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Cartas ao Editor

Impacto da pandemia de COVID-19 no diagnóstico de câncer de pulmão no Nordeste brasileiro

Impact of the COVID-19 pandemic on the diagnosis of lung cancer in northeastern Brazil

Iusta Caminha1,2, Fabio Távora1,3, Juliana Sousa4, Francisco Martins Neto3, Luciano Pamplona de Goes Cavalcanti1,5

DOI: 10.36416/1806-3756/e20220248

 
AO EDITOR,
 
O câncer de pulmão é o mais letal e um dos cânceres mais comuns tanto em homens como em mulheres. Mais de 35.000 óbitos e 30.000 novos casos ocorreram no Brasil em 2020. O Ceará é o estado com a sexta maior incidência de câncer de pulmão no país.(1)
 
No fim do ano de 2019, a infecção por SARS-CoV-2 começou a avançar rapidamente. Em março de 2022, o SARS-CoV-2 já havia infectado aproximadamente 30 milhões de pessoas no Brasil, com mais de 3 milhões de casos e quase 27 mil mortes no estado do Ceará. Fortaleza, uma das sete maiores capitais do Brasil, teve a segunda maior taxa de mortalidade no primeiro ano da pandemia de COVID-19 no país, perdendo apenas para Manaus (AM).(2)
 
A pandemia de COVID-19 exigiu a adaptação urgente dos serviços de saúde. Diminuiu o número de consultas clínicas, procedimentos diagnósticos e hospitalizações por outras doenças. O fluxo de atendimento foi alterado nas unidades de saúde, e os leitos hospitalares foram reservados para pacientes com COVID-19: um cenário desafiador para o diagnóstico de câncer.
 
A redução do número de exames de detecção e procedimentos diagnósticos teve impacto nas taxas de incidência, com queda significativa do diagnóstico de novos casos de câncer em todo o mundo.(3) No Brasil, no mínimo 15.000 casos de câncer deixaram de ser diagnosticados por mês em 2020. O Nordeste foi a região mais afetada, com redução de 42,7% da média de diagnósticos mensais.(4)
 
No que tange ao câncer de pulmão em particular, o número de broncoscopias e biópsias pulmonares realizadas no Sistema Único de Saúde entre março e maio de 2020 diminuiu significativamente, em 35% e 13%, respectivamente, em comparação com o mesmo período no ano anterior. As internações hospitalares por câncer de pulmão também diminuíram significativamente (em 7%) no mesmo período.(5) Embora a recomendação tenha sido a de que os tratamentos que resultassem em benefício de sobrevida continuassem a ser oferecidos sempre que possível,(6) a adaptação e sobrecarga do Sistema Único de Saúde durante a pandemia de COVID-19 parecem ter atrasado o diagnóstico e tratamento do câncer de pulmão.
 
Além de ter tido impacto na incidência de câncer, a pandemia de COVID-19 na Inglaterra resultou em um aumento significativo do número de mortes evitáveis decorrentes do diagnóstico tardio de vários tipos de câncer.(7) O risco de atrasos no atendimento em virtude da pandemia foi maior em pacientes com câncer de pulmão que naqueles com outras doenças malignas.(8) Além disso, após o início da pandemia de COVID-19, os pacientes passaram a apresentar doença mais avançada no momento do diagnóstico.(9)
 
No presente estudo, avaliamos o impacto da pandemia de COVID-19 no diagnóstico de câncer de pulmão. Os dados foram extraídos retrospectivamente dos arquivos do serviço de patologia cirúrgica do Hospital de Messejana, em Fortaleza (CE). Nosso estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da instituição (Protocolo n. CAAE 52992721.0.0000.5039). Os laudos anatomopatológicos foram identificados por números sequenciais por data de saída. O anonimato dos pacientes e a confidencialidade das informações foram rigorosamente mantidos. Foram também extraídos dados públicos provenientes de prontuários hospitalares anonimizados.(10)
 
O Hospital de Messejana é referência em doenças torácicas nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, desempenhando um papel importante na detecção e tratamento do câncer de pulmão. Entre 2018 e 2021, o hospital foi responsável por aproximadamente 90% de todas as broncoscopias realizadas no Ceará e por mais de 80% de todas as hospitalizações para a investigação e tratamento cirúrgico do câncer de pulmão no estado.(10)
 
A partir de junho de 2020, em virtude da pandemia de COVID-19, as enfermarias clínicas e UTIs do Hospital de Messejana foram adaptadas para receber pacientes com COVID-19. Por conseguinte, houve redução do número de procedimentos para o diagnóstico de outras doenças. O serviço de patologia cirúrgica do hospital recebeu um número significativamente menor de amostras para análise em 2020 e 2021. Consequentemente, o número de laudos anatomopatológicos emitidos em 2020 e 2021 diminuiu significativamente em comparação com o número de laudos emitidos antes da pandemia de COVID-19 (Figura 1A).


 

 

 

 
Entre 2015 e 2019, foram emitidos anualmente 3.703 ± 70 laudos anatomopatológicos. Em 2020 e 2021, o número de laudos emitidos foi de 2.748 e 2.899, respectivamente. A maior redução foi observada em 2020. Maio foi o mês mais afetado, seguido de junho e abril, coincidindo com os meses de pico da primeira onda da pandemia de COVID-19 no estado do Ceará. Em 2021, embora tenha havido uma ligeira melhora no total de exames em comparação com 2020, não houve recuperação significativa. Como se pode observar na Figura 1B, houve forte correlação negativa entre o número de laudos anatomopatológicos e o número de casos de COVID-19 (r(22) = −0,502; p = 0,012), bem como entre o número de laudos anatomopatológicos e número de óbitos decorrentes da COVID-19 (r(22) = −0,689; p = 0,002).
 
A média de broncoscopias realizadas mensalmente no Hospital de Messejana em 2020 e 2021 foi de 47,61, 44% menor que em 2018 e 2019, antes da pandemia de COVID-19 (p = 0,0006). Reduções estatisticamente significativas também foram observadas no número de laudos anatomopatológicos sobre pulmões, traqueia, pleura e linfonodos mediastinais, bem como no número de hospitalizações para diagnóstico e tratamento de câncer de pulmão (códigos C33 e C34 da Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão), que diminuíram em 17% (p = 0,006) e 21% (p = 0,005), respectivamente.
 
A taxa de positividade (isto é, a relação entre o total de casos de câncer e o total de laudos anatomopatológicos) não mudou durante a pandemia de COVID-19. Em 2020 e 2021, a média da proporção de casos positivos ou fortemente suspeitos de malignidade para biópsias realizadas nos pulmões, pleura, traqueia e linfonodos mediastinais foi de 48,6%, que não é significativamente diferente das taxas de positividade observadas em 2018 e 2019 (48,2%; p = 0,75). No entanto, foram diagnosticados menos casos, em virtude do impacto negativo da COVID-19 no total de biópsias analisadas.
 
No carcinoma pulmonar de células não pequenas, que é o tipo histológico predominante, a sobrevida em 5 anos é reduzida quase pela metade em casos de tumores localmente avançados em comparação com os diagnosticados em estágio mais precoce, sendo igual a 37%. A sobrevida em 5 anos é ainda menor em estágios avançados, caindo para alarmantes 8%.(11) Isso ressalta o impacto negativo que a redução do diagnóstico de câncer de pulmão no Hospital de Messejana durante os anos de pandemia de 2020 e 2021 pode ter no prognóstico e nas taxas de cura.
 
O estado do Ceará, assim como várias outras regiões do mundo, terá um grande desafio pela frente. Os pacientes que não foram diagnosticados durante os anos de pandemia de 2020 e 2021 provavelmente apresentarão doença mais avançada no momento do diagnóstico, com pior prognóstico e menor média de sobrevida. Há uma necessidade urgente de reestruturação do sistema de saúde (com o retorno dos programas de detecção precoce) e preparação de centros especializados para administrar a demanda reprimida de pacientes com câncer de pulmão.
 
No Brasil, o câncer de pulmão é a principal causa de morte por câncer entre os homens e a segunda principal causa de morte por câncer entre as mulheres. Portanto, são necessárias campanhas que promovam o diagnóstico precoce do câncer de pulmão, como as campanhas Outubro Rosa (câncer de mama) e Novembro Azul (câncer de próstata). Aumentar o conhecimento da população a respeito do câncer de pulmão e a disponibilidade de consultas ambulatoriais, testes diagnósticos e procedimentos cirúrgicos para câncer de pulmão pode mitigar o impacto da pandemia de COVID-19 na detecção e tratamento do câncer de pulmão.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
Todos os autores contribuíram igualmente para a concepção do estudo e para a redação, revisão e aprovação do manuscrito.
 
CONFLITOS DE INTERESSE
 
Nenhum declarado.
 
REFERÊNCIAS
 
1.            Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer (INCA) [homepage on the Internet]. Rio de Janeiro: INCA; c2022 [cited 2022 Apr 6]. Estatística do cancer. Available from: https://www.inca.gov.br/numeros-de-cancer
2.            Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde [homepage on the Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; c2022 [cited 2022 Apr 8]. Painel Coronavírus. Available from: https://covid.saude.gov.br/
3.            Kaufman HW, Chen Z, Niles J, Fesko Y. Changes in the Number of US Patients With Newly Identified Cancer Before and During the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Pandemic [published correction appears in JAMA Netw Open. 2020 Sep 1;3(9):e2020927]. JAMA Netw Open. 2020;3(8):e2017267. https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2020.17267
4.            Marques NP, Silveira DMM, Marques NCT, Martelli DRB, Oliveira EA, Martelli-Júnior H. Cancer diagnosis in Brazil in the COVID-19 era. Semin Oncol. 2021;48(2):156-159. https://doi.org/10.1053/j.seminoncol.2020.12.002
5.            Araujo-Filho JAB, Normando PG, Melo MDT, Costa AN, Terra RM. Lung cancer in the era of COVID-19: what can we expect?. J Bras Pneumol. 2020;46(6):e20200398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200398
6.            Aran V, De Marchi P, Zamboni M, Ferreira CG. Dealing with lung cancer in the COVID-19 scenario (A review). Mol Clin Oncol. 2021;14(2):27. https://doi.org/10.3892/mco.2020.2189
7.            Maringe C, Spicer J, Morris M, Purushotham A, Nolte E, Sullivan R, et al. The impact of the COVID-19 pandemic on cancer deaths due to delays in diagnosis in England, UK: a national, population-based, modelling study [published correction appears in Lancet Oncol. 2021 Jan;22(1):e5]. Lancet Oncol. 2020;21(8):1023-1034. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30388-0
8.            Bhalla S, Bakouny Z, Schmidt AL, Labaki C, Steinharter JA, Tremblay DA, et al. Care disruptions among patients with lung cancer: A COVID-19 and cancer outcomes study. Lung Cancer. 2021;160:78-83. https://doi.org/10.1016/j.lungcan.2021.07.002
9.            Reyes R, López-Castro R, Auclin E, García T, Chourio MJ, Rodriguez A, et al. Impact of COVID-19 Pandemic in the Diagnosis and Prognosis of Lung Cancer. J Thorac Oncol. 2021;16(3):S141. Available from: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S1556086421002616 https://doi.org/10.1016/j.jtho.2021.01.219
10.          Secretaria da Saúde do estado do Ceará (SESA) [homepage on the Internet]. Fortaleza: SESA; c2022 [cited 2022 Feb 9]. Sistema de Informações Hospitalares Available from: https://www.saude.ce.gov.br/tabnet-ceara/sih/
11.          American Cancer Society [homepage on the Internet]. Atlanta: American Cancer So-ciety; c2022 [cited 2022 Apr 6]. Lung Cancer Survival Rates. Available from: https://www.cancer.org/cancer/lung-cancer/detection-diagnosis-staging/survival-rates.html
 

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