Em um artigo publicado no Jornal Brasileiro de Pneumologia, Lapas et al.(1) realizaram a tradução do questionário Sleep Apnea Clinical Score (SACS) para a língua portuguesa do Brasil, adaptando-o a nossa cultura e validando-o como método de rastreio para a realização de polissonografia, concluindo que essa ferramenta pode ser utilizada para avaliar o risco de síndrome da apneia obstrutiva do sono no Brasil.(1)
Além de afetar definitivamente o diagnóstico, a falta de meios formais e objetivos também leva à indefinição de tratamento e planos de intervenção, podendo acarretar prejuízos na eficácia e eficiência do tratamento oferecido. Aspectos como a cultura, a semântica, a tecnologia, o conteúdo, padrões e conceitos são alicerces para que a comparação mantenha a equivalência nos diferentes níveis mencionados. Ademais, é necessário verificar se o instrumento realmente é categórico em sua proposta.
Algumas considerações devem ser feitas acerca do instrumento traduzido proposto. Não obstante a notável argumentação dos autores e a fundamental importância do SACS, a avaliação das equidades na adaptação cultural requer equipolência conceitual (exploração do construto de interesse com a finalidade de se verificar se os conceitos são relevantes no contexto aos quais estão sendo adaptados), de itens (avaliação da pertinência dos itens de acordo com cada domínio do instrumento), semântica (capacidade de transferência de sentido dos conceitos contidos no instrumento original para a versão adaptada) e operacional (comparação entre os aspectos de utilização do instrumento nas populações alvo e fonte), além da mensuração (investigação das propriedades psicométricas do instrumento), conforme adaptado por Reichenheim e Moraes.(2)
Limitações como a dificuldade de comparação dos resultados, considerando a variação de abordagem em diferentes culturas (apontando para as diferenças culturais e a pouca difusão do formulário entre os profissionais de saúde, considerando-se o escasso tempo disponível dos profissionais de saúde, que, por via de regra, trabalham em diversos serviços de saúde) e o fato de a metodologia utilizada não citar a necessidade do treinamento dos examinadores antes da utilização do teste podem corroborar vieses indesejáveis. O universo reduzido de pacientes (n = 20) também deve ser considerado. Beaton et al.(3) apontam a necessidade de apreciação dos predicados psicométricos, da confiabilidade e da validade para a análise de retenção de conteúdo da ferramenta original.
Considera-se temerária a aplicação do questionário com os valores de acurácia de 57,0% (IC95%: 45,8-67,6%) e sensibilidade de 45,3% (IC95%: 32,8-58,2%), conforme demonstrado por Lapas et al.,(1) uma vez que, nas análises depreendidas, verifica-se um número pequeno de pacientes submetidos ao questionário (dados demográficos restritos), bem como se infere ao longo do texto a ausência da necessidade de treinamento dos profissionais para a aplicação do importante instrumento proposto (com consequente entendimento semântico, cultural, tecnológico, conceitual e de padrões e conteúdo do instrumento, aspectos supracitados aqui).
REFERÊNCIAS
1. Lapas VSC, Faria AC, Rufino RL, Costa CHD. Translation and cultural adaptation of the Sleep Apnea Clinical Score for use in Brazil. J Bras Pneumol. 2020;46(5):e20190230. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20190230
2. Reichenheim ME, Moraes CL. Operationalizing the cross-cultural adaptation of epidemiological measurement instruments [Article in Portuguese]. Rev Saude Publica. 2007;41(4):665-673. https://doi.org/10.1590/s0034-89102006005000035
3. Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine (Phila Pa 1976). 2000;25(24):3186-3191. https://doi.org/10.1097/00007632-200012150-00014
Resposta dos autores
Autores: Verônica Sobral Camara Lapas1a, Anamelia Costa Faria1a, Rogério Lopes Rufino Alves1a, Cláudia Henrique da Costa1a
1. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
A síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) tem prevalência alta e necessita de polissonografia de noite inteira para ser adequadamente diagnosticada.(1,2) Para orientar quais pacientes devem ser priorizados para esse encaminhamento, vários instrumentos têm sido largamente utilizados.(2) Obviamente, todos apresentam algumas falhas, pois se houvesse correlação total com a polissonografia, esse exame ficaria obsoleto e poderia ser substituído pelo questionário em questão. Dentre as ferramentas mais utilizadas está o SACS,(3) que foi originalmente construído para ser respondido pelo paciente (sem interferência de técnicos ou médicos), seguido da mensuração da circunferência do pescoço, que deve ser feita por um profissional treinado. O questionário é formado por três perguntas bastante simples: a primeira visa estabelecer se o paciente tem hipertensão arterial sistêmica, e as outras duas questionam se ele apresenta ronco ou pausas respiratórias durante o sono. Devido à natureza e simplicidade das questões, a adaptação cultural ficou facilitada. Ao aplicarmos a versão traduzida aos pacientes, notamos que as questões do SACS não envolvem situações que possam ser interpretadas de formas diferentes devido a peculiaridades culturais. A confiabilidade do SACS foi estudada por meio da análise de consistência interna e o coeficiente alfa de Cronbach foi calculado em 0,82 (limite inferior do IC95%: 0,67), confirmando que o material traduzido poderia ser utilizado em pacientes com suspeita de SAOS.
A versão brasileira (SACS-BR) aplicada em 86 pacientes que realizaram polissonografia no laboratório de sono demonstrou sensibilidade de 45,3% (IC95%: 32,8-58,2%), especificidade de 90,9% (IC95%: 70,8-98,9%), valor preditivo positivo de 93,5% (IC95%: 79,0-98,2%), valor preditivo negativo de 36,4% (IC95%: 30,6-42,5%) e acurácia de 57,0% (IC95%: 45,8-67,6%). Esses valores estão de acordo com as avaliações feitas pelos autores do artigo original.(3) A presença de hipertensão arterial e a circunferência de pescoço são variáveis independentes altamente preditoras do risco de SAOS, e essa ferramenta inclui as duas na sua análise. Dessa forma, fica claro que esse instrumento pode estabelecer alta especificidade quando o paciente apresenta uma pontuação ≥ 15. Essa característica foi reconhecida pelos autores do SACS, que o consideram como uma ferramenta com alto valor preditivo positivo para o diagnóstico de SAOS.(3) No entanto, como comentamos, das três questões, uma pergunta se o paciente ronca, e outra pergunta se ele apresenta pausas respiratórias. Se o paciente dorme sozinho, existe uma tendência a responder que ele não apresenta esses sintomas mesmo que eles ocorram. Esse fato contribui para a queda da sensibilidade e acurácia do SACS. Essa característica já havia sido pontuada pelos autores do artigo original(3) e foi novamente avaliada no SACS-BR, sugerindo que se trata de uma característica da ferramenta em si e não da tradução ou da adaptação do material. Assim, concluímos que o SACS-BR, assim como a versão original do SACS, apresenta alta especificidade na seleção de pacientes que devem realizar polissonografia, mas que deve ser interpretado de forma cautelosa especialmente em indivíduos que dormem desacompanhados e que, até o momento, não existem dados que orientem o diagnóstico de SAOS sem a realização da polissonografia.
REFERÊNCIAS
1. Kapur VK, Auckley DH, Chowdhuri S, Kuhlmann DC, Mehra R, Ramar K, et al. Clinical Practice Guideline for Diagnostic Testing for Adult Obstructive Sleep Apnea: An American Academy of Sleep Medicine Clinical Practice Guideline. J Clin Sleep Med. 2017;13(3):479-504. https://doi.org/10.5664/jcsm.6506
2. Prasad KT, Sehgal IS, Agarwal R, Nath Aggarwal A, Behera D, Dhooria S. Assessing the likelihood of obstructive sleep apnea: a comparison of nine screening questionnaires. Sleep Breath. 2017;21(4):909-917. https://doi.org/10.1007/s11325-017-1495-4
3. Flemons WW, Whitelaw WA, Brant R, Remmers JE. Likelihood ratios for a sleep apnea clinical prediction rule. Am J Respir Crit Care Med. 1994;150(5 Pt 1):1279-1285. https://doi.org/10.1164/ajrccm.150.5.7952553