Continuous and bimonthly publication
ISSN (on-line): 1806-3756

Licença Creative Commons
21642
Views
Back to summary
Open Access Peer-Reviewed
Cartas ao Editor

Hiperoxemia e uso excessivo de oxigênio na SDRA relacionada à COVID-19: resultados preliminares de um estudo de coorte prospectivo

Hyperoxemia and excessive oxygen use in COVID-19-related ARDS: preliminary results of a prospective cohort study

Edimar Pedrosa Gomes1,2, Maycon Moura Reboredo1,2, Giovani Bernardo Costa1a, Erich Vidal Carvalho1,2, Bruno Valle Pinheiro1,2

DOI: 10.36416/1806-3756/e20210104

 AO EDITOR,
 
Pacientes com pneumonia grave por COVID-19 frequentemente preenchem a definição de Berlim para SDRA(1,2) e devem ser ventilados com parâmetros protetores para evitar lesão pulmonar induzida pela ventilação mecânica (VM).(3,4) Recomenda-se uma SaO2 alvo de 92-96%,(5) pois uma SaO2 < 92% ou > 96% pode ser prejudicial.(6,7)
 
Estudos experimentais demonstraram que exposição a FiO2 elevada pode induzir inflamação pulmonar pela produção excessiva de espécies reativas de oxigênio.(8) Além do mais, a hiperoxemia (ou seja, o aumento da PaO2) tem efeitos sistêmicos deletérios, como redução do débito cardíaco e vasoconstrição na circulação cerebral e coronária.(9) Apesar desses riscos, a hiperoxemia e o uso excessivo de oxigênio são comuns em pacientes com SDRA.(10)
 
Durante a pandemia de COVID-19, o uso excessivo de oxigênio causa um problema adicional: a escassez de oxigênio. O grande número de pacientes que necessitam de suporte ventilatório simultaneamente pode comprometer os estoques de oxigênio. Nesse cenário, evitar a hiperoxemia e o uso excessivo de oxigênio torna-se uma importante estratégia para poupar oxigênio. Levantamos a hipótese de que a hiperoxemia e o uso excessivo de oxigênio podem ser eventos comuns em pacientes com COVID-19 intubados. Portanto, nosso objetivo foi determinar a frequência desses eventos durante os primeiros dois dias de VM em pacientes com COVID-19.
 
Trata-se de uma análise preliminar de um estudo de coorte prospectivo realizado em duas UTIs exclusivas para COVID-19 (uma no Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora e a outra no Hospital Regional Doutor João Penido, ambos localizados na cidade de Juiz de Fora, MG, Brasil) desde 1º de março de 2020. O objetivo do estudo principal é descrever os ajustes dos parâmetros da VM em pacientes com COVID-19. O estudo foi aprovado pelos comitês de ética e pesquisa das duas instituições, e um parente próximo do paciente ou seu responsável legal assinou um termo de consentimento livre e esclarecido.
 
Pacientes consecutivos ≥ 18 anos de idade, infectados pelo SARS-CoV-2 (confirmação por RT-PCR) e em uso de VM invasiva por pelo menos 48 h estavam aptos a participar do estudo. Foram excluídos pacientes transferidos de outro hospital que estiveram sob VM invasiva, pacientes com suspensão dos tratamentos de suporte de vida e pacientes com hipoxemia (PaO2 < 55 mmHg independentemente da FiO2) no primeiro dia de VM. Os parâmetros ventilatórios foram ajustados pelo médico assistente.
 
Os parâmetros clínicos e laboratoriais foram obtidos no dia da admissão na UTI. No primeiro e no segundo dia de VM (às 8 h da manhã), foram registrados os ajustes dos parâmetros do ventilador e as medidas de gasometria arterial. Definimos hiperoxemia como PaO2 > 100 mmHg e uso excessivo de oxigênio como FiO2 > 60% em pacientes com hiperoxemia. Hiperoxemia persistente foi definida como presença de hiperoxemia no primeiro e no segundo dia de VM.
 
Os resultados são apresentados como medianas e intervalos interquartis ou frequências absolutas e relativas. As diferenças entre os pacientes normoxêmicos e aqueles com hiperoxemia foram testadas com o teste de Wilcoxon ou o teste do qui-quadrado, conforme apropriado.
 
Durante o período do estudo, 239 pacientes com COVID-19 confirmada foram admitidos em uma das UTIs, sendo que 122 deles foram excluídos da amostra estudada: 82 pacientes não receberam VM invasiva, 24 receberam VM invasiva por menos de 48 h, 14 tiveram os tratamentos de suporte de vida suspensos e 2 estavam hipoxêmicos no primeiro dia de VM. Portanto, 117 pacientes foram incluídos no estudo. A mediana de idade dos pacientes foi de 66 (58-75) anos, e 61 (52,1%) eram do sexo masculino. No momento da admissão, a mediana do Simplified Acute Physiology Score 3 foi de 48 (41-57) e a mediana do índice de comorbidade de Charlson foi de 3 (2-5). No primeiro dia de VM, as medianas dos seguintes parâmetros foram: PaO2/FiO2 = 191 (142-248) mmHg; pressão de platô = 24 (22-28) cmH2O; pressão de distensão = 14 (11-16) cmH2O; PEEP = 10 (10-12) cmH2O; e complacência do sistema respiratório = 29,3 (24,7-35,6) mL/cmH2O. Durante o período de VM, 72 pacientes (62%) foram colocados em posição prona e 40 pacientes (34%) necessitaram de hemodiálise. A mortalidade hospitalar por todas as causas foi de 63,0%, e a mortalidade na UTI foi de 59,3%.
 
A hiperoxemia estava presente em 80 (68,4%) e 74 (63,2%) dos pacientes no primeiro e no segundo dia de VM, respectivamente, independentemente das faixas de FiO2. Dos 80 pacientes com hiperoxemia no primeiro dia, 53 (66,3%) persistiram com PaO2 > 100 mmHg no segundo dia. As distribuições de frequência relativa cumulativa de PaO2 foram semelhantes no primeiro e no segundo dia (Figura 1).


 
Os níveis de FiO2 diminuíram no segundo dia de VM, em comparação aos do primeiro dia, nos pacientes com hiperoxemia (Figura 1). Houve redução do uso excessivo de oxigênio no segundo dia (28 pacientes [23,9%]) em comparação ao do primeiro dia (43 pacientes [36,8%]; p = 0,03; Figura 1). No entanto, houve aumento do número de pacientes com hiperoxemia entre aqueles com FiO2 < 0,6 (46 pacientes no segundo dia vs. 37 no primeiro dia; Figura 1). Juntos, esses achados sugerem que os intensivistas descuidaram-se de diminuir a FiO2 quando as trocas gasosas melhoraram.
 
A proporção de pacientes com hiperoxemia em nossa coorte foi maior do que a encontrada em um estudo semelhante incluindo pacientes com SDRA por outras causas.(10) Naquele estudo,(10) 30% dos pacientes apresentaram hiperoxemia no primeiro dia de VM; entre eles, a FiO2 estava elevada em 66%. O grande número de pacientes admitidos nas UTIs durante a pandemia de COVID-19, resultando em sobrecarga de trabalho dos profissionais de saúde, pode explicar essa diferença. Além do mais, a necessidade de utilização de equipamento de proteção individual pode reduzir a frequência com que pacientes com COVID-19 são atendidos por médicos, enfermeiros e fisioterapeutas respiratórios, bem como a frequência com que as parâmetros do ventilador mecânico são ajustados.
Durante a pandemia de COVID-19, alguns hospitais ficaram sem oxigênio no Brasil. Nossos resultados mostram a importância da otimização dos níveis de PaO2 e de FiO2 durante o suporte ventilatório de pacientes com COVID-19. Essa pode ser uma estratégia útil para minimizar a escassez de oxigênio.
 
O presente estudo apresenta limitações. Nossas análises se basearam na gasometria arterial e na FiO2 determinadas em um horário específico a cada dia; portanto, podem não refletir o espectro dos valores ocorridos ao longo daquele dia. Além disso, avaliamos hiperoxemia e FiO2 elevada apenas nos primeiros dois dias de VM, e não podemos descartar a possibilidade de que os ajustes após o segundo dia de VM possam ter interferido nos resultados finais.
 
Em conclusão, a hiperoxemia e o excessivo de oxigênio são eventos que podem ser comuns durante os primeiros dias de VM em pacientes com COVID-19. Evitar a ocorrência desses eventos deve servir como estratégia para reduzir a escassez de oxigênio.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
EPG: concepção e desenho do estudo; aquisição, análise e interpretação dos dados; redação e revisão das versões preliminares; e aprovação da versão final. MMR: análise e interpretação dos dados; redação e revisão das versões preliminares; e aprovação da versão final. GBC: aquisição, análise e interpretação dos dados; revisão das versões preliminares, fornecendo conteúdo intelectual de importância crítica; e aprovação da versão final. EVC: concepção e desenho do estudo; aquisição dos dados; revisão das versões preliminares, fornecendo conteúdo intelectual de importância crítica; e aprovação da versão final. BVP: concepção e desenho do estudo; análise e interpretação dos dados; redação e revisão das versões preliminares; e aprovação da versão final.

 REFERÊNCIAS

1.            Ferrando C, Suarez-Sipmann F, Mellado-Artigas R, Hernández M, Gea A, Arruti E, et al. Clinical features, ventilatory management, and outcome of ARDS caused by COVID-19 are similar to other causes of ARDS [published correction appears in Intensive Care Med. 2020 Dec 2;:]. Intensive Care Med. 2020;46(12):2200-2211. https://doi.org/10.1007/s00134-020-06192-2
2.            Barbeta E, Motos A, Torres A, Ceccato A, Ferrer M, Cilloniz C, et al. SARS-CoV-2-induced Acute Respiratory Distress Syndrome: Pulmonary Mechanics and Gas-Exchange Abnormalities. Ann Am Thorac Soc. 2020;17(9):1164-1168. https://doi.org/10.1513/AnnalsATS.202005-462RL
3.            Fan E, Del Sorbo LD, Goligher EC, Hodgson CL, Munshi L, Walkey AJ, et al. An Official American Thoracic Society/European Society of Intensive Care Medicine/Society of Critical Care Medicine Clinical Practice Guideline: Mechanical Ventilation in Adult Patients with Acute Respiratory Distress Syndrome [published correction appears in Am J Respir Crit Care Med. 2017 Jun 1;195(11):1540]. Am J Respir Crit Care Med. 2017;195(9):1253-1263. https://doi.org/10.1164/rccm.201703-0548ST
4.            Marini JJ, Gattinoni L. Management of COVID-19 Respiratory Distress. JAMA. 2020;323(22):2329-2330. https://doi.org/10.1001/jama.2020.6825
5.            National Institutes of Health [homepage on the Internet]. Bethesda: NIH; c2021 [cited 2021 Jan 16]. Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Treatment Guidelines. Available from: https://www.covid19treatmentguidelines.nih.gov/
6.            Barrot L, Asfar P, Mauny F, Winiszewski H, Montini F, Badie J, et al. Liberal or Conservative Oxygen Therapy for Acute Respiratory Distress Syndrome. N Engl J Med. 2020;382(11):999-1008. https://doi.org/10.1056/NEJMoa1916431
7.            Girardis M, Busani S, Damiani E, Donati A, Rinaldi L, Marudi A, et al. Effect of Conservative vs Conventional Oxygen Therapy on Mortality Among Patients in an Intensive Care Unit: The Oxygen-ICU Randomized Clinical Trial. JAMA. 2016;316(15):1583-1589. https://doi.org/10.1001/jama.2016.11993
8.            Kallet RH, Matthay MA. Hyperoxic acute lung injury. Respir Care. 2013;58(1):123-141. https://doi.org/10.4187/respcare.01963
9.            Hafner S, Beloncle F, Koch A, Radermacher P, Asfar P. Hyperoxia in intensive care, emergency, and peri-operative medicine: Dr. Jekyll or Mr. Hyde? A 2015 update. Ann Intensive Care. 2015;5(1):42. https://doi.org/10.1186/s13613-015-0084-6
10.          Madotto F, Rezoagli E, PhamT , Schmidt M, McNicholas B, Protti A, et al. Hyperoxemia and excess oxygen use in early acute respiratory distress syndrome: insights from the LUNG SAFE study. Crit Care. 2020;24(1):125. https://doi.org/10.1186/s13054-020-2826-6

Indexes

Development by:

© All rights reserved 2024 - Jornal Brasileiro de Pneumologia