Dois anos se passaram desde o primeiro caso de COVID-19 causada por um novo coronavírus, o SARS-CoV-2, na cidade de Wuhan, China. Os números da maior pandemia dos últimos 100 anos falam por si: cerca de 255 milhões de casos notificados, 5,25 milhões de óbitos, dos quais mais de 615 mil no Brasil (11,7% do total), e um contingente de sequelados ainda não devidamente avaliado. O surgimento de variantes virais torna incerta a sua superação por completo. Felizmente, em feito inédito, mais de 8 bilhões de doses de vacinas desenvolvidas em tempo curto foram administradas. Dessas, 314 milhões no nosso país, apesar de difusão de ideias e ações negacionistas pelo governo federal, levando à falta de coordenação nacional, à desinformação e a uma nociva e desnecessária politização da crise sanitária em prejuízo do enfrentamento baseado na ciência, na gestão eficiente e na coesão social solidária como elementos fundamentais.(1,2)
Logo nos primeiros meses de 2020 se viu que 10-15% dos pacientes que necessitam de hospitalização desenvolvem um quadro de insuficiência respiratória hipoxêmica de difícil tratamento, muitos com SDRA grave. O desafio era enorme. Inexistiam recomendações para o suporte ventilatório não invasivo. Havia justificado temor de que essas estratégias resultassem em maciça contaminação de profissionais da linha de frente. O termo “intubação precoce” foi amplamente empregado e, infelizmente, praticado. Uma coorte das primeiras 250 mil hospitalizações pela doença no país evidenciou uma alarmante mortalidade de 80% dos pacientes intubados.(3)
Ainda assim, toda crise é também uma oportunidade. A pneumologia, pelas próprias características da COVID-19, foi convocada a dar resposta e assumir o protagonismo no enfrentamento à pandemia. A nossa participação tem se dado em frentes diversas, abrangendo a assistência aos pacientes, a disseminação e o compartilhamento de conhecimentos, a interface com outras especialidades, a pesquisa, a inovação e a participação nas ações governamentais, na gestão da crise e na comunicação com a sociedade.(4)
Fomos chamados a participar do cuidado aos pacientes nas emergências, Unidades de Pronto Atendimento, UTIs e enfermarias em todas as regiões do país. Assumimos a coordenação de unidades de atendimento, definindo e organizando protocolos e procedimentos, escrevendo e divulgando documentos de orientação técnica, bem como ajudando a definir estruturas, equipamentos e processos, desde a oxigenoterapia ao suporte com oxigenação extracorpórea, em cooperação com outras especialidades como terapia intensiva, anestesiologia, clínica médica, médicos da atenção primária, fisioterapeutas, enfermeiras e muitos outros, incluindo os gestores do Sistema Único de Saúde e da rede de Saúde Suplementar. Já sabíamos que éramos poucos para essa hercúlea tarefa. Há uma carência de formação e de treinamento prático em ventilação mecânica no país, assim como no mundo. Dos 4.671 sócios atuais da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), a Comissão de Terapia Intensiva conta com apenas 328 inscritos (7%). Esse fato obrigou o recrutamento de profissionais inexperientes nesse campo de atuação, o que demandou de pneumologistas com expertise na área atividades de supervisão e de ensino continuado ou a coordenação de atividades por telemedicina criadas em meio ao colapso de boa parte do sistema de saúde (Figura 1).(5)
Um ponto de destaque tem sido a produção de conhecimento de forma contínua, profusa e abrangente relacionado à COVID-19, gerando evidências para embasar protocolos e contribuindo para a otimização da atenção ambulatorial e hospitalar dos pacientes. No Jornal Brasileiro de Pneumologia, até o presente número, foram publicados 48 artigos sobre a COVID-19, enfocando desde aspectos epidemiológicos até a reabilitação de pacientes. O ecossistema da inovação em saúde ganhou impulso com a participação de pneumologistas em equipes interdisciplinares visando desenvolver novos dispositivos e procedimentos que pudessem mitigar as ondas pandêmicas. No Ceará, desenvolvemos em curto intervalo de tempo uma interface tipo capacete com boa eficácia e segurança para a aplicação de CPAP sem uso de ventiladores. Esse sistema foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária para comercialização e distribuição em todo o território nacional, alcançando milhares de pacientes em 2021.(6,7)
Na ausência de um programa nacional de educação e conscientização sobre a pandemia, diversas personalidades da especialidade foram responsáveis por levar informação à população e fazer frente às notícias falsas. Fomos, muitas vezes, a voz da medicina baseada em evidências na mídia. Corroborando esse fato, a Dra. Margareth Dalcolmo, Presidente eleita da SBPT, recebeu o prêmio “Faz Diferença” do jornal O Globo.(8) Entre as sociedades médicas, a SBPT atuou fortemente junto a Associação Médica Brasileira, Ministério da Saúde, sociedades internacionais e diversos órgãos de representação, inovando e criando novos canais de comunicação digital. Destaca-se a atuação das Dras. Irma de Godoy e Jaquelina Sonoe Ota Arakaki, representantes da nossa Sociedade no Comitê Extraordinário de Monitoramento COVID-19. Trata-se de uma iniciativa conjunta da Associação Médica Brasileira com as especialidades e que atua consolidando informações sobre o enfrentamento à pandemia e disponibilizando orientações periódicas de qualidade aos cidadãos e aos profissionais da saúde.(9)
É certo que novas catástrofes e pandemias nos atinjam no futuro. É evidente a necessidade de fortalecimento de nossa especialidade para os sistemas de saúde, cabendo expandir a formação de profissionais e aumentar a educação permanente. Nosso papel na formulação e na execução de políticas públicas de saúde na área respiratória precisa ser fortalecido, desde a atenção primária e prevenção dos agravos respiratórios até o suporte avançado de vida aos pacientes graves que necessitam de ventilação mecânica e reabilitação. Para evoluirmos, essas ações requerem valorização da ética, da ciência, da tecnologia e da inovação, aliadas a compromissos humanistas e sociais como valores inegociáveis da nossa profissão e especialidade. Não somos os mesmos de dois anos atrás. Podemos ser melhores.
REFERÊNCIAS 1. Johns Hopkins University of Medicine [homepage on the Internet]. Baltimore (MD): the University; c2021 [cited 2021 Dec 1]. COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE). Available from: https://coronavirus.jhu.edu/map.html
2. Brasil. Senado Federal [homepage on the Internet]. Brasília: Senado Federal; c2021 [cited 2021 Dec 1]. CPI da Pandemia. Relatórios. Available from: https://legis.senado.leg.br/comissoes/mnas?codcol=2441&tp=4
3. Ranzani OT, Bastos LSL, Gelli JGM, Marchesi JF, Baião F, Hamacher S, et al. Characterisation of the first 250,000 hospital admissions for COVID-19 in Brazil: a retrospective analysis of nationwide data. Lancet Respir Med. 2021;9(4):407-418. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30560-9
4. Barreiro E, Jiménez C, García de Pedro J, Ramírez Prieto MT. COVID-19 and xxi Century Pulmonology: Challenge or Opportunity?. Arch Bronconeumol (Engl Ed). 2020;56(7):411-412. https://doi.org/10.1016/j.arbres.2020.05.006
5. Holanda MA, Pinheiro BV. COVID-19 pandemic and mechanical ventilation: facing the present, designing the future. J Bras Pneumol. 2020;46(4):e20200282. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200282
6. Holanda MA, Tomaz BS, Menezes DGA, Lino JA, Gomes GC. ELMO 1.0: a helmet interface for CPAP and high-flow oxygen delivery. J Bras Pneumol. 2021;47(3):e20200590. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200590
7. Tomaz BS, Gomes GC, Lino JA, Menezes DGA, Soares JB, Furtado V, et al. ELMO, a new helmet interface for CPAP to treat COVID-19-related acute hypoxemic respiratory failure outside the ICU: a feasibility study. J Bras Pneumol. 2022; 48(1):e20210349.
8. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) [homepage on the Internet]. Brasília: SBPT; c2021 [cited 2021 Dec 1]. Margareth Dalcolmo é eleita a personalidade do ano de 2020. Available from: https://sbpt.org.br/portal/margareth-dalcolmo-premio-faz-diferenca/
9. Associação Médica Brasileira [homepage on the Internet]. São Paulo: AMB [cited 2021 Dec 1. CEM COVID_AMB. Available from: https://amb.org.br/category/cem-covid/