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Editorial

Vacinação com BCG e redução do risco de asma

BCG vaccination and reduced risk of asthma

Adelmir Souza-Machado, Álvaro A. Cruz

A partir de 1997, quando Shirakawa et al. publicaram suas observações de uma associação inversa entre a ocorrência de asma e a reatividade ao PPD entre crianças no Japão,(1) surgiu um enorme interesse na possibilidade da vacina BCG contribuir para a prevenção da asma. Houve muitas restrições aos métodos e às conclusões do trabalho, mas a contemporaneidade da epidemia global de asma e o surgimento da hipótese da higiene para explicar o crescimento das doenças alérgicas,(2) assim como a disponibilidade imediata desta intervenção segura, de baixo custo, aumentaram ainda mais a expectativa em torno do assunto. A hipótese da higiene, na sua forma mais simples, sugere que a exposição precoce a produtos microbianos modula o sistema imune para longe dos mecanismos relacionados ao desenvolvimento de atopia. A infecção gerada pela micobactéria atenuada da vacina BCG, especialmente se administrada nos primeiros meses de vida, poderia cumprir esse papel.

Vários estudos em seres humanos, utilizando-se metodologias variadas e populações distintas, avaliaram a questão e demonstraram resultados negativos ou de impacto limitado, frustrando a expectativa geral, que fora ampliada por evidências geradas em estudos experimentais.(3) Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Sarinho et al.(4) trazem uma contribuição nacional original importante para o debate, relatando suas observações sobre o efeito do BCG, aplicado em número variado de doses, em 2.311 indivíduos com idades de 10-70 anos. Eles foram avaliados em um estudo de coorte retrospectiva, de 10 anos de duração, quanto ao aparecimento de asma, conforme o número de doses da vacina BCG recebidas. Não foram identificadas diferenças estatisticamente significantes nas frequências de asma entre os grupos que receberam uma, duas, ou três ou mais doses de BCG, cujos resultados foram, respectivamente, 16,4% (216/1.317), 16,6% (107/644) e 14,3% (50/350). A despeito das limitações metodológicas de um estudo retrospectivo, no qual a intervenção não foi realizada de forma randômica, permitindo eventuais efeitos de confusão impostos por diversos fatores ambientais e individuais não controlados, este é um trabalho que traz uma contribuição significativa para o conhecimento da questão, indicando que a pequena proteção possivelmente conferida pela vacinação BCG provavelmente não será aumentada com o uso de múltiplas doses da vacina na faixa etária avaliada. O fato de ser um estudo retrospectivo, embora implique em evidência de qualidade limitada, de forma alguma desvaloriza o relato. Ao contrário, os autores devem ser cumprimentados pela disposição em garimpar informações que poderiam ficar perdidas em arquivos e que agora estão compartilhadas com pesquisadores de todo o mundo. Estes mesmos autores têm avaliado, sob diversos ângulos, a relação entre BCG e asma em outras populações.(5,6)

Entretanto, a observação relatada no artigo publicado agora, que foi realizada no estado do Pará, deve ser extrapolada com cautela para outras regiões e comunidades com diferentes prevalências de infecção por tuberculose e por micobactérias atípicas, visto que uma população muito exposta a antígenos desses microrganismos, tal como a da região amazônica, poderia ser menos passível de algum benefício pela vacinação BCG em relação à asma, à semelhança do que provavelmente ocorre quanto à proteção contra a tuberculose.(7,8)

A asma é uma síndrome que tem como substrato imunopatológico a inflamação crônica das vias aéreas, de características e intensidades variadas, expressando-se por meio de diferentes fenótipos.(9) Em 1986, um grupo de autores(10) descreveu subgrupos de linfócitos T CD4+ (Th1 e Th2), baseados no padrão de citocinas produzidas em células de camundongos, o que foi em seguida confirmado em células humanas como grupos de citocinas com propriedades antagônicas, cujo equilíbrio seria importante para a saúde.(11) Na asma atópica, identifica-se ao menos um alérgeno ao qual o indivíduo está sensibilizado, o qual reage com a produção de IgE específica. Observa-se ainda uma polarização da resposta de linfócitos T com ativação do subgrupo Th2, caracterizada pela produção de citocinas relacionadas à elevação de IgE e atração de eosinófilos, tais como IL-3, IL-4, IL-5, IL-9, IL-13 e GM-CSF, além de quimiocinas e mediadores da resposta imediata a alérgenos.(12) Na asma não atópica, o processo inflamatório crônico é muito semelhante ao da asma atópica, mas não se consegue identificar a produção de IgE específica contra um aeroalérgeno relevante.(13) Os fatores de risco e os potenciais fatores de proteção para esses dois diferentes fenótipos da asma não devem ser os mesmos. Outros subgrupos de linfócitos T têm sido caracterizados, tais como as células T reguladoras, foliculares Th17, Th22 e Th9, revelando a complexidade deste microssistema, ao qual tem sido atribuído um papel importante na modulação da inter-relação entre a resposta imune inata e aquela adquirida e, por consequência, na manutenção da saúde: uma resposta imune eficaz sem autoimunidade ou hipersensibilidade.(14)

A vacina BCG, contra a tuberculose, é elaborada a partir de uma bactéria atenuada de origem bovina (Mycobacterium bovis), que é semelhante ao microrganismo causador da doença (M. tuberculosis).

Experimentalmente, tem sido documentada a capacidade de micobactérias, que estimulam os linfócitos Th1 e células T regulatórias, de modularem a resposta Th2 in vitro e em diversos modelos de asma.(3,15) Avaliando o impacto da vacinação e da revacinação com BCG sobre a frequência de asma entre adolescentes em Salvador (BA), em um estudo seccional, não encontramos proteção significativa na análise geral da amostra submetida a uma ou duas doses da BCG, mas detectamos alguma proteção da vacinação BCG neonatal nos indivíduos que apresentaram sintomas de rinite crônica, estando, portanto, em situação de maior risco de asma.(16) Em uma meta-análise recente de 23 estudos, concluiu-se que a exposição precoce à vacinação BCG está associada a uma pequena redução no risco de asma (OR = 0,86; IC95%: 0,79-0,93).(17) Em seres humanos, encontraram-se efeitos limitados da vacinação com BCG sobre a asma e a rinite alérgica, também em um estudo controlado e randomizado,(18) no qual foram utilizadas múltiplas injeções intramusculares de BCG.

Verifica-se também a elevação de citocinas Th1 (TNF-α e IFN-γ) no processo inflamatório da asma, indicando que é possível coexistirem respostas Th1 e Th2 ativadas.(12,13) A exposição do sistema imune a agentes infecciosos ou produtos microbianos, especialmente na infância, parece promover o equilíbrio da resposta imune e a modulação ou regulação de ambos os sistemas, Th1 e Th2.(19,20) A ausência de exposição, num ambiente menos séptico, por outro lado facilitaria o aparecimento de doenças alérgicas e autoimunes em subgrupos de indivíduos predispostos. Com base nessa premissa, diversos estudos têm sido conduzidos na tentativa de identificar intervenções que possam ser incorporadas em estratégias para atenuar ou prevenir a inflamação na asma.(3,15)

Mas "na prática a teoria é outra". A questão não é tão simples, diante da pluralidade da resposta imune, dos vários fenótipos inflamatórios da asma, da diversidade genética e do ambiente, assim como do momento da intervenção. A vacinação BCG pode reduzir o risco da asma atópica apenas, sem reduzir o risco da asma não atópica, que pode ser a forma mais frequente em crianças de baixa renda na America Latina. Entre crianças do Rio Grande do Sul, o risco de asma associado a infecções foi maior que o risco de asma associado a atopia.(21) Em Salvador (BA), avaliando uma coorte de crianças de baixa renda, observamos que a fração da asma atribuível a atopia é de apenas 20% e que a asma está mais fortemente associada a más condições de habitação e saneamento (dados não publicados). Estudando o efeito da BCG em um modelo experimental de asma em camundongos, um grupo de autores(15) confirmou as observações prévias de supressão de inflamação alérgica Th2 nas vias aéreas, associada à ativação de células T regulatórias, mas também foi identificada uma inflamação neutrofílica concomitante relacionada à estimulação de células Th1.

Certamente há muito mais entre a vacinação BCG e a asma do que nos permitem entender os nossos avançados conhecimentos de imunopatologia, no contexto de uma resposta imune dinâmica, complexa e redundante. Um dos aspectos que merece investigação cuidadosa é a possibilidade da vacinação BCG ser um fator de proteção na asma atópica, mas ter um comportamento diferente na asma não atópica.

Adelmir Souza-Machado
Professor Adjunto.
Instituto de Ciências da Saúde, Universidade Federal da Bahia Coordenador do Programa para o Controle da Asma na Bahia - ProAR - Salvador (BA) Brasil

Álvaro A. Cruz
Professor Associado.
Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia
Diretor do Núcleo de
Excelência em Asma,
Salvador (BA) Brasil



Referências


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