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Relato de Caso

Corticoide sistêmico como tratamento de primeira linha da hipertensão pulmonar secundária a síndrome POEMS

Systemic corticosteroids as first-line treatment in pulmonary hypertension associated with POEMS syndrome

Samia Rached, Rodrigo Abensur Athanazio, Sérvulo Azevedo Dias Júnior, Carlos Jardim, Rogério Souza

RESUMO

A síndrome POEMS é uma rara doença de plasmócitos. A ocorrência de hipertensão pulmonar como complicação respiratória da síndrome é pouco frequente e pode estar ligada ao aumento de várias citocinas, quimiocinas e fatores de crescimento como parte dos fenômenos inflamatórios que cercam a fisiopatologia da síndrome POEMS. Descrevemos o caso de uma mulher de 54 anos com síndrome POEMS e hipertensão pulmonar, que foi tratada com corticoide como terapia de primeira linha. Tratava-se de uma paciente com clássicos sintomas dessa síndrome: polineuropatia (confirmada por eletroneuromiografia), organomegalia, hipotireoidismo subclínico, gamopatia monoclonal em dosagem urinária e alterações cutâneas. A cateterização cardíaca direita revelou pressão arterial pulmonar média de 48 mmHg, débito cardíaco de 4,1 L/min e resistência vascular pulmonar de 8,05 Woods. O nível sérico de brain natriuretic peptide (BNP) foi de 150 pg/mL. Nenhuma outra doença foi encontrada durante investigação. Prednisona (1 mg/kg por três meses) foi iniciada, com dramática melhora clínica e funcional, além de normalização dos níveis dos hormônios tireoidianos e de proteína em urina por eletroforese. A pressão arterial pulmonar média caiu para 26 mmHg, o débito cardíaco para 3,8 L/min e a resistência vascular pulmonar para 2,89 Woods. O nível sérico de BNP caiu para 8pg/mL. Nossos achados indicam o potencial papel da corticoterapia como primeira linha de tratamento na hipertensão pulmonar associada à síndrome POEMS. Diante da raridade dessa apresentação, um registro multicêntrico deveria ser desenvolvido para permitir a aquisição de mais dados que suportem essa conduta.

Palavras-chave: Síndrome POEMS; Hipertensão pulmonar; Glucocorticoides.

Introdução

A síndrome polyneuropathy-organomegaly-endocrinopathy-M protein-skin changes (POEMS, polineuropatia-organomegalia-endocrinopatias-imunoglobulinas monoclonais-manifestações cutâneas), também chamada de síndrome de Crow-Fukase, é um distúrbio multissistêmico frequentemente associada a doenças sanguíneas. Por ser uma doença complexa, critérios foram desenvolvidos para seu diagnóstico.(1). É necessária a presença de dois critérios maiores, que são a polineuropatia e imunoglobulinas monoclonais, além de um critério menor, dentre os quais: lesões ósseas escleróticas, doença de Castleman, organomegalia (esplênica, hepática ou linfonodal), acúmulo de líquido (edema periférico ou derrames cavitários), endocrinopatia (adrenal, tireoidiana, pituitária, gonadal, paratireoidiana ou pancreática), alterações cutâneas (hiperpigmentação, hipertricose, pletora, hemangiomata, unhas brancas) ou papiledema. A associação da síndrome POEMS com hipertensão pulmonar é incomum, e o exato mecanismo dessa relação não é conhecido.(1,2)

A associação dessas duas condições clínicas talvez esteja ligada ao aumento dos níveis de citocinas pró-inflamatórias.(3-7) Essa potencial relação entre o processo inflamatório e o desenvolvimento e a modulação da hipertensão pulmonar(8) é confirmada pela resposta significativa ao uso de imunossupressores quando a condição clínica associada ao desenvolvimento de hipertensão pulmonar é eminentemente inflamatória, como, por exemplo, no lúpus sistêmico e na doença mista do tecido conectivo.(9) Tais achados dão fundamentação teórica para o uso de terapia imunossupressora na hipertensão pulmonar associada à síndrome POEMS.

Apresentamos um caso de hipertensão pulmonar associada à síndrome POEMS tratada com corticoide sistêmico como primeira linha de tratamento, com resposta clínica, hemodinâmica e funcional.

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, 54 anos, que procurou atendimento médico queixando-se de aumento de volume abdominal, edema de membros inferiores e dispneia aos esforços progressiva. Referia ainda parestesias em mãos e pés, bilateralmente. No exame físico, observavam-se lesões cutâneas nos membros superiores e no tronco, caracterizadas como máculas hipercrômicas de coloração amarronzada, além de hepatoesplenomegalia à palpação do abdômen.

O ecocardiograma mostrou insuficiência tricúspide importante e pressão sistólica de artéria pulmonar estimada em 75 mmHg, sem sinais de disfunção sistólica ou diastólica do ventrículo esquerdo. A eletroneuromiografia foi compatível com polineuropatia desmielinizante sensitivo-motora crônica com envolvimento axonal secundário. A dosagem de hormônios tireoidianos revelou hipotireoidismo subclínico. A imunofixação de proteínas urinárias apresentava aumento monoclonal de IgA, com aumento de kappa. A investigação de doença tromboembólica resultou negativa; a angiotomografia de tórax evidenciou tronco de artéria pulmonar com 30 mm de diâmetro no seu maior aumento, sem falhas de enchimento (Figura 1).




O cateterismo cardíaco direito confirmou a presença de hipertensão pulmonar (Tabela 1), sem resposta aguda à inalação de óxido nítrico. A dosagem do peptídeo natriurético do tipo B (BNP) foi de 150 pg/mL. As provas reumatológicas, as sorologias para HIV e para hepatites e o exame parasitológico de fezes foram todos negativos, e a paciente não tinha história de uso crônico de drogas implicadas com o aparecimento de hipertensão pulmonar.



O conjunto de dados clínicos, associado aos exames complementares, levou à hipótese de síndrome POEMS com hipertensão pulmonar associada. Iniciou-se corticoterapia (prednisona, 1 mg/kg), com boa resposta clínica. Após três meses, um novo cateterismo cardíaco direito revelou melhora significativa do quadro hemodinâmico (Tabela 1); a nova dosagem de BNP foi de 8 pg/mL. Observou-se, ainda, a normalização da imunofixação urinária e dos hormônios tireoidianos.

Discussão

A síndrome POEMS é uma doença hematológica rara, caracterizada pela associação de polineuropatia, organomegalia, endocrinopatia, gamopatia monoclonal e alterações cutâneas. Para o diagnóstico, não é necessária a presença de todas as manifestações relacionadas, mas de pelo menos três ou mais achados típicos.(1) A sobrevida média desses pacientes é superior a 10 anos, sendo bem superior àquela vista para os casos de mieloma múltiplo.(1) O tratamento ainda não é bem definido; porém, as principais opções terapêuticas são a radioterapia, os agentes alquilantes, o transplante autólogo de medula e os corticoides,(1) sendo o reconhecimento precoce dessa síndrome importante para a redução da morbidade a ela associada.

A síndrome POEMS está relacionada a diversas formas de acometimento pulmonar. Recentemente, alguns autores mostraram os resultados de um estudo retrospectivo que avaliou 137 casos de pacientes com síndrome POEMS. Destes, 28% apresentavam algum tipo de sintoma respiratório dentro dos primeiros 2 anos de doença, sendo a dispneia a queixa mais prevalente, seguida de dor no peito, tosse e ortopneia. A hipertensão pulmonar estava presente em 8,7% dos pacientes e, juntamente com doença pulmonar restritiva e fraqueza dos músculos respiratórios, foi um dos tipos de acometimento pulmonar mais prevalentes nesses indivíduos.(2)

Vários outros estudos já comprovaram a relação entre síndrome POEMS e hipertensão pulmonar; porém, cabe ressaltar que esse é um diagnóstico de exclusão. Por isso, a realização de exames complementares para afastar outras causas associadas de hipertensão pulmonar é fundamental.(4,5,10-12) No nosso caso, a paciente apresentava todos os critérios clínicos para o diagnóstico da síndrome POEMS e foi submetida ao cateterismo cardíaco direito para a confirmação diagnóstica de hipertensão pulmonar. Além disso, o restante da investigação afastou a presença de outras condições clínicas que pudessem estar relacionadas ao desenvolvimento de hipertensão pulmonar.(13,14)

A confirmação de que a hipertensão pulmonar está associada à síndrome POEMS tem implicações prognósticas, pois, nesses casos, a evolução clínica parece ter um curso clínico mais benigno que aquele observado, por exemplo, na forma idiopática.(4) Outro ponto importante dessa distinção está na terapêutica, uma vez que, devido ao potencial papel da inflamação na modulação, tanto da síndrome POEMS, quanto da hipertensão pulmonar associada, o uso de imunossupressores talvez deva ser considerado como primeira linha de tratamento.(12) No caso apresentado, houve melhora significativa do padrão hemodinâmico após o uso de prednisona na dose de 1 mg/kg por três meses, além de diminuição acentuada do nível sérico de BNP, que é um importante marcador prognóstico, relacionado ao estresse existente na parede miocárdica em pacientes com hipertensão pulmonar.(15) Outros estudos já relataram essa resposta dramática ao corticoide, mas baseados apenas em dados subjetivos e em medidas de pressão de artéria pulmonar indireta por ecocardiograma. Neste relato, comprovamos a eficácia do tratamento com corticoide na síndrome POEMS através de medidas hemodinâmicas diretas e de dados bioquímicos específicos antes e após o tratamento.(4,11,12)

A responsividade ao corticoide provavelmente está ligada à etiologia inflamatória que caracteriza essa síndrome. Os pacientes com síndrome POEMS marcadamente apresentam altos níveis de citocinas séricas, com destaque para TNF-α, IL-6, IL-1β e vascular endothelial growth factor (VEGF).(4,6,7) Mais recentemente, alguns autores relataram um caso no qual o VEGF foi dosado antes e depois da instituição do tratamento com corticoides e observaram que houve diminuição significativa dos níveis séricos dessa citocina.(5)

A expressão do VEGF está intimamente relacionada com a formação de lesões vasculares plexiformes nos pulmões de pacientes com hipertensão arterial pulmonar idiopática grave e também em pacientes com hipertensão arterial pulmonar associada a outras causas. Essa citocina contribui para a angiogênese, para o aumento da permeabilidade vascular e para as alterações na microvasculatura pulmonar, caracterizadas por espessamento de parede capilar e arteriolar. Em conjunto, essas alterações culminam com o aumento da resistência vascular e consequente aumento de pressões no leito vascular pulmonar.(16)

Concluindo, esses dados sugerem que pacientes com hipertensão pulmonar induzida pela síndrome POEMS devem ter alterações na produção e na regulação de citocinas inflamatórias, que, por sua vez, causam alterações nos vasos pulmonares com consequente aumento da resistência vascular pulmonar. Nota-se ainda que os corticoides, por inibirem a produção dessas citocinas, têm potencial uso como a primeira linha de tratamento nesse subgrupo de pacientes. A raridade dessa apresentação dificulta a realização de estudos prospectivos que possam fornecer evidência suficientemente significativa para fundamentar essa hipótese; entretanto, a avaliação da resposta ao tratamento através de variáveis menos influenciáveis por um potencial efeito placebo, como as variáveis hemodinâmicas invasivas ou mesmo os níveis séricos de peptídeos natriuréticos, como apresentado em nosso caso, pode ajudar nessa fundamentação ao longo do tempo.


Referências


1. Dispenzieri A, Kyle RA, Lacy MQ, Rajkumar SV, Therneau TM, Larson DR, et al. POEMS syndrome: definitions and long-term outcome. Blood. 2003;101(7):2496-506.

2. Allam JS, Kennedy CC, Aksamit TR, Dispenzieri A. Pulmonary manifestations in patients with POEMS syndrome: a retrospective review of 137 patients. Chest. 2008;133(4):969-74.

3. Perros F, Montani D, Dorfmüller P, Durand-Gasselin I, Tcherakian C, Le Pavec J, et al. Platelet-derived growth factor expression and function in idiopathic pulmonary arterial hypertension. Am J Respir Crit Care Med. 2008;178(1):81-8.

4. Lesprit P, Godeau B, Authier FJ, Soubrier M, Zuber M, Larroche C, et al. Pulmonary hypertension in POEMS syndrome: a new feature mediated by cytokines. Am J Respir Crit Care Med. 1998;157(3 Pt 1):907-11.

5. Niimi H, Arimura K, Jonosono M, Hashiguchi T, Kawabata M, Osame M, et al. VEGF is causative for pulmonary hypertension in a patient with Crow-Fukase (POEMS) syndrome. Intern Med. 2000;39(12):1101-4.

6. Humbert M, Monti G, Brenot F, Sitbon O, Portier A, Grangeot-Keros L, et al. Increased interleukin-1 and interleukin-6 serum concentrations in severe primary pulmonary hypertension. Am J Respir Crit Care Med. 1995;151(5):1628-31.

7. Perros F, Dorfmüller P, Souza R, Durand-Gasselin I, Godot V, Capel F, et al. Fractalkine-induced smooth muscle cell proliferation in pulmonary hypertension. Eur Respir J. 2007;29(5):937-43.

8. Dorfmüller P, Perros F, Balabanian K, Humbert M. Inflammation in pulmonary arterial hypertension. Eur Respir J. 2003;22(2):358-63.

9. Sanchez O, Sitbon O, Jaïs X, Simonneau G, Humbert M. Immunosuppressive therapy in connective tissue diseases-associated pulmonary arterial hypertension. Chest. 2006;130(1):182-9.

10. Ribadeau-Dumas S, Tillie-Leblond I, Rose C, Saulnier F, Wemeau JL, Hatron PY, et al. Pulmonary hypertension associated with POEMS syndrome. Eur Respir J. 1996;9(8):1760-2.

11. Mukerjee D, Kingdon E, Vanderpump M, Coghlan JG. Pathophysiological insights from a case of reversible pulmonary arterial hypertension. J R Soc Med. 2003;96(8):403-4.

12. Jouve P, Humbert M, Chauveheid MP, Jaïs X, Papo T. POEMS syndrome-related pulmonary hypertension is steroid-responsive. Respir Med. 2007;101(2):353-5.

13. Souza R, Humbert M, Sztrymf B, Jaïs X, Yaïci A, Le Pavec J, et al. Pulmonary arterial hypertension associated with fenfluramine exposure: report of 109 cases. Eur Respir J. 2008;31(2):343-8. Erratum in: Eur Respir J. 2008;31(4):912.

14. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Classificação e avaliação diagnóstica da hipertensão pulmonar. J Bras Pneumol. 2005;31(Suppl 2):S1-S8.

15. Nagaya N, Nishikimi T, Uematsu M, Satoh T, Kyotani S, Sakamaki F, et al. Plasma brain natriuretic peptide as a prognostic indicator in patients with primary pulmonary hypertension. Circulation. 2000;102(8):865-70.

16. Voelkel NF, Vandivier RW, Tuder RM. Vascular endothelial growth factor in the lung. Am J Physiol Lung Cell Mol Physiol. 2006;290(2):L209-21.



Sobre os autores

Samia Rached
Médico. Serviço de Pneumologia, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo -
InCor/HCFMUSP - São Paulo (SP) Brasil.

Rodrigo Abensur Athanazio
Médico. Serviço de Pneumologia, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - InCor/HCFMUSP - São Paulo (SP) Brasil.

Sérvulo Azevedo Dias Júnior
Médico. Serviço de Pneumologia, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - InCor/HCFMUSP - São Paulo (SP) Brasil.

Carlos Jardim
Médico Assistente. Ambulatório de Circulação Pulmonar, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - InCor/HCFMUSP - São Paulo (SP) Brasil.

Rogério Souza
Professor Livre-Docente. Grupo de Circulação Pulmonar, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - InCor/HCFMUSP - São Paulo (SP) Brasil.



Trabalho realizado no Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - InCor/HCFMUSP - São Paulo (SP) Brasil.
Endereço para correspondência: Rogério Souza. Disciplina de Pneumologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255, Sala 7079, CEP 05403-900, São Paulo, SP, Brasil.
Tel 55 11 3069-5695. E-mail: rogerio.souza@incor.usp.br
Apoio financeiro: Nenhum.
Recebido para publicação em 23/9/2008. Aprovado, após revisão, em 27/1/2009.

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