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Função pulmonar e sintomas respiratórios em produtores de carvão vegetal no sul do Brasil: análise de uma coorte de oito anos

Lung function and respiratory symptoms in charcoal workers in southern Brazil: an eight-year cohort study

Rafael Machado de Souza1a, Cassia Cínara da Costa1a, Guilherme Watte2a, Paulo José Zimermann Teixeira2,3a

AO EDITOR,

A produção de carvão vegetal no sul do Brasil ocorre através de um processo artesanal, com a utilização de mão de obra humana, que começa com o corte, transporte e colocação de toras de lenha dentro dos fornos de tijolos e segue com o monitoramento de seu cozimento. Essa atividade expõe os trabalhadores, que muitas vezes não utilizam equipamentos de proteção individual, à fumaça e ao pó de carvão. Por se tratar de empresas familiares, os fornos estão localizados próximos das suas residências, promovendo uma provável exposição por toda a vida. O presente estudo teve como objetivo avaliar se ocorreram mudanças significativas nos sintomas respiratórios e nos resultados de espirometrias num intervalo de oito anos.

A primeira análise foi realizada no ano de 2008,(1) incluindo um número de 67 carvoeiros que realizavam as suas atividades laborais em 41 propriedades, durante um período médio de 19,1 anos. Os participantes responderam a um questionário estruturado e realizaram espirometria. Naquele momento, 9 pacientes apresentavam distúrbio ventilatório obstrutivo, detectado por espirometria, sendo 5 diagnosticados com asma brônquica e 4 com DPOC. Dos 67 carvoeiros avaliados em 2008, 4 indivíduos (5,8%) foram a óbito e 1 (1,5%) não foi localizado na segunda etapa do estudo. Em 2016, dos 62 indivíduos localizados (92,5%), 11 (16,4%) não aceitaram participar dessa nova etapa. Dessa forma, 51 indivíduos (82,2%) responderam ao questionário e realizaram novas espirometrias. Para as espirometrias foi utilizado o mesmo equipamento nos dois momentos (Microlab 3500; Micro Medical Ltd., Rochester, Inglaterra), sendo os testes realizados antes e depois do uso de broncodilatador (400 µg de salbutamol). Todos os procedimentos foram realizados conforme recomendações das diretrizes da American Thoracic Society/European Respiratory Society.(2) O estudo foi aprovado pelo comitê de ética da instituição (CAAE no. 50237415.5.0000.5348). Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido nos dois momentos do estudo.

A curva de dispersão de todos os dados foi avaliada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov apresentando normalidade. As variáveis contínuas foram apresentadas em média e desvio-padrão, e as diferenças entre as variáveis espirométricas foram avaliadas pelo teste t de Student. Foram apresentadas frequências absolutas e relativas, e a diferença entre a ocorrência de sintomas respiratórios foi realizada através do teste de McNemar. Adotou-se um nível de significância de 0,05. Todas as análises foram realizadas com o programa IBM SPSS Statistics, versão 24.0 (IBM Corporation, Armonk, NY, EUA).

Em 2016, participaram do estudo 51 indivíduos (80,9% do grupo avaliado em 2008), com média de idade de 54 ± 13 anos. A maioria (n = 38; 74,5%) era do sexo masculino, sendo 35 (68,6%) ativos na produção de carvão vegetal e 16 (31,4%) afastados dessa produção durante o intervalo de oito anos. Os sintomas nas vias aéreas superiores mais frequentes foram espirros, em 35 (68,6%); obstrução nasal, em 14 (27,5%); e secreção nasal, em 13 (25,5%). Já os sintomas nas vias aéreas inferiores mais frequentes foram tosse, em 14 (27,5%); expectoração, em 19 (37,3%); e expectoração crônica, em 8 (15,7%). A prevalência de sintomas respiratórios após oito anos não se alterou, com exceção do sintoma espirros, que aumentou em 2016 (39,2% vs. 68,6%; p < 0,05).

Foi possível observar um declínio nos volumes pulmonares dos trabalhadores, após oito anos de exposição, tanto nos tabagistas quanto nos não tabagistas. Ambos os subgrupos apresentaram uma redução significativa na CVF em litros e em % do valor predito, assim como no VEF1 em litros. Após o intervalo de oito anos de trabalho na produção do carvão vegetal, incluindo também aqueles que haviam se afastado da atividade, os 51 trabalhadores apresentaram um declínio da CVF pré-broncodilatador de 48 mL/ano e do VEF1 pré-broncodilatador de 37 mL/ano. Quando analisados os carvoeiros não tabagistas, o declínio médio da CVF e do VEF1, respectivamente, foi de 44 mL/ano e 35 mL/ano. Já os carvoeiros que eram tabagistas apresentaram diminuições significativas das médias da CVF e do VEF1 (58 mL/ano e 39 mL/ano, respectivamente). É interessante observar que os carvoeiros ativos na produção e tabagistas tiveram quedas da CVF e do VEF1 muito mais pronunciadas após o uso de broncodilatador. Quando analisados os trabalhadores com idade ≥ 40 anos (n = 44), não houve uma queda significativa da CVF, mas houve uma queda significativa do VEF1 nesse intervalo de tempo. Após o uso do broncodilatador, tanto a queda de 65 mL/ano na CVF quanto a queda de 45 mL/ano no VEF1 foram estatisticamente significativas (p < 0,001 para ambas). A Tabela 1 demonstra a modificação dos valores espirométricos no decorrer dos oito anos conforme sexo, atividade laboral, status tabágico e idade.



Nosso estudo mostrou que houve uma queda geral significativa nos volumes pulmonares (51 mL/ano na CVF e 38 mL/ano no VEF1) após o uso de broncodilatador. A capacidade pulmonar diminui com o passar dos anos, sendo um desfecho fisiológico esperado na maioria das pessoas,(3) que é modificado pelo meio ambiente e, especialmente, pela qualidade do ar. Um estudo(4) que avaliou o comportamento da função pulmonar demonstrou que um declínio considerado normal no VEF1 seria de ≤ 20 mL/ano em indivíduos com idade ≤ 40 anos. Já em pessoas com mais de 40 anos de vida, o declínio aumenta, com uma diminuição do VEF1 ao redor de 38 mL/ano.(4) No entanto, quando observamos o fator idade, 7 (13,7%) dos trabalhadores com idade ≤ 40 anos apresentaram um declínio de VEF1 de 62 mL/ano após o uso de broncodilatador. Isso sugere que a atividade laboral relacionada à produção do carvão vegetal possa ter potencializado a diminuição do VEF1 após esse período de oito anos.

Nós observamos que os participantes com idade > 40 anos apresentaram um declínio de VEF1 de 45 mL/ano após o uso de broncodilatador. Uma atividade laboral que se assemelha à dos carvoeiros pela exposição à fumaça são os bombeiros. Um estudo que avaliou 1.146 bombeiros nos EUA durante um intervalo de três anos na década de 70 observou um declínio de VEF1 e de CVF de, respectivamente, 30 mL/ano e 40 mL/ano.(5)

Nosso estudo tem duas importantes limitações: a perda de seguimento foi de 19% da amostra original e a ausência de um grupo controle não permitiu comparações com indivíduos não expostos a fumaça/pó de carvão. No entanto, apresentamos dados interessantes sobre uma atividade laboral bastante comum no nosso país e cujos indivíduos tiveram seus resultados espirométricos comparados num intervalo de oito anos.

Em conclusão, embora os trabalhadores da atividade carvoeira não tenham apresentado um aumento dos sintomas respiratórios, com exceção dos espirros, foi possível constatar uma redução dos volumes pulmonares no decorrer de oito anos, principalmente naqueles que eram tabagistas e com idade ≤ 40 anos.

REFERÊNCIAS

1. Souza RM, Andrade FM, Moura AB, Teixeira PJ. Respiratory symptoms in charcoal production workers in the cities of Lindolfo Collor, Ivoti and Presidente Lucena, Brazil. J Bras Pneumol. 2010;36(2):210-217. https://doi.org/10.1590/S1806-37132010000200009
2. Miller MR, Hankinson J, Brusasco V, Burgos F, Casaburi R, Coates A, et al. Standardisation of spirometry. Eur Respir J. 2005;26(2):319-338. https://doi.org/10.1183/09031936.05.00034805
3. Bui DS, Lodge CJ, Burgess JA, Lowe AJ, Perret J, Bui MQ, et al. Childhood predictors of lung function trajectories and future COPD risk: a prospective cohort study from the first to the sixth decade of life. Lancet Respir Med. 2018;6(7):535-544. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(18)30100-0
4. Knudson RJ, Clark DF, Kennedy TC, Knudson DE. Effect of aging alone on mechanical properties of the normal adult human lung. J Appl Physiol Respir Environ Exerc Physiol. 1977;43(6):1054-1062. https://doi.org/10.1152/jappl.1977.43.6.1054
5. Musk AW, Peters JM, Wegman DH. Lung function in fire fighters, I: a three year follow-up of active subjects. Am J Public Health. 1977;67(7):626-629. https://doi.org/10.2105/AJPH.67.7.626

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