Desde o primeiro transplante pulmonar bem-sucedido, realizado em Toronto em 1983, houve muitos avanços técnicos. O que inicialmente era uma tentativa ousada é agora um procedimento de rotina no tratamento de pacientes com doença pulmonar terminal. Apesar dos avanços nas técnicas cirúrgicas e no manejo de pacientes, um grande obstáculo ainda impede o sucesso irrestrito do transplante pulmonar: a oferta de pulmões doados de qualidade é insuficiente para suprir a crescente demanda, e um número cada vez maior de pacientes necessita desse procedimento que salva vidas. Atualmente, a maioria dos pulmões provenientes de doadores de múltiplos órgãos é considerada "danificada demais" para ser transplantada e é simplesmente rejeitada.(1) Os cirurgiões que realizam transplantes e os clínicos envolvidos nesses procedimentos têm grandes preocupações com o impacto da disfunção primária do enxerto (um processo de lesão pulmonar aguda que ocorre nas primeiras 72 h após o transplante pulmonar).(2) Por isso, a maioria dos centros de transplante adota critérios rigorosos para a seleção de doadores.(3) Entretanto, essa abordagem altamente seletiva apresenta dois grandes problemas(4): até 30% dos candidatos a transplante morrem antes que um órgão compatível esteja disponível, e 15% de todos os que recebem transplantes apresentam grave disfunção primária do enxerto, não obstante o emprego de tais critérios. Duas abordagens inovadoras, ambas desenvolvidas nos últimos 5 anos, terão um impacto significativo na disponibilidade de pulmões doados para transplante e nos desfechos pós-transplante nos próximos anos(5): o uso de pulmões provenientes de doadores que sofreram parada cardiocirculatória e a perfusão pulmonar ex vivo (PPEV) normotérmica para reavaliar e recondicionar pulmões doados que foram inicialmente rejeitados. Espera-se que o uso de pulmões provenientes de doadores que sofreram parada cardiocirculatória aumente o número total de doadores de órgãos em pelo menos 20-30%, e a PPEV aumentará significativamente as taxas de aproveitamento de pulmões doados (ou seja, do total de pulmões disponíveis, a porcentagem de pulmões efetivamente utilizados para transplante).
O uso controlado de pulmões provenientes de doadores que sofreram parada cardiocirculatória é um método pelo qual os órgãos podem ser colhidos de indivíduos que não preencham os critérios para morte encefálica, após a suspensão (eletiva) dos tratamentos de suporte de vida. O uso descontrolado de pulmões provenientes de doadores que sofreram parada cardiocirculatória ocorre quando o doador está morto ao chegar ao hospital ou morreu após ressuscitação malsucedida. Esta última prática é adotada principalmente na Espanha.(6) O uso controlado de pulmões provenientes de doadores que sofreram parada cardiocirculatória tornou-se uma opção mais amplamente reconhecida para aumentar o número de órgãos disponíveis para transplante e, nos últimos anos, tem sido responsável por um grande aumento proporcional do total de doadores de pulmão na América do Norte, na Europa e na Oceania. Embora tenha havido certo ceticismo quando pulmões provenientes de doadores que sofreram parada cardiocirculatória começaram a ser usados, vários estudos já demonstraram que os resultados obtidos em curto e longo prazo em pacientes que recebem tais pulmões são no mínimo equivalentes àqueles obtidos em pacientes que recebem pulmões de doadores-padrão (ou seja, doadores com morte cerebral).(7,8) Na verdade, sabe-se que a exposição ao meio inflamatório após a morte encefálica prejudica os pulmões, fato que poderia se traduzir em vantagem do uso de pulmões provenientes de doadores que sofreram parada cardiocirculatória.(9)
No campo de transplante pulmonar, o advento da PPEV normotérmica é um avanço ainda mais empolgante que o uso de pulmões provenientes de doadores que sofreram parada cardiocirculatória. Desde o desenvolvimento do transplante pulmonar clínico, os clínicos envolvidos em transplantes e os pesquisadores do tema buscam reduzir o dano e maximizar o tempo de preservação segura durante o armazenamento e transporte de pulmões doados. Avanços cruciais na preservação pulmonar, incluindo hipotermia, armazenamento de pulmões insuflados e lavagem com solução de dextrana com baixa concentração de potássio, culminaram no amadurecimento do transplante pulmonar, que se tornou padrão de tratamento para doença pulmonar terminal em todo o mundo. Entretanto, é limitada a capacidade da preservação hipotérmica de resgatar pulmões considerados inaproveitáveis, e, infelizmente, 85% dos pulmões doados o são. Portanto, houve uma mudança dramática do foco da preservação pulmonar, do adiamento da morte do órgão (por meio de hipotermia) à facilitação da avaliação, recuperação e regeneração dos pulmões antes da implantação. Isso levou ao surgimento da PPEV normotérmica como estratégia de preservação pulmonar. O primeiro uso da técnica na reavaliação da função de um pulmão proveniente de doador humano que sofreu parada cardiocirculatória foi descrito por Steen et al. em 2001.(10) Entretanto, a PPEV normotérmica só passou a ser amplamente utilizada após o estudo prospectivo Toronto Lung Transplant Program, que foi conduzido em 2011 e se tornou um marco.(11) Nos últimos anos, acumulou-se rapidamente significativa experiência clínica, e estão em andamento três ensaios clínicos prospectivos testando diferentes tecnologias. Mariani et al. realizaram uma excelente revisão de todos os estudos experimentais e clínicos sobre PPEV publicados até hoje.(12) Os autores também descreveram o progresso do uso da técnica no Brasil e observaram que os locais que mais podem se beneficiar do uso da PPEV são locais como o Brasil, onde há um considerável número de doadores de múltiplos órgãos, porém muito baixas taxas de aproveitamento de pulmões doados, devido à significativa variabilidade da proteção do pulmão doado de uma unidade de terapia intensiva para outra.
Embora a PPEV seja capaz de preservar pulmões de maneira eficaz, seu verdadeiro potencial reside em facilitar a reavaliação, recuperação e restauração de pulmões doados. O conceito de "centros especializados em reparo de órgãos", envolvendo o uso de PPEV remota, surgiu e pode ter implicações significativas no que tange à utilização e alocação de órgãos no futuro.(13) Finalmente, o desenvolvimento de estratégias de reparo pulmonar ex vivo para o amplo espectro de lesões em pulmões doados é uma área de pesquisa florescente e importante. É possível que o desenvolvimento de um arsenal de tratamento ex vivo, cuja complexidade varie de tratamentos farmacológicos (antibióticos, trombolíticos etc.) a terapia gênica e celular, permita que os clínicos abordem cada órgão doado de maneira personalizada (o reparo "personalizado" ou voltado especificamente às lesões de cada órgão doado), o que finalmente permitiria que os clínicos aproveitassem ao máximo o total de órgãos doados para transplante.
Marcelo Cypel
Professor Assistente de Cirurgia, Divisão de Cirurgia Torácica,
Toronto General Hospital,
Toronto Lung Transplant Program, University of Toronto,
Toronto, Canadá
Referências
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