realizados cortes de 5 µm corados com H&E. Foi realizada uma análise qualitativa e semiquantitativa baseada na avaliação de congestão, edema alveolar, hemorragia alveolar, hemorragia intersticial, infiltrado inflamatório e infiltrado intersticial. Para a avaliação semiquantitativa de alterações, como hemorragia alveolar, hemorragia intersticial, infiltrado inflamatório intersticial e congestão, foi considerada a compartimentalização histológica, ou seja, espaços alveolares, interstício (axial, septal e periférico), leito capilar e extensão das alterações. Cada alteração (evento) foi semiquantificada separadamente, e a cada uma foi atribuído um escore de zero a três conforme a sua correspondência: evento ausente (escore 0); evento presente em menos de 33% dos compartimentos acometidos (escore 1); evento presente em 33-66% dos compartimentos acometidos (escore 2); e evento presente em mais de 66% dos compartimentos acometidos (escore 3).(13) A análise histológica foi feita por um único observador. O parâmetro "edema" foi avaliado em dois diferentes compartimentos: intersticial e broncoalveolar. Ao edema alveolar, foi atribuído um escore conforme a semiquantificação acima descrita.

A apoptose foi avaliada pelo método TdT-mediated dUTP nick end labeling (TUNEL). Os fragmentos do lobo médio foram processados de acordo com as instruções do kit In Situ Cell Death Detection (Roche Diagnostics GmbH, Mannheim, Alemanha), seguindo-se o método descrito por Gavrieli et al.(14) e Rösl.(15) Após desparafinização em xilol, as fatias foram pré-tratadas com proteinase K (20 mg/mL) em câmera úmida por 30 min à temperatura ambiente, lavadas com PBS e tratadas com 3% de peróxido de oxigênio em metanol por 30 min à temperatura ambiente. A seguir, os fragmentos foram lavados duas vezes em PBS e, após a secagem da área ao redor da amostra, foram adicionados 50 µL da mistura de reação TUNEL, sendo utilizados 5 µL da solução enzimática (tubo violeta) e 45 µL da solução marcadora (tubo azul), em cada fragmento pulmonar, seguida de incubação sob parafilme em câmara úmida a 37°C por 60 min. O ensaio é utilizado para marcar as fitas de DNA por TdT em cada fragmento. O ensaio catalisa a polimerização de nucleotídeos marcados em extremidades livres 3'-OH de uma maneira independente (reação TUNEL) por amostra. Assim, torna-se possível detectar a quebra da cadeia de DNA nos estágios iniciais da apoptose nas células pulmonares. Após o período de incubação da reação TUNEL, as lâminas foram lavadas três vezes em PBS por 2 min cada. A área ao redor do fragmento foi seca, e procedeu-se a montagem das lâminas com solução glicerina e PBS (1:1), cobertas com lamínula, protegidas da luz e imediatamente analisadas em um microscópio de fluorescência (Carl Zeiss, Oberkochen, Alemanha), pelo qual as células apoptóticas marcadas foram quantificadas em cinco campos aleatórios, no aumento de 40×. A leitura foi realizada por dois examinadores cegados para a quantificação da reação TUNEL. A seleção do campo microscópico foi aleatória, sempre em área alveolar. Cinco campos foram selecionados, tal como na prática da leitura das lâminas coradas por H&E. As células identificadas foram pontuais, e a contagem considerou o total da área selecionada.

Na análise estatística, para as variáveis paramétricas, utilizou-se ANOVA mista e teste de Bonferroni. Para dados quantitativos não paramétricos foram utilizados os testes de Kruskal-Wallis e Mann-Whitney. Para dados qualitativos, utilizou-se o teste do qui-quadrado e o teste exato de Fisher. O nível de significância foi de 5% (p < 0,05). As análises estatísticas foram executadas com o programa Statistical Package for the Social Sciences, versão 13 .0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA).

Resultados

A avaliação histopatológica não demonstrou diferenças significativas na comparação entre os grupos LPD-6, HTK-6 e SN-6, entre os grupos LPD-12, HTK-12 e SN-12, assim como entre os grupos em função dos tempos de isquemia (ou seja, LPD-6 vs. LPD-12; HTK-6 vs. HTK-12; e SN-6 vs. SN-12) em relação aos seguintes parâmetros: congestão pulmonar, hemorragia alveolar, hemorragia intersticial e infiltrado inflamatório intersticial (Tabela 2). O edema alveolar foi significativamente maior em todos os grupos após 12 h de isquemia em comparação aos grupos após 6 h de isquemia (Figura 1). A análise de distribuição de frequência de edema entre os grupos mostrou que o grupo SN-12 teve a maior proporção de edema, sendo o único grupo a apresentar edema alveolar em todos os pulmões ao final da reperfusão, e a diferença entre os grupos LPD-12, HTK-12 e SN-12 foi significativa (p = 0,007). O mesmo não ocorreu na comparação entre os grupos LPD-6, HTK-6 e SN-6 (p = 0,08). Não obstante, grupo HTK-6 apresentou 30% de edema, enquanto o grupo LPD-6 apresentou 55,6% de edema; porém, sem diferença significativa (p = 0,08; Figura 2).







Não houve diferença significativa no número de células apoptóticas entre os grupos LPD-6 e LPD-12 (p = 0,319). O mesmo ocorreu na comparação entre os grupos HTK-6 e HTK-12 (p = 0,258) e entre os grupos SN-6 e SN-12 (p = 0,226). Também não foram encontradas diferenças significativas quanto ao número de células apoptóticas entre os os grupos LPD-6, HTK-6 e SN-6 (p = 0,580), assim como entre os grupos LPD-12, HTK-12 e SN-12 (p = 0,591; Figura 3).



Discussão

O presente estudo demonstrou que as características histopatológicas foram semelhantes entre os pulmões perfundidos com solução preservadora HTK ou LPD. Esses achados estão de acordo com os dados fisiológicos do mesmo estudo, os quais foram objeto de publicação anterior. Observamos que a capacidade relativa de oxigenação e os parâmetros de mecânica ventilatória foram inferiores nos pulmões em 12 h de isquemia. Os dados fisiológicos obtidos durante o presente estudo foram publicados recentemente e demonstraram que os pulmões preservados com LPD e HTK apresentavam um desempenho funcional semelhante.(11)

A lesão de isquemia-reperfusão é um fator limitante da viabilidade dos órgãos doados, sendo implicada como um fator coadjuvante no desenvolvimento de bronquiolite obliterante.(16) O método de preservação mais utilizado permanece sendo o uso de hipotermia em conjunto com soluções de preservação.

A solução LPD foi criada há quase duas décadas,(17,18) e seus resultados experimentais têm se mostrado superiores aos da maioria das soluções.(19) O desenvolvimento de soluções de preservação exclusivas para uso pulmonar reduziu de 30% para menos de 15% a incidência de falência aguda do enxerto.(3) A despeito das evidências, permanecem controvérsias quanto aos benefícios da solução LPD em relação ao desempenho tardio e mortalidade em um ano após o transplante.(20) Mais recentemente, a introdução do recondicionamento pulmonar ex vivo(21) e a doação pós-parada cardiocirculatória(4) reacenderam as controvérsias e reforçaram a necessidade de reavaliação das soluções de preservação em uso.

A solução HTK é utilizada como solução cardioplégica e na preservação em transplantes cardíacos. Desde o seu desenvolvimento, diversas modificações foram realizadas em sua formulação, tornando-a mais eficaz em períodos de isquemia mais longos.(22) Uma vez que a solução HTK não havia sido testada em preservação pulmonar em um modelo ex vivo até o momento, caso a sua eficácia fosse comprovada para esse fim, isso permitiria a utilização de uma única solução no momento da extração cardiopulmonar.

No presente estudo, utilizamo-nos do modelo de perfusão pulmonar ex vivo para uma avaliação da solução HTK, comparando-a com uma solução extracelular de uso consolidado em transplantes pulmonares (LPD). Utilizamos uma preparação ex vivo de pulmões de ratos, perfundidos com sangue venoso homólogo obtido por exsanguinação de animais da mesma espécie.(22,23) O sistema de perfusão ex vivo é simples e reprodutível, razão pela qual é muito utilizado em estudos de preservação pulmonar para transplante. Utilizamos sangue homólogo obtido por exsanguinação de 2 ou 3 ratos por bloco cardiopulmonar e diluído em SN. Apesar de a hemodiluição interferir nas trocas gasosas, obtivemos resultados confiáveis e coerentes no que se refere à avaliação hemogasométrica.

A hemodiluição e seus efeitos sobre a lesão de reperfusão são conhecidos. Puskas et al.(24) relataram que, em um modelo similar de perfusão ex vivo, no qual a hemodiluição foi realizada com solução cristaloide, havia a melhora da lesão de isquemia-reperfusão pós-isquêmica. No modelo atual, reconhecemos que a hemodiluição possa ter sido maior nos pulmões dos grupos SN-6 e SN-12, uma vez que esses pulmões já possuíam seu leito vascular preenchido com SN antes da reperfusão. Por essa razão, em nosso laboratório, substituímos recentemente a SN por solução de Krebs, pois essa se mostrou mais eficaz em promover hemodiluição, sobretudo em experimentos com tempos de isquemia prolongados.

No presente estudo, mesmo os pulmões com tempos de isquemia de 6 e 12 h forneceram dados consistentes para a análise, ao passo que outros autores restringiram-se a períodos de isquemia entre 2 e 4 h.(25) Nosso desenho experimental incluiu o grupo SN apesar de a SN não ser empregada clínica ou experimentalmente na preservação pulmonar. A opção por adicioná-la como grupo fundamentou-se em sua capacidade de causar edema pulmonar na reperfusão, fato esse que serviu ao propósito de utilizá-la como parâmetro de edema na comparação com o uso das demais soluções. Demonstramos anteriormente, utilizando o mesmo modelo, que os pulmões do grupo SN preservados por 12 h apresentaram um desempenho consistentemente pior em relação aos pulmões submetidos às demais soluções no mesmo período de isquemia.(11) Os achados histopatológicos no presente estudo confirmaram esta impressão, uma vez que todos os pulmões apresentaram-se edematosos no grupo SN.

Em nosso estudo anterior, verificamos que a complacência pulmonar fora superior nos pulmões com isquemia de 6 h e que a resistência pulmonar era maior nos pulmões com isquemia de 12 h. Observamos também que a capacidade relativa de oxigenação não diferiu entre os pulmões nos grupos LPD com 6 ou 12 h de isquemia e entre os demais grupos submetidos a 12 h de isquemia.(11)

Centramos o presente estudo na avaliação histopatológica, com a convicção de que os achados de eventuais alterações morfológicas e apoptose poderiam corroborar os achados fisiológicos anteriores. Optamos por incluir parâmetros morfológicos cujas alterações são pertinentes e relacionadas à lesão endotelial vascular e às alterações do parênquima pulmonar, todas representativas da injúria de reperfusão pós-isquêmica. Não observamos diferenças significativas nas variáveis congestão, hemorragia alveolar, hemorragia intersticial, infiltrado inflamatório e infiltrado intersticial entre os grupos. No entanto, observamos um aumento do edema alveolar no grupo SN-12. Isso confirma o pressuposto de que o uso da solução SN na preservação pulmonar causa severo edema na reperfusão, sobretudo em períodos de isquemia prolongados.

A morte celular nas lesões induzidas por isquemia-reperfusão é causada por necrose e apoptose (morte celular programada). A apoptose pode ser ativada durante as fases iniciais de reperfusão após a isquemia pulmonar.(18) A apoptose diferencia-se da necrose não somente do ponto de vista morfológico, mas também em relação aos mediadores e mecanismos biológicos de lesão. Durante a apoptose, ocorre uma cascata de eventos regulados e dependentes de energia, ativando endonucleases específicas, dentre as quais, as caspases, que estão envolvidas nas fases de iniciação e de execução do processo de apoptose.(26,27)

A duração da isquemia influencia diretamente o grau de apoptose nos tecidos. O estudo das vias biológicas na apoptose em diversos tecidos sugere que o início da cascata acontece durante o período de isquemia. Entretanto, os sinais de apoptose somente aparecem durante a reperfusão, enquanto a necrose celular ocorre durante a isquemia.(26)

Há, no entanto, evidências inequívocas de que a isquemia por si não é suficiente para desencadear a apoptose. Isso foi demonstrado em cardiomiócitos, nos quais a isquemia sem reperfusão levava apenas a morte celular por necrose. Burns et al. estudaram a apoptose através do método TUNEL antes e após a reperfusão em transplante renal, verificando que a apoptose fora menor na pré-reperfusão e sugerindo que a apoptose ocorreria predominantemente após a reperfusão do órgão.(28) A indução de isquemia pulmonar por ligadura da artéria pulmonar em suínos resultou em isquemia pulmonar crônica e indução de superexpressão de fatores pró-apoptóticos. A adição de reperfusão após isquemia crônica desencadeia apoptose maciça, levando a lesão endotelial.(29) Vários estudos demonstraram que a inibição da apoptose pela ação de drogas inibidoras das caspases resulta em diminuição da infiltração de linfócitos e morte celular, levando a melhora da função pulmonar.(6,30)

No presente estudo, a avaliação da apoptose pelo método TUNEL não revelou diferenças significativas no número de células apoptóticas entre os tempos de isquemia de 6 h e 12 h nos grupos LPD, HTK ou SN após a reperfusão dos pulmões por 60 min. Esse achado pode ser interpretado de duas formas distintas: primeiro, a ausência de diferenças poderia ser a resultante de um insulto isquêmico severo que, por conseguinte, seria similar entre os grupos, justificando a ausência de diferenças; segundo, a qualidade de preservação poderia ter sido semelhante no que se refere à integridade celular conferida pelas soluções HTK e LPD. Por conseguinte, ambas estariam associadas a um grau de apoptose semelhante. Quanto à ausência de diferenças entre a quantificação de apoptose no grupo SN, comparada aos demais grupos (LPD e HTK), esse é um achado que pode estar mais relacionado à isquemia propriamente dita, independentemente dos efeitos protetores das soluções de preservação. Não obstante, a julgar-se pela intensidade do edema no grupo SN, depreende-se que a qualidade de preservação tenha sido inferior, como fora antecipado.

Concluímos que pulmões de ratos preservados com LPD ou HTK, após reperfusão por 60 min, apresentaram achados histopatológicos e de apoptose comparáveis, enquanto aqueles preservados em SN apresentaram um grau maior de edema na reperfusão. Os achados do presente estudo corroboram os achados fisiológicos prévios no mesmo modelo e dão suporte à necessidade de estudos futuros em modelos de transplante pulmonar para que se confirme se o desempenho funcional dos pulmões preservados com HTK se mantém em comparação àqueles preservados com LPD.

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Trabalho realizado no Departamento de Cardiopneumologia, Disciplina de Cirurgia Torácica, Laboratório de Investigação Médica 61, Cirurgia Torácica Experimental (LIM 61), Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.
Endereço para correspondência: Paulo Manuel Pêgo-Fernandes Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44, bloco II, 5º andar,
sala 7, Cerqueira César, CEP 05403-900, São Paulo, SP, Brasil.
Tel. 55-11-26615248. E-mail: paulo.fernandes@incor.usp.br
Apoio financeiro: Este estudo recebeu apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Recebido para publicação em 23/2/2012. Aprovado, após revisão, em 5/6/2012.




Sobre os autores

Edson Azevedo Simões
Pós-Doutorando em Cardiopneumologia. Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.

Paulo Francisco Guerreiro Cardoso
Professor Doutor. Departamento de Cardiopneumologia, Disciplina de Cirurgia Torácica, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.

Paulo Manuel Pêgo-Fernandes
Professor Livre-Docente. Departamento de Cardiopneumologia, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.

Mauro Canzian
Médico Patologista. Laboratório de Anatomia Patológica, Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.

Rogério Pazetti
Pesquisador Científico I. Laboratório de Investigação Médica 61, Cirurgia Torácica Experimental (LIM 61), Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.

Karina Andriguetti de Oliveira Braga
Especialista em Laboratório. Laboratório de Investigação Médica 61, Cirurgia Torácica Experimental (LIM 61), Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.

Natalia Aparecida Nepomuceno
Biologista. Laboratório de Investigação Médica 61, Cirurgia Torácica Experimental (LIM 61), Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.

Fabio Biscegli Jatene
Professor Titular. Disciplina de Cirurgia Torácica, Departamento de Cardiopneumologia, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.

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