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Editorial

Conquistas em relação à sobrevida de pacientes com fibrose cística no Brasil

Cystic fibrosis in Brazil: achievements in survival

Fernanda Maria Vendrusculo1, Márcio Vinícius Fagundes Donadio1, Leonardo Araújo Pinto1

DOI: 10.36416/1806-3756/e20210140

A fibrose cística (FC) é uma doença genética autossômica recessiva, crônica e progressiva, caracterizada pelo comprometimento multissistêmico.(1) A doença é causada por mutações genéticas no braço longo do cromossomo 7, que codifica a proteína cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR, reguladora da condutância transmembrana na fibrose cística), criando um canal de cloreto na superfície da célula epitelial que permite o cotransporte de sódio e cloreto junto com água através da membrana celular.(2) No Brasil, estima-se que a incidência seja de 1:7.576 nascidos vivos, porém apresenta diferenças regionais, com valores mais elevados nas regiões Sul e Sudeste.(3) Segundo dados do Registro Brasileiro de FC, no ano de 2018, um total de 5.517 pacientes foram acompanhados nos centros de referência.(4)
 
Nas últimas décadas, diversos avanços no diagnóstico e tratamento da FC mudaram o cenário da doença, com aumento expressivo da expectativa de vida. De acordo com dados da Cystic Fibrosis Foundation Patient Registry, a mediana da sobrevida nos EUA é de 46,2 anos,(5) sendo que no Brasil essa estimativa é de 43,8 anos.(4) Atualmente, todos os estados brasileiros dispõem de um programa de cobertura para a triagem neonatal da FC. Dessa forma, a idade ao diagnóstico tem diminuído ao longo dos anos, com uma mediana de 3,7 meses em 2018.(4) Iniciar o tratamento precocemente em centros de referência especializados, compostos por uma equipe multidisciplinar, gera melhores resultados clínicos, impactando o prognóstico desses pacientes.(6) De acordo com os dados do Grupo Brasileiro de Estudos de FC, existem mais de 50 centros de atendimento distribuídos em 22 estados brasileiros.(4) Assim, os avanços no regime terapêutico, que incluem o controle das infecções pulmonares, o uso de mucolíticos, a reposição de enzimas pancreáticas, o uso de suplementos alimentares, a fisioterapia respiratória e a prática orientada de exercício físico, influenciam a sobrevida desses pacientes.(6) Além disso, o desenvolvimento de novas drogas, como os moduladores da CFTR, também deve contribuir para o aumento na expectativa de vida dos pacientes, sendo possível, a partir dessas intervenções, atuar na causa molecular da doença. Até o momento, quatro moduladores da CFTR já foram desenvolvidos para o tratamento de pacientes portadores de mutações específicas.(7) No entanto, esses medicamentos ainda não estão disponibilizados para a maior parte dos pacientes com FC no Brasil.
 
Embora a FC seja uma doença multissistêmica, a doença pulmonar representa a principal causa de morbidade e mortalidade desses pacientes. Um círculo vicioso de acúmulo de muco nas vias aéreas, inflamação crônica e infecções recorrentes leva a danos epiteliais, remodelamento do tecido e deterioração progressiva da função pulmonar.(8) Esses pacientes apresentam episódios de piora aguda dos sintomas respiratórios (exacerbação pulmonar), podendo necessitar o uso de antibióticos orais em eventos leves, mas podendo também ser hospitalizados para o uso de antibióticos intravenosos em muitos casos. (9) As exacerbações frequentes influenciam negativamente o prognóstico e aceleram o declínio da função pulmonar, além de estarem associadas ao aumento da morbidade e mortalidade nesses pacientes.(10) Com a evolução da doença e perda da função pulmonar, os pacientes em estágio avançado são encaminhados para transplante pulmonar. No entanto, a decisão de buscar o transplante envolve comparar a probabilidade de sobrevivência com e sem transplante, bem como avaliar o efeito da lista de espera e do transplante em si na qualidade de vida do paciente. De qualquer forma, a causa de óbito mais frequente nos pacientes com FC é a doença pulmonar. (4,5,11) Segundo a Cystic Fibrosis Foundation,(5) a taxa de mortalidade de pacientes com FC tem diminuído constantemente. Apesar de a mediana da idade de óbito ter aumentado (18,4 anos) nos últimos anos no Brasil,(4) a idade ainda é menor em comparação à da dos EUA(5) e da Europa,(11) onde essa mediana é de 32,4 e 29,0 anos, respectivamente.
 
No presente número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, o estudo de Santo et al.(12) descreve as causas de morte e a mortalidade relacionadas à FC no Brasil, com base em dados provenientes de declarações de óbito. No período entre 1999 e 2017, foram identificadas 2.854 mortes relacionadas à FC, sendo que a FC foi a causa básica de morte em 83,5% das declarações de óbito. Além disso, os resultados mostram uma tendência contínua de aumento das taxas de mortalidade, com uma variação percentual anual significativa de 6,84% nos homens e de 7,50% nas mulheres, bem como um aumento concomitante da mediana da idade ao óbito, de 7,5 anos em 1999 para 56,5 anos em 2017. Os autores descreveram os resultados como contraintuitivos, considerando-se que os avanços no diagnóstico e tratamento da FC poderiam resultar em um aumento da idade ao óbito, mas não das taxas de mortalidade. No entanto, podemos considerar que o aumento nas taxas de mortalidade ao longo dos anos apresenta uma relação direta com o maior número de pacientes diagnosticados com FC devido à implementação e expansão da triagem neonatal no Brasil. Além disso, o dado mais relevante no estudo de Santo et al.(12) foi o aumento expressivo na mediana de idade ao óbito dos pacientes, que deve estar relacionado aos avanços no diagnóstico e tratamento.
 
Dessa forma, é possível concluir que o cenário da FC no Brasil vem sofrendo diversas mudanças ao longo dos últimos anos, decorrentes de múltiplos fatores, que incluem avanços no diagnóstico e tratamento, assim como melhor estruturação e expansão de centros multidisciplinares de assistência, o que repercute em um aumento expressivo da expectativa de vida dos pacientes. A perspectiva de ampliação do uso de novos fármacos aponta para uma melhora ainda mais relevante nas taxas de mortalidade, na expectativa de vida e nos marcadores de qualidade de vida dos pacientes com FC no Brasil.
 
REFERÊNCIAS
 



  1. Gibson RL, Burns JL, Ramsey BW. Pathophysiology and management of pulmonary infections in cystic fibrosis. Am J Respir Crit Care Med. 2003;168(8):918-951. https://doi.org/10.1164/rccm.200304-505SO

  2. Sturm R. An advanced stochastic model for mucociliary particle clearance in cystic fibrosis lungs. J Thorac Dis. 2012;4(1):48-57. https://doi.org/10.3978/j.issn.2072-1439.2011.09.09

  3. Raskin S, Pereira-Ferrari L, Reis FC, Abreu F, Marostica P, Rozov T, et al. Incidence of cystic fibrosis in five different states of Brazil as determined by screening of p.F508del, mutation at the CFTR gene in newborns and patients. J Cyst Fibros. 2008;7(1):15-22. https://doi.org/10.1016/j.jcf.2007.03.006

  4. Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFC) [homepage on the Internet]. c2021 [cited 2021 Mar 1]. Registro Brasileiro de Fibrose Cística (REBRAFC). Relatório Anual de 2018. [Adobe Acrobat documento, 68p.]. 2018. Available from: http://portalgbefc.org.br/ckfinder/userfiles/files/REBRAFC_2018.pdf

  5. Cystic Fibrosis Foundation (CFF) [homepage on the Internet]. Bethesda: CFF; c2021 [cited 2021 Mar 1]. Patient Registry. Annual Data Report 2019. Available from: https://www.cff.org/Research/Researcher-Resources/Patient-Registry/2019-Patient-Registry-Annual-Data-Report.pdf

  6. Athanazio RA, Silva Filho LVRF, Vergara AA, Ribeiro AF, Riedi CA, Procianoy EDFA, Adde FV, et al. Brazilian guidelines for the diagnosis and treatment of cystic fibrosis. J Bras Pneumol. 2017;43(3):219-245. https://doi.org/10.1590/s1806-37562017000000065

  7. Lopes-Pacheco M. CFTR Modulators: The Changing Face of Cystic Fibrosis in the Era of Precision Medicine. Front Pharmacol. 2020;10:1662. https://doi.org/10.3389/fphar.2019.01662

  8. Lopes-Pacheco M. CFTR Modulators: Shedding Light on Precision Medicine for Cystic Fibrosis. Front Pharmacol. 2016;7:275. https://doi.org/10.3389/fphar.2016.00275

  9. Goss CH, Burns JL. Exacerbations in cystic fibrosis. 1: Epidemiology and pathogenesis. Thorax. 2007;62(4):360-367. https://doi.org/10.1136/thx.2006.060889

  10. Sanders DB, Bittner RC, Rosenfeld M, Hoffman LR, Redding GJ, Goss CH. Failure to recover to baseline pulmonary function after cystic fibrosis pulmonary exacerbation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(5):627-632. https://doi.org/10.1164/rccm.200909-1421OC

  11. European Cystic Fibrosis Foundation (ECFS) [homepage on the Internet]. Denmark: ECFS; c2021 [cited 2021 Mar 1]. Patient Registry Annual Data Report 2018. [Adobe Acrobat document, 175p.]. Available from: https://www.ecfs.eu/sites/default/files/general-content-files/working-groups/ecfs-patient-registry/ECFSPR_Report_2018_v1.4.pdf

  12. Santo AH, Silva-Filho LVRFD. Cystic fibrosis-related mortality trends in Brazil for the 1999-2017 period: a multiple-cause-of-death study. J Bras Pneumol. 2021;47(2):e20200166. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200166



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