Continuous and bimonthly publication
ISSN (on-line): 1806-3756

Licença Creative Commons
5396
Views
Back to summary
Open Access Peer-Reviewed
Cartas ao Editor

Cirurgia de câncer de pulmão no Brasil durante a pandemia de COVID-19: Quantas ficaram para trás?

Lung cancer surgery in Brazil during the COVID-19 pandemic: How many were left behind?

Guilherme Moreira Hetzel1, Wallace Klein Schwengber1, Diego Corsetti Mondadori2, Luiz Felipe Lopes Araujo2, Mauricio Guidi Saueressig1,2

DOI: 10.36416/1806-3756/e20220038

AO EDITOR,
 
O câncer de pulmão é a principal causa de mortalidade oncológica no Brasil, sendo responsável por aproximadamente 30.000 óbitos em 2019.(1) Até o momento, o tratamento cirúrgico é a melhor opção terapêutica para pacientes com câncer de pulmão de não pequenas células e é a principal abordagem para o tratamento da doença em estágio inicial (estágios I e II). Acredita-se que os atrasos no tratamento sejam os principais contribuintes para resultados desfavoráveis, e esforços têm sido feitos para reduzir o tempo entre o diagnóstico e o início do tratamento, com as leis brasileiras exigindo que tal intervalo não exceda 60 dias, de acordo com diretrizes e recomendações internacionais.(2,3)
 
A pandemia de COVID-19 e suas perigosas consequências trouxeram grandes dificuldades para o diagnóstico e manejo do câncer de pulmão no Brasil.(4) As consultas ambulatoriais, bem como os procedimentos cirúrgicos e diagnósticos, foram interrompidos em todo o país, levando a grandes desafios para tanto o diagnóstico quanto o tratamento de malignidades seguindo os protocolos regulares de diretrizes oncológicas pré-pandemia. Patt et al. (2020) demonstraram que as taxas de rastreamento de câncer de pulmão diminuíram em até 75% nos EUA motivadas pela pandemia. A decisão de reagendar ou renunciar completamente a exames por pacientes e profissionais de saúde levou a menos diagnósticos de câncer,(5) com achados semelhantes relatados na Europa. (6) Além disso, uma revisão sistemática e metanálise recente sugeriu que o atraso prolongado para a cirurgia está associada à diminuição da sobrevida global no câncer de pulmão.(7) Nesse contexto, o impacto da pandemia de COVID-19 no tratamento cirúrgico de pacientes com câncer de pulmão no Brasil permanece desconhecido.
 
Aqui, objetivamos analisar o impacto da pandemia de COVID-19 no tratamento cirúrgico de pacientes com câncer de pulmão no Brasil por meio de uma análise retrospectiva com uma série temporal de cirurgias de câncer de pulmão, de maio de 2018 a maio de 2021, coletadas do painel de oncologia(8) do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). Vale salientar que as informações fornecidas pelo painel de oncologia são registradas no primeiro dia de tratamento. Os dados foram coletados seguindo a 10ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), códigos C33 e C34, para cirurgias de câncer de pulmão e traqueia, bem como para quimioterapia e radioterapia. Definimos o início da pandemia de COVID-19 no Brasil como abril de 2020. Os dados referentes aos casos de COVID-19 no país foram obtidos no site do Departamento de Saúde.(9) Todas as análises estatísticas foram realizadas usando o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 18 (IBM Corp., Armonk, NY, EUA). As previsões da série temporal foram realizadas usando o modelador de séries temporais/modelador especialista SPSS.(10)
 
Um total de 38.945 pacientes com câncer de pulmão foram atendidos (incluindo todas as modalidades de tratamento) no Sistema Único de Saúde (SUS) de maio de 2018 a maio de 2021. Ao comparar os períodos antes e depois de abril de 2020, foi encontrada uma mediana de 1.079 vs. 986 pacientes com câncer de pulmão tratados por mês, respectivamente. A frequência mediana de cirurgias para câncer de pulmão registradas no Brasil antes de abril de 2020 foi de 164 por mês (P25-P75, 155-178). Com base nos 23 meses anteriores, foi calculada uma tendência para o intervalo de abril de 2020 a maio de 2021 (r²=0,89). Em comparação com a tendência predita, houve uma diminuição real (diferença média -41,24, IC 95% [-26,63; -55,85]) no número de cirurgias de câncer de pulmão registradas por mês (Figura 1). Também houve uma correlação negativa (R=-0,54, p=0,03) entre o número de cirurgias de câncer de pulmão e o número de novos casos de COVID-19 por mês desde o primeiro caso confirmado em fevereiro de 2020.


 
Com base na análise da série temporal, nosso estudo sugere que até 781 pacientes com câncer de pulmão não receberam tratamento cirúrgico adequado como consequência da pandemia de COVID-19 no sistema público de saúde entre abril de 2020 e maio de 2021 (Figura 1).
 
Algumas explicações podem justificar os diferentes padrões de cirurgia em relação aos novos casos de COVID-19 descritos na Figura 1. O primeiro aumento nos casos de COVID-19 começou em abril de 2020 e atingiu o pico em agosto daquele ano. Tal aumento foi significativamente associado a menos cirurgias em comparação com o mesmo intervalo em 2019 (médias mensais, 142,8 vs. 175,8 cirurgias, respectivamente). Apesar dos relativamente poucos casos novos de COVID-19, essa fase foi marcada por políticas de isolamento e, mais importante, a preocupação da população, incluindo pacientes com câncer de pulmão que podem ter preferido ficar em casa a procurar atendimento adequado em hospitais. Por outro lado, o segundo aumento nos casos iniciou em novembro de 2020 e atingiu o pico em abril de 2021. Nesta fase, não foi reproduzida a recuperação sazonal esperada nas cirurgias de câncer de pulmão após o final e os primeiros meses do ano observados de novembro de 2018 a abril de 2019 (médias mensais, 152,8 vs. 131,8 cirurgias, respectivamente). Nós suspeitamos que esse achado possa ser parte de um reflexo do pior cenário da pandemia no Brasil. Em resumo, a variação no número de cirurgias mostrou uma correlação modesta com o número de novos casos de COVID-19; desta forma, levantamos a hipótese de que outras variáveis além dos padrões de pandemia brutos podem entrar em ação.
 
Os dados aqui mostrados apresentam algumas limitações. Em primeiro lugar, reconhecemos que as análises de séries temporais podem estar sujeitas a erros causados por dados corrompidos ou ausentes. Sabe-se que o DATASUS pode ter um atraso de até 6 meses para o registro de um procedimento. Os autores verificaram regularmente as atualizações enquanto escreviam este manuscrito, com números estáveis de procedimentos neste período. Além disso, não foram observadas discrepâncias inesperadas de dados no intervalo utilizado para a construção da série temporal. Em segundo lugar, avaliamos dados ecológicos agregados que não foram projetados intencionalmente para servir como registros de câncer; portanto, os dados podem ser propensos a viés. No entanto, o DATASUS, o banco de dados nacional mais conhecido disponível, é baseado em informações de faturamento, sendo auditado pelas autoridades competentes. Terceiro, o painel de oncologia contabiliza apenas os pacientes que efetivamente iniciaram o tratamento pelo sistema público de saúde, portanto, os dados sobre o número de pacientes com câncer de pulmão provavelmente estão subestimados em nosso estudo. Por fim, o número de pacientes com câncer de pulmão atendidos pelo setor privado não foi incluído em nossa análise. Não obstante, o SUS é o maior sistema público de saúde do mundo, com 100% de cobertura populacional, enquanto o setor privado oferece cobertura adicional para aproximadamente 25% da população. Nessa perspectiva, suspeitamos que a magnitude do impacto da pandemia de COVID-19 em pacientes com câncer de pulmão possa ser ainda maior do que o aqui verificado.
 
Até onde sabemos, este é o primeiro estudo a avaliar o impacto da pandemia de COVID-19 no tratamento cirúrgico do câncer de pulmão usando dados nacionais. Embora os dados apresentados sejam descritivos, eles podem servir como um apelo para que as autoridades de saúde desenvolvam estratégias para gerenciar adequadamente uma quantidade considerável de pacientes com câncer de pulmão que não foram operados quando necessário como impacto da atual pandemia de COVID-19.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
GMH, WKS, DCM, LFLA e MGS contribuíram com a concepção e planejamento do estudo, a interpretação dos dados, a redação e revisão das versões preliminar e definitiva e a aprovação da versão final do manuscrito.
 
REFERÊNCIAS
 
1.            Instituto Nacional do Câncer [homepage on the internet]. Rio de Janeiro: INCA [cited 2022 Jan 10]. Estatísticas de câncer 2021. Disponível em: https://www.inca.gov.br/numeros-de-cancer.
2.            Brasil. Câmara dos Deputados [homepage on the internet]. Brasília: a Câmara [cited 2022 Jan 10]. Lei No 12.732, de 22 de novembro de 2012 - Publicação Original. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2012/lei-12732-22-novembro-2012-774660-norma-pl.html.
3.            Malalasekera A, Nahm S, Blinman PL, Kao SC, Dhillon HM, Vardy JL. How long is too long? A scoping review of health system delays in lung cancer. Eur Respir Rev. 2018 Aug 29;27(149):180045. https://doi.org/10.1183/16000617.0045-2018.
4.            Araujo-Filho JAB, Normando PG, Melo MDT, Costa AN, Terra RM. Lung cancer in the era of COVID-19: what can we expect? J Bras Pneumol. 2020;46(6):e20200398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200398.
5.            Patt D, Gordan L, Diaz M, Okon T, Grady L, Harmison M, et al. Impact of COVID-19 on Cancer Care: How the Pandemic Is Delaying Cancer Diagnosis and Treatment for American Seniors. JCO Clin Cancer Inform. 2020;4:1059-71. https://doi.org/10.1200/CCI.20.00134.
6.            Maringe C, Spicer J, Morris M, Purushotham A, Nolte E, Sullivan R, et al. The impact of the COVID-19 pandemic on cancer deaths due to delays in diagnosis in England, UK: a national, population-based, modelling study. Lancet Oncol. 2020;21(8):1023-34. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30388-0.
7.            Johnson BA, Waddimba AC, Ogola GO, Fleshman JW Jr., Preskitt JT. A systematic review and meta-analysis of surgery delays and survival in breast, lung and colon cancers: Implication for surgical triage during the COVID-19 pandemic. Am J Surg. 2021;222(2):311-8. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2020.12.015.
8.            Atty AT de M, Jardim BC, Dias MBK, Migowski A, Tomazelli JG. PAINEL-Oncologia: uma Ferramenta de Gestão. Rev. Bras. Cancerol. [serial on the internet]. 2020 Apr [cited 2022 Jan]; 66(2):e-04827. Disponível em: https://rbc.inca.gov.br/index.php/revista/article/view/827.
9.            Ministério da Saúde [homepage on the internet]. Brasília: MS [cited 2022 Jan 19]. Painel Coronavírus. Available from: https://covid.saude.gov.br.
10.          IBM [homepage on the internet]. Armonk: IBM - SPSS Modeler [cited 2022 May 15]. Time Series Data. Disponível em: https://www.ibm.com/docs/en/spss-modeler/18.0.0?topic=models-time-series-data.

Indexes

Development by:

© All rights reserved 2024 - Jornal Brasileiro de Pneumologia