Desde o início da pandemia de COVID-19, pneumologistas de todo o mundo tiveram que lidar com vários novos desafios e incertezas. Como se não bastasse a necessidade de se entender uma nova doença e como gerenciá-la, outro grande desafio foi avaliar o impacto da COVID-19 em pessoas com doenças respiratórias. Rapidamente, a presença de comorbidades respiratórias emergiu como um fator de risco independente para complicações relacionadas à infecção por SARS-CoV-2.(1) No entanto, será que todo paciente com doença respiratória crônica tem um risco maior de infecção e de evolução desfavorável relacionados ao novo coronavírus?
A comunidade relacionada à fibrose cística (FC) ficou muito preocupada com o impacto da COVID-19 em pacientes com FC, uma vez que outras infecções virais já haviam sido associadas a piores desfechos e um número considerável de pacientes com FC tem função pulmonar debilitada.(2) Com as medidas de isolamento social sugeridas para controlar a pandemia, a maioria dos pacientes com FC adotou medidas preventivas estritas que incluíam o uso de máscaras e confinamento. Essas medidas, altamente recomendadas e benéficas para os pacientes, dificultaram a avaliação do real impacto da infecção por SARS-CoV-2 na população com FC.
Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Camargo et al.(3) descreveram características clínicas e desfechos de casos incidentes de COVID-19 em adultos com FC não vacinados durante o primeiro ano da pandemia. A taxa de incidência cumulativa na coorte de FC foi semelhante à observada para a população geral quando ajustada para idade. Além disso, a gravidade da doença não pareceu ser influenciada negativamente pela presença de FC. Quase toda a amostra se recuperou completamente da infecção, com poucos pacientes precisando de internação, e houve apenas um óbito de um paciente com doença pulmonar avançada (VEF1 < 30% do valor previsto).
O primeiro grande estudo com 181 pacientes com FC diagnosticados com COVID-19 descreveu achados semelhantes.(4) Nesse estudo, a infecção por SARS-CoV-2 mostrou um espectro de resultados semelhante ao observado na população em geral. Um curso clínico mais grave foi associado à idade avançada, diabetes relacionado à FC e pior função pulmonar no ano anterior à infecção, bem como em casos de receptores de órgãos transplantados.(4) Camargo et al.(3) destacaram a ausência de pacientes transplantados ou imunossuprimidos, o que pode ter reduzido a possibilidade de eventos desfavoráveis relacionados à infecção por SARS-CoV-2. Uma publicação mais recente e maior, com 1.452 casos de pacientes com FC infectados com SARS-CoV-2, confirmou que a maioria dos pacientes com FC apresentava sintomas leves e boa recuperação após a infecção.(5) No entanto, comorbidades como diabetes relacionado à FC, função pulmonar diminuída e imunossupressão mais uma vez se mostraram fatores de risco para complicações graves.(5) Vários relatos e séries de casos confirmaram a associação de transplante pulmonar em pacientes com FC e formas graves de COVID-19.(6-8) Esses dados reforçam que a imunossupressão relacionada ao transplante seria um fator contribuinte para um maior risco de complicações do que a própria FC. Entretanto, estamos longe de assumir que não há riscos relacionados à COVID-19 para pacientes com FC. É importante estar atento às constantes e rápidas mudanças relacionadas à pandemia. O início da vacinação, sem dúvida, reduziu o número de complicações e a gravidade das condições associadas à infecção por SARS-CoV-2. Todavia, o surgimento de novas variantes requer monitoramento constante de possíveis novas complicações.(9)
Mesmo vivenciando um cenário angustiante como o da pandemia de COVID-19, é preciso buscar aprendizados positivos durante o processo. A necessidade de distanciamento social permitiu o desenvolvimento de inúmeras ferramentas e estratégias para o acompanhamento de pacientes com FC por meio de telemedicina e telemonitoramento.(10) Além disso, a maior adesão ao tratamento, o uso de máscaras e o distanciamento social foram associados a uma redução significativa no número de exacerbações.(11) Esses aprendizados devem ser incorporados ao novo cenário de manejo da FC a fim de manter uma melhor qualidade de vida e preservação da função pulmonar.
A pandemia do COVID-19 está longe de acabar. Novas variantes desencadearam novas ondas de infecção em todo o mundo. Apesar dos resultados positivos apresentados pela maioria da população com FC infectada com SARS-CoV-2 até agora, devemos manter os cuidados preventivos e implementar os aprendizados adquiridos. É importante ressaltar a relevância da vacinação, a adesão ao tratamento e o uso de máscaras, principalmente em ambientes hospitalares. O uso de máscaras, além de proteger contra infecções virais, é uma medida importante para evitar a contaminação cruzada por bactérias nas vias aéreas desses indivíduos. Os pacientes com FC não parecem apresentar um risco maior de infecção ou de desenvolver complicações relacionadas à COVID-19 quando comparados à população em geral. No entanto, isso não significa que não haja riscos. À medida que a pandemia evolui, surgem novas descobertas, assim como novos desafios. Diante disso, devemos nos lembrar de um lema importante: “prevenir é sempre o melhor remédio”.
REFERÊNCIAS
1. Berlin DA, Gulick RM, Martinez FJ. Severe Covid-19. N Engl J Med. 2020;383(25):2451-2460. https://doi.org/10.1056/NEJMcp2009575
2. Wat D, Doull I. Respiratory virus infections in cystic fibrosis. Paediatr Respir Rev. 2003;4(3):172-177. https://doi.org/10.1016/S1526-0542(03)00059-9
3. Camargo CC, Jacobsen LB, Wilsmann J, Silveira MN, Rossi EP, Oliveira CT, et al. Clinical characteristics and outcomes of incident cases of COVID-19 in unvaccinated adult cystic fibrosis patients in southern Brazil: a prospective cohort study conducted during the first year of the COVID-19 pandemic. J Bras Pneumol. 2022;48(6):e20220265. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20220265
4. McClenaghan E, Cosgriff R, Brownlee K, Ahern S, Burgel PR, Byrnes CA, et al. The global impact of SARS-CoV-2 in 181 people with cystic fibrosis. J Cyst Fibros. 2020;19(6):868-871. https://doi.org/10.1016/j.jcf.2020.10.003
5. Carr SB, McClenaghan E, Elbert A, Faro A, Cosgriff R, Abdrakhmanov O, et al. Factors associated with clinical progression to severe COVID-19 in people with cystic fibrosis: A global observational study. J Cyst Fibros. 2022;21(4):e221-e231. https://doi.org/10.2139/ssrn.3990936
6. Myers CN, Scott JH, Criner GJ, Cordova FC, Mamary AJ, Marchetti N, et al. COVID-19 in lung transplant recipients. Transpl Infect Dis. 2020;22(6):e13364. https://doi.org/10.1111/tid.13364
7. Messika J, Eloy P, Roux A, Hirschi S, Nieves A, Le Pavec J, et al. COVID-19 in Lung Transplant Recipients. Transplantation. 2021;105(1):177-186. https://doi.org/10.1097/TP.0000000000003508
8. Athanazio RA, Costa AN, Carraro RM, Gonzalez D, Rached SZ, Samano MN, et al. Early COVID-19 infection after lung transplantation in a patient with cystic fibrosis. Clinics (Sao Paulo). 2020;75:e2274. https://doi.org/10.6061/clinics/2020/e2274
9. Hadj Hassine I. Covid-19 vaccines and variants of concern: A review. Rev Med Virol. 2022;32(4):e2313. https://doi.org/10.1002/rmv.2313
10. Rad EJ, Mirza AA, Chhatwani L, Purington N, Mohabir PK. Cystic fibrosis telemedicine in the era of COVID-19. JAMIA Open. 2022;5(1):ooac005. https://doi.org/10.1093/jamiaopen/ooac005
11. Patel S, Thompson MD, Slaven JE, Sanders DB, Ren CL. Patel S, Thompson MD, Slaven JE, Sanders DB, Ren CL. Reduction of pulmonary exacerbations in young children with cystic fibrosis during the COVID-19 pandemic. Pediatr Pulmonol. 2021;56(5):1271-1273. https://doi.org/10.1002/ppul.25250