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Cartas ao Editor

Câncer de pulmão na era da COVID-19: o que devemos esperar?

Lung cancer in the era of COVID-19: what can we expect?

Jose de Arimateia Batista Araujo-Filho1,2a, Paulo Garcia Normando3a, Marcelo Dantas Tavares de Melo3a, André Nathan Costa1,2a, Ricardo Mingarini Terra1,4a

AO EDITOR,

No Brasil, o câncer de pulmão é a neoplasia maligna mais letal e a terceira mais comum entre homens,(1,2) sendo ainda associado a elevadas morbidade e mortalidade apesar dos recentes avanços em seu tratamento. Estima-se que 70% dos casos de câncer de pulmão no país sejam diagnosticados em estágios avançados ou metastáticos (estágios III e IV, respectivamente), enquanto menos de 9% sejam diagnosticados no estágio I, número menor do que o aferido em alguns países desenvolvidos.(3) Sabemos que atrasos no diagnóstico da doença podem contribuir para a ocorrência de desfechos adversos (como rápida progressão da doença e morte), o que poderia estar parcialmente relacionado à disponibilidade limitada de procedimentos diagnósticos como biópsias (percutâneas ou cirúrgicas), mediastinoscopias e broncoscopias no nosso sistema público de saúde.(4) Nos últimos anos, a demora no diagnóstico tem sido um dos principais desafios enfrentados no manejo de pacientes com câncer de pulmão no Brasil.(2)

Mais recentemente, a pandemia por COVID-19 impôs ao sistema de saúde brasileiro novos desafios logísticos para lidar com a vertiginosa demanda de pacientes infectados com necessidade de internação hospitalar. Na tentativa de reduzir a disseminação da doença, consultas e atendimentos de urgência foram limitados em um primeiro momento, o que tornou o manejo de outras patologias uma tarefa desafiadora para médicos e pacientes. Soma-se a isso a imediata suspensão de procedimentos eletivos e cirúrgicos, incluindo diversos procedimentos oncológicos, bem como a realocação prioritária dos recursos disponíveis, contribuindo para a maior crise de saúde da nossa história recente.

Nesse contexto, estudos populacionais avaliando o impacto da corrente pandemia na prática clínica oncológica registraram atrasos no manejo de pacientes com diferentes tipos de câncer, inclusive câncer de pulmão,(5-7) o que poderia levar a um aumento no número de mortes evitáveis por câncer em um futuro próximo. Interessantemente, um desses estudos salientou uma especial preocupação com pacientes mais jovens, cujo risco de infecção hospitalar durante uma eventual internação não justifica qualquer atraso no tratamento, mesmo que durante poucas semanas.(6) Embora haja uma crescente preocupação na comunidade médica e científica internacional sobre o assunto, nenhum estudo dessa natureza foi realizado no Brasil até o presente momento.

A partir de dados epidemiológicos disponíveis nas plataformas de informação do Sistema Único de Saúde brasileiro,(8,9) fizemos uma análise observacional do número de internações hospitalares (IH) e procedimentos diagnósticos intervencionistas (biópsias pulmonares percutâneas ou cirúrgicas e broncoscopias), ambulatoriais e hospitalares, relacionados à neoplasia pulmonar (CID-10; códigos C33-C34) entre março e maio de 2020. Para a análise comparativa, usamos como referência os valores obtidos no mesmo período no ano de 2019 e os valores projetados por métodos de regressão linear para o corrente ano a partir das séries temporais do mesmo período entre 2016 e 2019 (Figura 1). Tal análise revelou que o número de IH por neoplasia pulmonar (traqueia, brônquios e pulmões) no período avaliado em 2020 foi 7% menor em relação ao mesmo período de 2019 (6.106 IH vs. 6.601 IH, respectivamente) e diferiu significativamente da tendência estimada para o corrente ano (6.879 IH; p = 0,02). No mesmo período de análise comparativa, os números de biópsias pulmonares e de broncoscopias realizadas pelo Sistema Único de Saúde diminuíram 13% (1.219 biópsias em 2020 vs. 1.399 biópsias em 2019) e 35% (6.423 broncoscopias vs. 9.952 broncoscopias), respectivamente, com diferença significativa (p = 0.002) para o número de broncoscopias estatisticamente projetado para 2020. Essa queda abrupta no número de broncoscopias pode estar relacionada ao fato de o procedimento estar potencialmente associado a um alto índice de contaminação da equipe assistencial, o que justificou a recomendação de suspensão dos procedimentos eletivos pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia durante o mês de março deste ano.



Tais dados precisam ser lidos com cuidado, sobretudo considerando-se o caráter observacional de nossa análise e o curto período de tempo avaliado. Não sabemos ainda como o sistema de saúde lidará com o retorno do fluxo de atendimento aos níveis pré-pandemia, principalmente se considerada a possibilidade de sobrecarga pela demanda represada de atendimentos. No entanto, eles reforçam a necessidade urgente de que sejam discutidas ações direcionadas à manutenção de um fluxo prioritário e organizado para pacientes com câncer de pulmão suspeito ou confirmado. Isso envolveria não apenas a conscientização da população de risco (sobretudo grandes fumantes) sobre a necessidade de manter os programas de triagem, como também o combate à insegurança e ao pânico que podem comprometer o adequado tratamento de alguns pacientes durante a pandemia. Além disso, dados epidemiológicos confiáveis e evidências científicas devem guiar o planejamento de programas públicos de saúde focados nessa nova realidade. Após a consolidação de um número maior de dados, novos estudos com maior tempo de seguimento e correlações com dados de mortalidade serão necessários.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Todos os autores contribuíram igualmente na concepção, redação, revisão e aprovação do manuscrito.

REFERÊNCIAS

1. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA) [homepage on the Internet]. Rio de Janeiro: INCA; c2019 [cited 2020 Aug 1]. Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. [Adobe Acrobat document, 122p.]. Available from: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//estimativa-2020-incidencia-de-cancer-no-brasil.pdf
2. Mathias C, Prado GF, Mascarenhas E, Ugalde PA, Gelatti ACZ, Carvalho ES, et al. Lung Cancer in Brazil. J Thorac Oncol. 2020;15(2):170-175. https://doi.org/10.1016/j.jtho.2019.07.028
3. Araujo LH, Baldotto C, Castro G Jr, Katz A, Ferreira CG, Mathias C, et al. Lung cancer in Brazil. J Bras Pneumol. 2018;44(1):55-64. https://doi.org/10.1590/s1806-37562017000000135
4. Tsukazan MTR, Terra RM, Detterbeck F, Santoro IL, Hochhegger B, Meirelles GSP, et al. Management of lung nodules in Brazil-assessment of realities, beliefs and attitudes: a study by the Brazilian Society of Thoracic Surgery (SBCT), the Brazilian Thoracic Society (SBPT) and the Brazilian College of Radiology (CBR). J Thorac Dis. 2018;10(5):2849-2856. https://doi.org/10.21037/jtd.2018.05.23
5. Maringe C, Spicer J, Morris M, Purushotham A, Nolte E, Sullivan R, et al. The impact of the COVID-19 pandemic on cancer deaths due to delays in diagnosis in England, UK: a national, population-based, modelling study. Lancet Oncol. 2020;21(8):1023-1034. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30388-0
6. Sud A, Torr B, Jones ME, Broggio J, Scott S, Loveday C, et al. Effect of delays in the 2-week-wait cancer referral pathway during the COVID-19 pandemic on cancer survival in the UK: a modelling study. Lancet Oncol. 2020;21(8):1035-1044. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30392-2
7. Sud A, Jones ME, Broggio J, Loveday C, Torr B, Garrett A, et al. Collateral damage: the impact on outcomes from cancer surgery of the COVID-19 pandemic. Ann Oncol. 2020;31(8):1065-1074. https://doi.org/10.1016/j.annonc.2020.05.009
8. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS (DATASUS) [homepage on the Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; c2020 [cited 2020 Jul 31]. Sistema de Informação Hospitalar Descentralizado. Available from: http://sihd.datasus.gov.br/
9. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS (DATASUS) [home-page on the Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; c2020 [cited 2020 Jul 31]. Sistema de Informações Ambulatoriais de Saúde (SIASUS). Available from: http://sia.datasus.gov.br/

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