A doença causada por coronavírus 2019 (COVID-19) foi recentemente descrita e se manifesta de forma grave em 15% dos pacientes.(1) Como os pulmões são os órgãos mais frequentemente acometidos, pode ocorrer deterioração clínica com evolução para insuficiência respiratória hipoxêmica e síndrome do desconforto ventilatório agudo (SDRA) em poucos dias. Diante de uma pandemia com importantes implicações prognósticas, é justificável a investigação de novos tratamentos para seu controle.
Em relação ao tratamento medicamentoso, dados de estudos com fármacos, incluindo corticoterapia sistêmica, foram recentemente divulgados. É importante destacar que as condutas utilizadas em SDRA também devem ser priorizadas no tratamento de suporte de pacientes sob cuidados de terapia intensiva, como estratégias protetoras de ventilação mecânica, bloqueio neuromuscular, uso da posição prona e administração conservadora de fluidos. Entretanto, apesar das semelhanças anatomopatológicas com SDRA, a maioria dos pacientes com COVID-19 apresenta mecânica ventilatória levemente comprometida e reduzido potencial de recrutamento, a despeito de significativa hipoxemia.(2,3) A discrepância entre alterações de trocas gasosas, achados radiológicos e de mecânica pulmonar pode indicar um componente vascular da doença, endossado por alta fração de shunt(4) e trombos na microcirculação identificados por estudos de necropsia.(5)
Nesse contexto, um estado de hipercoagulabilidade e alterações hematológicas têm sido descritos em até um terço dos pacientes, sendo a elevação dos níveis de dímero D um importante marcador de desfechos desfavoráveis.(6) Diante disso, algumas séries retrospectivas investigaram a frequência de tromboembolismo venoso (TEV) em pacientes com COVID-19, identificando sua presença em até 40% dos pacientes.(7) Se realizada uma busca ativa de TEV por meio de ultrassonografia de membros inferiores, essa taxa pode chegar a quase 70% dos pacientes em UTIs.(8)
Destacamos que o dímero D é um produto de degradação da fibrina que pode estar elevado devido à ativação simultânea da fibrinólise durante a formação dos trombos. Não é um exame específico e pode estar aumentado em outras situações, como câncer, período pós-operatório, infecções ou gravidez. Como descrito acima, a elevação desse marcador é comum na COVID-19, o que dificulta a sua utilização na investigação de TEV. Desse modo, em pacientes com COVID-19 e elevada probabilidade pré-teste de eventos trombóticos, especialmente naqueles com hipoxemia desproporcional, os níveis de dímero D não devem contribuir para a decisão clínica de prosseguir a investigação, visto que esse exame é mais importante para excluir a doença em populações com baixa prevalência de TEV (< 10%). Da mesma maneira, por apresentar baixa especificidade em populações com elevada prevalência (> 50%), ele não deve influenciar o diagnóstico nessa situação.
Assim, mesmo diante das evidências de um claro aumento de risco de TEV na COVID-19, a decisão de anticoagulação plena para todos os pacientes é questionável e não recomendada até a presente data pelas sociedades internacionais.(9) Nos casos suspeitos de TEV, sugere-se que a anticoagulação empírica seja cuidadosamente avaliada, especialmente ponderando-se o risco-benefício de acordo com a probabilidade clínica, buscando-se o diagnóstico assim que possível para minimizar os riscos de sangramento. Mais importante, a dosagem de dímero D é pouco útil na determinação diagnóstica quando analisada isoladamente, especialmente nessa população de alto risco, na qual o valor preditivo positivo do teste é baixo. Isso é ainda mais relevante naqueles sob cuidados de terapia intensiva com elevada resposta inflamatória. Entretanto, em pacientes com maior probabilidade clínica (por exemplo, com piora de hipoxemia a despeito de melhora radiológica e infecciosa), a avaliação quantitativa do teste pode ter utilidade. É possível que futuros estudos identifiquem pontos de corte mais elevados que aumentariam a especificidade do exame nessa doença. É importante reforçar a associação entre aumento dos níveis de dímero D e inflamação sistêmica, como demonstrada pela relação entre níveis elevados de proteína C reativa sérica e de dímero D, mesmo em pacientes com COVID-19.(10)
Se há controvérsia para o tratamento empírico de eventos macrovasculares, as evidências são ainda mais limitadas em relação à microtrombose. Um estado pró-coagulante é amplamente descrito em pacientes com sepse e SDRA, assim como em outras pneumonias virais, como influenza. De fato, lesões vasculares na SDRA já foram identificadas, não apenas em material de necrópsias, mas também na propedêutica de pacientes sob suporte intensivo por meio de angiografia pulmonar. É importante destacar que o diagnóstico de coagulação intravascular disseminada não está necessariamente presente em pacientes com microtrombose, e não há evidências para anticoagulação plena nessa situação clínica.
Apesar de alguns pesquisadores recomendarem doses intermediárias de profilaxia, essa conduta não se mostrou benéfica na redução de mortalidade em pacientes não oncológicos. Conforme esperado, há menor incidência de TEV com essa medida; entretanto, não se isenta de haver maior chance de eventos adversos hemorrágicos.(11) Em pacientes com COVID-19, isso pode ser agravado pela presença de outros fatores de risco para sangramento, como disfunção renal e lesões vasculares cerebrais até mesmo em pacientes jovens.(12)
Até a presente data, a melhor conduta em pacientes com COVID-19 é reforçar as medidas indicadas para doenças com elevado risco trombótico: realizar tromboprofilaxia habitual em todos os pacientes hospitalizados e aumentar a vigilância e a suspeita clínica, especialmente naqueles com alterações de trocas gasosas desproporcionais à inflamação sistêmica e aos achados radiológicos. Enquanto aguardamos os resultados dos ensaios clínicos de doses aumentadas de anticoagulantes nessa doença, recomendamos maior vigilância e rastreamento na presença de fatores de risco adicionais, como no uso de ventilação mecânica.
Espera-se que os resultados de estudos referentes à anticoagulação na COVID-19 sejam publicados em breve; isso não significa nos paralisarmos enquanto boas evidências para nos guiar ainda não estejam disponíveis. O adequado julgamento clínico personalizado suplanta as "receitas de bolo" e auxiliam na garantia de que o paciente receba cuidados de alta qualidade. Entretanto, as decisões clínicas devem ser baseadas nas melhores evidências disponíveis para doenças semelhantes e não apenas em qualquer evidência, considerando-se não apenas os benefícios, mas os riscos que a conduta pode ocasionar.
REFERÊNCIAS
1. Guan WJ, Ni ZY, Hu Y, Liang WH, Ou CQ, He JX, et al. Clinical Characteristics of Coronavirus Disease 2019 in China. N Engl J Med. 2020;382(18):1708-1720. https://doi.org/10.1056/NEJMoa2002032
2. Gattinoni L, Chiumello D, Caironi P, Busana M, Romitti F, Brazzi L, et al. COVID-19 pneumonia: different respiratory treatments for different phenotypes?. Intensive Care Med. 2020;46(6):1099-1102. https://doi.org/10.1007/s00134-020-06033-2
3. Pan C, Chen L, Lu C, Zhang W, Xia JA, Sklar MC, et al. Lung Recruitability in COVID-19-associated Acute Respiratory Distress Syndrome: A Single-Center Observational Study. Am J Respir Crit Care Med. 2020;201(10):1294-1297. https://doi.org/10.1164/rccm.202003-0527LE
4. Gattinoni L, Chiumello D, Rossi S. COVID-19 pneumonia: ARDS or not?. Crit Care. 2020;24(1):154. https://doi.org/10.1186/s13054-020-02880-z
5. Dolhnikoff M, Duarte-Neto AN, de Almeida Monteiro RA, da Silva LFF, de Oliveira EP, Saldiva PHN, et al. Pathological evidence of pulmonary thrombotic phenomena in severe COVID-19. J Thromb Haemost. 2020;18(6):1517-1519. https://doi.org/10.1111/jth.14844
6. Wynants L, Van Calster B, Collins GS, Riley RD, Heinze G, Schuit E, et al. Prediction models for diagnosis and prognosis of covid-19 infection: systematic review and critical appraisal [published correction appears in BMJ. 2020 Jun 3;369:m2204]. BMJ. 2020;369:m1328. https://doi.org/10.1101/2020.03.24.20041020
7. Helms J, Tacquard C, Severac F, Leonard-Lorant I, Ohana M, Delabranche X, et al. High risk of thrombosis in patients with severe SARS-CoV-2 infection: a multicenter prospective cohort study. Intensive Care Med. 2020;46(6):1089-1098. https://doi.org/10.1007/s00134-020-06062-x
8. Llitjos JF, Leclerc M, Chochois C, Monsallier JM, Ramakers M, Auvray M, et al. High incidence of venous thromboembolic events in anticoagulated severe COVID-19 patients [published online ahead of print, 2020 Apr 22]. J Thromb Haemost. 2020;10.1111/jth.14869. https://doi.org/10.1111/jth.14869
9. Moores LK, Tritschler T, Brosnahan S, Carrier M, Collen JF, Doerschug K, et al. Prevention, Diagnosis, and Treatment of VTE in Patients With COVID-19: CHEST Guideline and Expert Panel Report [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Chest. 2020;S0012-3692(20)31625-1. https://doi.org/10.1016/j.chest.2020.05.559
10. Yu B, Li X, Chen J, Ouyang M, Zhang H, Zhao X, et al. Evaluation of variation in D-dimer levels among COVID-19 and bacterial pneumonia: a retrospective analysis [published online ahead of print, 2020 Jun 10]. J Thromb Thrombolysis. 2020;1-10. https://doi.org/10.1007/s11239-020-02171-y
11. Eck RJ, Bult W, Wetterslev J, Gans ROB, Meijer K, Keus F, et al. Intermediate Dose Low-Molecular-Weight Heparin for Thrombosis Prophylaxis: Systematic Review with Meta-Analysis and Trial Sequential Analysis. Semin Thromb Hemost. 2019;45(8):810-824. https://doi.org/10.1055/s-0039-1696965
12. Kremer S, Lersy F, de Sèze J, Ferré JC, Maamar A, Carsin-Nicol B, et al. Findings in Se-vere COVID-19: A Retrospective Observational Study [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Radiology. 2020;202222. https://doi.org/10.1148/radiol.2020202222