Continuous and bimonthly publication
ISSN (on-line): 1806-3756

Licença Creative Commons
6450
Views
Back to summary
Open Access Peer-Reviewed
Cartas ao Editor

A descontaminação digestiva seletiva é superior à clorexidina via orofaringe na prevenção de pneumonia e na redução da mortalidade em pacientes criticamente enfermos

Selective digestive decontamination is superior to oropharyngeal chlorhexidine in preventing pneumonia and reducing mortality in critically ill patients

Luciano Silvestri, Hendrick K.F. van Saene, Liviano Folla, Marco Milanese

Ao Editor:

O artigo de revisão intitulado "Pneumonia nosocomial: importância do microambiente oral", de Amaral et al., é bem-vindo, já que os autores reconhecem de maneira inequívoca os dois fundamentos da prevenção da pneumonia em pacientes que necessitam de tratamento na UTI.(1)

Primeiro, a presença de patógenos na ­orofaringe causa infecções de vias aéreas inferiores e, segundo, a erradicação de patógenos orofaríngeos evita infecções de vias aéreas inferiores. Os autores advogam intervenções farmacológicas para evitar a pneumonia, incluindo "a descontaminação com a administração de antibióticos sistêmicos" e "a descontaminação local com o uso tópico de antissépticos orais e a escovação dentária". Ficamos surpresos com o fato de que a questão da descontaminação digestiva seletiva (DDS) tenha sido prontamente descartada, já que os autores citaram apenas um ensaio randomizado controlado (ERC) no qual a descontaminação orofaríngea com gentamicina a 2%, polimixina B e vancomicina foi utilizada, ao passo que o uso da clorexidina foi amplamente defendido.

A questão da DDS foi abordada em 60 ERCs e em 10 meta-análises que incluíram apenas ERCs (Quadro 1). Em todas as meta-análises cujo desfecho foi a pneumonia, demonstrou-se de forma consistente que a DDS, por meio de antimicrobianos por via parenteral e enteral (via orofaringe e intestino), foi capaz de reduzir o número de casos de pneumonia. O componente parenteral controla de maneira efetiva pneumonias endógenas primárias causadas por bactérias "normais", ao passo que antimicrobianos por via enteral reduzem o número de pneumonias endógenas secundárias causadas por bactérias "anormais", incluindo Pseudomonas spp. e Acinetobacter spp.



Embora os autores demonstrem preocupação com Actinomyces spp., não se pode considerar que tais microrganismos estejam entre os potenciais agentes causadores de pneumonia em pacientes sob ventilação mecânica na UTI. Não obstante, os antimicrobianos usados na DDS cobrem Actinomyces spp. Em 8 das 10 meta-análises, o desfecho foi a mortalidade. Houve um consistente benefício à sobrevida em todas as meta-análises que avaliaram o protocolo completo de DDS com antimicrobianos por via parenteral e enteral, supondo que o tamanho da amostra tenha sido suficiente. Formadores de opinião expressaram preocupações a respeito de resistência, e, embora tais preocupações baseiem-se em níveis baixos de evidência, isso tem impedido a implementação da DDS. A resistência não foi um problema clinicamente relevante nos 60 ERCs que avaliaram a DDS.(2) Dois grandes ERCs holandeses cujo desfecho foi a resistência demonstraram que tanto o transporte dos bacilos gram-negativos aeróbios multirresistentes como a infecção por eles foram significativamente menores após a DDS do que após a terapia padrão.(3)

O uso da descontaminação orofaríngea seletiva (DOS) apenas, em vez do protocolo completo de DDS, tem sido advogado recentemente. Entretanto, uma meta-análise recente demonstrou que a DOS reduz significativamente o número de infecções do trato respiratório inferior, mas não reduz a mortalidade.(4)

Em sua revisão, Amaral et al. concentraram a maior parte de sua atenção no papel que a aplicação de antissépticos (principalmente a clorexidina) via orofaringe desempenha na prevenção da pneumonia associada à ventilação mecânica (PAVM). Essa política preventiva foi estudada em vários ERCs, com resultados opostos. Até onde vai nosso conhecimento, houve apenas 5 meta-análises de antissépticos orais,(5) a maioria das quais concluiu que os antissépticos orais parecem ser eficazes em reduzir o número de casos de PAVM. Entretanto, os resultados de ERCs que avaliaram antissépticos orais e os de meta-análises devem ser interpretados com cautela. Dois terços da população incluída nas meta-análises eram pacientes submetidos a cirurgia cardíaca que receberam ventilação mecânica por não mais que dois dias.(6) Tais pacientes não devem ser incluídos em uma meta-análise cujo desfecho é a PAVM. Além disso, as diferenças na definição das infecções do trato respiratório inferior, bem como nas doses e aplicações de antissépticos (por exemplo, clorexidina vs. iodopovidona; clorexidina a 0,12% vs. clorexidina a 2%; uso de solução, gel ou pasta) podem ter influenciado os resultados. Em suma, os antissépticos orais parecem ser eficazes em prevenir a infecção do trato respiratório inferior apenas em pacientes que recebem ventilação mecânica por 48 h ou menos. A utilidade dos antissépticos orais na prevenção da PAVM é uma questão que precisa ser investigada mais a fundo. Além disso, não há comprovação de que os antissépticos orais reduzam a mortalidade de maneira significativa.

Acreditamos que a DDS seja a única estratégia associada a um benefício à sobrevivência. Perguntamo-nos por que os autores escolheram ignorar essa intervenção em sua revisão.

Luciano Silvestri
Chefe do Departamento de Anestesia e Terapia Intensiva, Presidio
Ospedaliero, Gorizia, Itália

Hendrick K.F. van Saene
Professor Sênior, Faculdade de Ciências Clínicas, Universidade de Liverpool, Liverpool, Reino Unido

Liviano Folla
Chefe do Medicenter,
Centro de Odontologia e Cirurgia Ambulatorial, Ronchi dei Legionari, Gorizia, Itália

Marco Milanese
Consultor, Departamento de Anestesia e Terapia Intensiva, Presidio Ospedaliero, Gorizia, Itália



Referências


1. Amaral SM, Cortês Ade Q, Pires FR. Nosocomial pneumonia: importance of the oral environment. J Bras Pneumol. 2009;35(11):1116-24.

2. Silvestri L, van Saene HK. Selective decontamination of the digestive tract does not increase resistance in critically ill patients: evidence from randomized controlled trials. Crit Care Med. 2006;34(7):2027-9; author reply 2029-30.

3. García-Hierro P, de la Cal MA, van Saene HK, Silvestri L [Article in Spanish]. A new clinical trial of selective digestive decontamination. Med Intensiva. 2009;33(6):297-300.

4. Silvestri L, van Saene HK, Zandstra DF, Viviani M, Gregori D. SDD, SOD or oropharyngeal chlorhexidine to prevent pneumonia and to reduce mortality in ventilated patients: which manoeuvre is evidence based? Intensive Care Med. In press 2010.

5. van Saene HK, Zandstra DF, Petros AJ, Silvestri L, De Gaudio AR. Infections in ICU: an ongoing challenge. In: Gullo A, Besso J, Lumb PD, Williams GF, editors. Intensive and critical care medicine. Milan: Springer Verlag; 2009. p. 261-72.

6. van Saene HK, Silvestri L, de la Cal MA, Baines P. The emperor's new clothes: the fairy tale continues. J Crit Care 2009;24(1):149-52.

7. Vandenbroucke-Grauls CM, Vandenbroucke JP. Effect of selective decontamination of the digestive tract on respiratory tract infections and mortality in the intensive care unit. Lancet. 1991;338(8771):859-62.

8. D'Amico R, Pifferi S, Leonetti C, Torri V, Tinazzi A, Liberati A. Effectiveness of antibiotic prophylaxis in critically ill adult patients: systematic review of randomised controlled trials. BMJ. 1998;316(7140):1275-85.

9. Liberati A, D'Amico R, Pifferi S, Torri V, Brazzi L, Parmelli E. Antibiotic prophylaxis to reduce respiratory tract infections and mortality in adults receiving intensive care. Cochrane Database Syst Rev 2004;(4):CD000022.

10. Safdar N, Said A, Lucey MR. The role of selective digestive decontamination for reducing infection in patients undergoing liver transplantation: a systematic review and meta-analysis. Liver Transpl. 2004;10(7):817-27.

11. Silvestri L, van Saene HK, Milanese M, Gregori D. Impact of selective decontamination of the digestive tract on fungal carriage and infection: systematic review of randomized controlled trials.. Intensive Care Med. 2005;31(7):898-910.

12. Silvestri L, van Saene HK, Milanese M, Gregori D, Gullo A. Selective decontamination of the digestive tract reduces bacterial bloodstream infections and mortality in critically ill patients. Systematic review of randomised, controlled trials. J Hosp Infect. 2007;65(3):187-203.

13. Silvestri L, van Saene HK, Casarin A, Berlot G, Gullo A. Impact of selective decontamination of the digestive tract on carriage and infection due to Gram-negative and Gram-positive bacteria. A systematic review of randomised controlled trials. Anaesth Intensive Care. 2008;36(3):324-38.

14. Silvestri L, van Saene HK, Weir I, Gullo A. Survival benefit of the full selective digestive decontamination regimen. J Crit Care. 2009;24(3):474.e7-14.

15. Liberati A, D'Amico R, Pifferi S, Torri V, Brazzi L, Parmelli E. Antibiotic prophylaxis to reduce respiratory tract infections and mortality in adults receiving intensive care. Cochrane Database Syst Rev. 2009;(4):CD000022.

16. Silvestri L, van Saene HK, Zandstra DF, Marshall JC, Gregori D, Gullo A. Impact of selective decontamination of the digestive tract on multiple organ dysfunction syndrome: systematic review of randomized controlled trials. Crit Care Med. In press 2010.

Indexes

Development by:

© All rights reserved 2024 - Jornal Brasileiro de Pneumologia