AO EDITOR, A síndrome de Lady Windermere (SLW) é o epônimo que designa uma forma bronquiolocêntrica nodular de doença pulmonar que é causada por micobactérias não tuberculosas (MNT) e que ocorre predominantemente em mulheres idosas brancas altas e magras sem doença pulmonar prévia. Os achados tomográficos da SLW incluem nódulos centrolobulares, opacidades do tipo árvore em brotamento e bronquiectasias. As lesões ocorrem predominantemente no lobo médio e na língula (Figura 1). Embora o complexo Mycobacterium avium seja o agente causador mais comum, outras espécies podem causar a SLW. A doença geralmente tem evolução crônica e comportamento indolente e é caracterizada por um aumento progressivo das lesões. Certas características clínicas e laboratoriais são mais comuns em pacientes com SLW do que na população geral: escoliose, pectus excavatum, prolapso da válvula mitral, síndrome de hipermobilidade articular benigna e mutações genéticas (relacionadas à fibrose cística, função ciliar, doenças do tecido conjuntivo e função imunológica). Foram também relatadas alterações endócrinas (redução de estrogênio, leptina e desidroepiandrosterona, bem como aumento de adiponectina e cortisol, por exemplo). A maioria dos pacientes com SLW não é fumante, e a doença também pode afetar homens, embora com frequência muito menor. A média de idade no momento do diagnóstico geralmente é maior em homens que em mulheres. O comprometimento da depuração brônquica faz parte do processo fisiopatológico. A SLW é multifatorial: envolve fatores genéticos e ambientais, assim como fatores relacionados ao envelhecimento.
Propomos aqui um mecanismo fisiopatológico para a SLW baseado no conhecimento da fisiologia e fisiopatologia do sistema nervoso autônomo, no processo de envelhecimento e na menopausa. Sugerimos que alterações da mecânica respiratória e disfunção autonômica participam do processo patológico; a SLW ocorre predominantemente em mulheres em virtude de diferenças autonômicas específicas do sexo, além dos efeitos do envelhecimento e da menopausa. Uma redução relativa da atividade parassimpática, alterações da elasticidade do pulmão e da parede torácica e uma redução da força muscular respiratória podem predispor à colonização e doença por MNT. Alterações autonômicas podem reduzir a produção de muco e modificar suas características viscoelásticas, comprometendo a função da musculatura lisa das vias aéreas e o reflexo de tosse. A vagotomia inibe significativamente ou suprime o reflexo de tosse. A atropina e o bloqueio vagal reduzem a secreção basal das glândulas submucosas traqueobrônquicas. A atropina inalatória retarda o transporte mucociliar, o que sugere que o tônus vagal influencia a secreção, a depuração das secreções traqueobrônquicas ou ambas. O sistema nervoso parassimpático também atua por meio da regulação local da inflamação e imunidade pulmonar.
A desnervação gera hipersensibilidade aos estímulos, que pode ser atribuída, pelo menos parcialmente, a um aumento do número de receptores na membrana pós-sináptica. A metacolina atua nos receptores muscarínicos. Em um estudo no qual foram comparados pacientes com asma submetidos ao teste de broncoprovocação com metacolina, os idosos apresentaram maior redução da CVF e menor percepção de broncoconstrição do que os mais jovens.
(1) Em um estudo com pacientes com DPOC submetidos ao teste de broncoprovocação com metacolina, a prevalência de hiper-reatividade das vias aéreas foi maior em mulheres que em homens.
(2) Esses achados podem ser atribuídos, pelo menos parcialmente, à disfunção autonômica. Fatores sistêmicos e locais estão relacionados com desnervação e com infecções em indivíduos submetidos a transplante de pulmão. Em indivíduos submetidos a transplante de órgão sólido, a infecção por MNT é mais comum naqueles submetidos a transplante de pulmão.
As diferenças entre homens e mulheres quanto ao equilíbrio autonômico estão relacionadas com variações hormonais na mulher; as alterações autonômicas também estão relacionadas com o envelhecimento. Modificações do colágeno da matriz extracelular podem comprometer a atividade autonômica. Muitas fibras nervosas parassimpáticas e quase todas as fibras nervosas simpáticas tocam as células efetoras ou, em alguns casos, acabam no tecido conjuntivo adjacente às células a serem estimuladas. A acetilcolinesterase está ligada ao colágeno e aos glicosaminoglicanos no tecido conjuntivo local. Um estudo relatou as interações entre acetilcolinesterase e colágeno, esfingomielina e fosfatidilcolina.
(3) Foram relatadas diferenças entre mulheres na menopausa e na pré-menopausa, bem como entre mulheres na menopausa e homens quanto a biomarcadores de renovação do colágeno.
(4) Outros metabólitos bioquímicos também se alteram durante a menopausa: esfingomielina (um componente da membrana celular, principalmente de células nervosas), leucina e fosfatidilcolina.
(5) Um estudo multicêntrico de base populacional realizado na Europa constatou que a função pulmonar (principalmente a CVF) diminuiu mais rapidamente em mulheres em transição e na pós-menopausa, além da alteração esperada em virtude da idade.
(6) Foram descritas alterações autonômicas na síndrome de hipermobilidade articular, síndrome de Ehlers-Danlos e síndrome do prolapso da válvula mitral. A SLW pode apresentar manifestações em comum com essas doenças.
As diferenças autonômicas podem ser responsáveis pela diferença entre homens e mulheres com fibrose cística quanto à média de expectativa de vida, que é 2 anos e 7 meses menor para as mulheres.
(7,8) Essa hipótese é consistente com o fato de que, embora as mulheres com fibrose cística recebam transplante de pulmão mais cedo que os homens, a sobrevida pós-transplante é a mesma para homens e mulheres e independente do sexo do doador.
(7) É importante notar também que as meninas com fibrose cística têm infecções mais cedo na vida do que os meninos, e a maior diferença entre indivíduos do sexo masculino e feminino quanto à idade de início é quanto a infecções por MNT.
(8) Embora a DPOC esteja relacionada com doença pulmonar fibrocavitária por MNT, a maioria dos pacientes com SLW não é fumante. A nicotina atua nos receptores nicotínicos de acetilcolina. Há também diferenças entre homens e mulheres quanto aos efeitos do tabagismo nos receptores nicotínicos de acetilcolina.
(9) A ausência de estimulação dos receptores nicotínicos pode estar relacionada com predisposição para a SLW.
Em um estudo com animais, relatou-se que a nebulização de solução salina hipertônica estimula os receptores aferentes vagais pulmonares,
(10) o que poderia explicar parcialmente o efeito terapêutico da nebulização de solução salina hipertônica em humanos infectados por MNT.
O aumento do número de casos diagnosticados de doença pulmonar por MNT no mundo e a terapia atual para a doença (longos ciclos de antibióticos, resultando em efeitos colaterais, resistência e recidiva) reforçam a necessidade de novas linhas de pesquisa. Estudos a respeito do sistema nervoso autônomo e respiratório poderiam ajudar a compreender melhor o mecanismo fisiopatológico da SLW e ter impacto em condições pulmonares e sistêmicas, tais como pós-operatório de transplante de pulmão, fibrose cística, tabagismo e declínio da função pulmonar na menopausa, bem como em outras doenças que se comportam de forma diferente em homens e mulheres, tais como hipertensão arterial pulmonar idiopática e a resposta inflamatória na COVID-19.
REFERÊNCIAS
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