AO EDITOR,
Estamos passando por um período emocionante de avanços científicos na assistência ao paciente. O advento da medicina de precisão nos permitiu sonhar com a capacidade de tratar um grande número de doenças em sua raiz. Na fibrose cística (FC), a recente integração da medicina de precisão na rotina de assistência ao paciente permitiu o manejo da expressão da proteína CFTR e trouxe esperança para o tratamento da doença, com melhor qualidade de vida e maior expectativa de vida.
Na FC, a medicina de precisão emprega três medicamentos aprovados pela agência norte-americana Food and Drug Administration: ORKAMBI® (lumacaftor/ivacaftor), SYMDEKO® (tezacaftor/ivacaftor e ivacaftor) e KALYDECO® (ivacaftor), todos eles fabricados pela Vertex Pharmaceuticals, Inc. (Boston, MA, EUA). Benefícios clínicos substanciais foram obtidos com uma nova associação medicamentosa (VX-659-tezacaftor-ivacaftor) em comparação com placebo, com mudança de 14 pontos percentuais no VEF1 em porcentagem do previsto (VEF1%) em indivíduos com uma mutação F508del e uma mutação de função mínima, além de uma mudança de 10 pontos percentuais no VEF1% em indivíduos com duas mutações F508del tratados inicialmente com tezacaftor-ivacaftor e, em seguida, com tezacaftor-ivacaftor mais VX-659. Além disso, o tratamento com a associação medicamentosa tripla de VX-455-tezacaftor-ivacaftor foi testado em ensaios clínicos de fase I e II, com melhora significativa no VEF1%.(1-5)
Os desfechos de ensaios clínicos de FC têm sido notáveis. Embora os resultados iniciais de ensaios clínicos com medicamentos de precisão tenham demonstrado apenas uma ligeira melhora no VEF1% (< 2-4 pontos percentuais), estudos recentes mostraram melhora significativa na qualidade de vida e expectativa de vida de pacientes com FC. No entanto, a dimensão econômica da medicina de precisão, incluindo o alto custo de desenvolvimento de medicamentos e realização de ensaios, é uma barreira ao uso e implantação de novas terapias. Desde a descoberta de uma nova molécula até a aplicação clínica de um novo medicamento, os custos envolvidos são altos. Na FC, o custo final de novos medicamentos de precisão depende do alto custo dos ensaios clínicos, de cronogramas longos, de dificuldades em recrutar participantes (porque o genótipo do CFTR precisa ser identificado), da capacidade limitada de pesquisa clínica, de normas rigorosas, de barreiras administrativas, da coleta e interpretação de dados e de dificuldades em manter e monitorar a segurança. Além disso, os custos de cuidados de saúde aumentam exponencialmente quando se emprega a medicina de precisão.
Embora a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) seja responsável pela aprovação e regulamentação de medicamentos, os serviços públicos de saúde precisam de mais autorização para distribuir medicamentos gratuitamente à população. Em 2018, o governo brasileiro aprovou o primeiro medicamento de precisão para uso em pacientes com FC no Brasil. No entanto, o paciente é que deve arcar com os custos. O próximo passo seria o apoio do sistema público de saúde para que o medicamento seja fornecido gratuitamente a todos os pacientes com FC com base no genótipo do CFTR. No entanto, isso levanta uma questão controversa: de quanto dinheiro dispomos?
No Brasil, aproximadamente 140 pacientes em um centro de referência para o tratamento da FC estão aptos para receber tratamento com medicamento de precisão, com custo total de US$ 40.308.420 por ano. A classificação das mutações do gene CFTR não foi levada em consideração porque a Food and Drug Administration não aprovou o uso de medicamentos de precisão para todas as mutações do CFTR (Tabela 1),(6) e os custos foram calculados com base no mercado dos EUA a fim de fornecer uma visão geral internacional do preço do medicamento. Nem nossa instituição nem o sistema público de saúde podem arcar com custos tão altos para tratar uma única doença. Um apoio financeiro de US$ 123.710.785,70 cobriria os custos de todos os procedimentos hospitalares, inclusive de todas as consultas médicas de rotina. Além disso, o custo do tratamento de pacientes com FC corresponde a cerca de um terço do custo total da manutenção das atividades hospitalares.
Alguns insights podem ajudar a resolver a controvérsia a respeito do custo (estimado) do tratamento de uma doença e de atribuir um preço a algo que não tem preço: a melhoria da saúde. Primeiro, um novo medicamento deve ser prescrito apenas para pacientes que realmente se beneficiarão dele, principalmente com base na resposta individual a medicamentos para FC em culturas de células nasais (de pacientes com variantes dos genes CFTR e modificadores).(7-10) Segundo, todos os genótipos do CFTR devem ser identificados para determinar se a medicina de precisão é viável. Terceiro, o governo e a indústria farmacêutica devem discutir custos, benefícios e uma parceria para benefício mútuo. Quarto, as sociedades médicas, os pacientes e suas famílias, organizações não governamentais e pesquisadores devem discutir as possibilidades da medicina de precisão, implantando políticas de adesão aos medicamentos e reduzindo os custos de terapias de longo prazo. Finalmente, a medicina de precisão deve ser empregada no tratamento de outras doenças. Por exemplo, o atalureno é um medicamento cujo uso no tratamento da FC foi suspenso, embora ainda seja prescrito para o tratamento da distrofia muscular de Duchenne e de Becker causadas por mutações sem sentido no gene DMD.
A medicina de precisão nos dá esperança, e as ferramentas de edição do genoma estão sendo investigadas para o tratamento da FC. Em longo prazo, a terapia gênica será usada como modelo de tratamento da FC.
A medicina de precisão é eficaz em relação ao custo? O investimento inicial pesado é legítimo? Qual é o custo total da inovação: desenvolver e lançar um novo medicamento e a questão moral do preço e lucro? Esta carta é uma reflexão sobre a aplicação de novas terapias (usando a FC como modelo) e seu impacto financeiro nos sistemas de saúde. Além disso, esta carta convida pacientes, sociedade civil, autoridades governamentais e a indústria farmacêutica a discutir os principais desfechos de novas terapias e marcadores, inclusive anos de vida ajustados pela qualidade.
O gene CFTR foi descrito como sendo a causa da FC em 1989. Desde então, sonhamos em tratar a doença em sua raiz. Fizemos um progresso notável com pesquisas sobre variabilidade fenotípica, variantes do CFTR e genes modificadores, e devemos continuar a pesquisar e traduzir esses achados em novos métodos diagnósticos e terapias. Embora os altos custos possam ser uma barreira, eles podem ser superados por meio da colaboração de todos os envolvidos. Acreditamos na promessa da medicina de precisão para melhorar a qualidade de vida e a expectativa de vida, e nossos esforços devem estar voltados para permitir que a medicina de precisão cumpra todas as expectativas.
REFERÊNCIAS
1. Ramsey BW, Davies J, McElvaney NG, Tullis E, Bell SC, Dřevínek P, et al. A CFTR potentiator in patients with cystic fibrosis and the G551D mutation. N Engl J Med. 2011;365(18):1663-1672. https://doi.org/10.1056/NEJMoa1105185
2. Rehman A, Baloch NU, Janahi IA. Lumacaftor-Ivacaftor in Patients with Cystic Fibrosis Homozygous for Phe508del CFTR. N Engl J Med. 2015;373(18):1783. https://doi.org/10.1056/NEJMc1510466
3. Taylor-Cousar JL, Munck A, McKone EF, van der Ent CK, Moeller A, Simard C, et al. Tezacaftor-Ivacaftor in Patients with Cystic Fibrosis Homozygous for Phe508del. N Engl J Med. 2017;377(21):2013-2023. https://doi.org/10.1056/NEJMoa1709846
4. Davies JC, Moskowitz SM, Brown C, Horsley A, Mall MA, McKone EF, et al. VX-659-Tezacaftor-Ivacaftor in Patients with Cystic Fibrosis and One or Two Phe508del Alleles. N Engl J Med. 2018;379(17):1599-1611. https://doi.org/10.1056/NEJMoa1807119
5. Keating D, Marigowda G, Burr L, Daines C, Mall MA, McKone EF, et al. VX-445-Tezacaftor-Ivacaftor in Patients with Cystic Fibrosis and One or Two Phe508del Alleles. N Engl J Med. 2018;379(17):1612-1620. https://doi.org/10.1056/NEJMoa1807120
6. Pereira SV, Ribeiro JD, Ribeiro AF, Bertuzzo CS, Marson FAL. Novel, rare and common pathogenic variants in the CFTR gene screened by high-throughput sequencing technology and predicted by in silico tools. Sci Rep. 2019;9(1):6234. https://doi.org/10.1038/s41598-019-42404-6
7. Kmit A, Marson FAL, Pereira SV, Vinagre AM, Leite GS, Servidoni MF, et al. Extent of rescue of F508del-CFTR function by VX-809 and VX-770 in human nasal epithelial cells correlates with SNP rs7512462 in SLC26A9 gene in F508del/F508del Cystic Fibrosis patients. Biochim Biophys Acta Mol Basis Dis. 2019;1865(6):1323-1331. https://doi.org/10.1016/j.bbadis.2019.01.029
8. Marson FAL, Bertuzzo CS, Ribeiro JD. Personalized or Precision Medicine? The Example of Cystic Fibrosis. Front Pharmacol. 2017;8:390. https://doi.org/10.3389/fphar.2017.00390
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10. de Lima Marson FA, Bertuzzo CS, Ribeiro JD. Personalized Drug Therapy in Cystic Fibrosis: From Fiction to Reality. Curr Drug Targets. 2015;16(9):1007-1017. https://doi.org/10.2174/1389450115666141128121118