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ISSN (on-line): 1806-3756

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Artigo Original

Assistência ao paciente em centros de fibrose cística: análise do mundo real no Brasil

Patient care in cystic fibrosis centers: a real-world analysis in Brazil

Elenara da Fonseca Andrade Procianoy1,2, Norberto Ludwig Neto2,3, Antônio Fernando Ribeiro2,4

DOI: 10.36416/1806-3756/e20220306

ABSTRACT

Objective: To analyze the characteristics of cystic fibrosis (CF) care centers (CFCCs) in Brazil. Methods: A questionnaire was sent to the coordinators of all 51 registered CFCCs between May and September of 2021. Results: The response rate was 100%. Southeastern Brazil is the region where most of the CFCCs in the country are located (21 centers; 41%), followed by the southern and northeastern regions (11 centers each; 21.5%), the central-western region (6; 12%), and the northern region (2; 4%). A total of 4,371 patients with CF were cared for in Brazil during the study period, ranging from 7 to 240 patients per center (mean, 86 patients/center; median, 75 patients/center); 2,197 patients (50%) were cared for in centers in the southeastern region of the country, particularly in the state of São Paulo (33%), the remaining patients being treated in southern Brazil (1,014 patients, 23%), northeastern Brazil (665 patients, 15%), central-western Brazil (354 patients, 8%), and northern Brazil (141 patients, 4%). Overall, 47 centers (92%) reported having an incomplete multidisciplinary team; 4 (8%) lacked essential team members; 6 (12%) lacked a physical therapist; 5 (10%) lacked a dietitian; 17 (33%) lacked outpatient nursing care; 13 (25%) lacked outpatient social work services; 14 (27%) lacked a psychologist; and 32 (63%) lacked a clinical pharmacist. Seven CFCCs (14%) in the northern and northeastern regions of Brazil reported that the quality of newborn screening for CF was poor. All centers reported having difficulties in accessing CF medications. Conclusions: Brazilian CFCCs experience multiple problems, including inadequate staffing, infrastructure, testing, and medication supply. There is an urgent need to regulate the implementation of CF referral centers and an appropriate network structure for the diagnosis and follow-up of CF patients using optimal treatment recommendations.

Keywords: Cystic fibrosis; Neonatal screening; Quality of life; Genetic diseases, inborn; Lung diseases.

RESUMO

Objetivo: Analisar as características dos centros de tratamento de fibrose cística (CTFC) no Brasil. Métodos: Entre maio e setembro de 2021, um questionário foi enviado aos coordenadores de todos os 51 CTFC registrados. Resultados: A taxa de resposta foi de 100%. O Sudeste do Brasil é a região onde está a maioria dos CTFC do país (21 centros; 41%), seguida pelas regiões Sul e Nordeste (11 centros cada; 21,5%), Centro-Oeste (6; 12%) e Norte (2; 4%). No total, 4.371 pacientes com fibrose cística (FC) foram atendidos no Brasil durante o período do estudo, variando de 7 a 240 pacientes por centro (média de 86 pacientes/centro; mediana de 75 pacientes/centro); 2.197 pacientes (50%) foram atendidos em centros da região Sudeste, particularmente no estado de São Paulo (33%), e os demais receberam atendimento nas regiões Sul (1.014 pacientes, 23%), Nordeste (665 pacientes, 15%), Centro-Oeste (354 pacientes, 8%) e Norte (141 pacientes, 4%). Do total de CTFC, 47 (92%) relataram que a equipe multidisciplinar estava incompleta; em 4 centros (8%), as equipes multidisciplinares careciam de membros essenciais; 6 centros (12%) careciam de fisioterapeuta; 5 (10%) careciam de dietista; 17 (33%) careciam de cuidados ambulatoriais de enfermagem; 13 (25%) careciam de serviços ambulatoriais de assistência social; 14 (27%) careciam de psicólogo e 32 (63%) careciam de farmacêutico clínico. Sete CTFC (14%) nas regiões Norte e Nordeste relataram que a qualidade da triagem neonatal de FC era ruim. Todos os centros relataram dificuldades de acesso a medicamentos para FC. Conclusões: Os CTFC brasileiros enfrentam múltiplos problemas: pessoal inadequado, infraestrutura inadequada, testes inadequados e fornecimento inadequado de medicamentos. Há uma necessidade urgente de regulamentar a implantação de centros de referência em FC e de uma rede adequada para o diagnóstico e acompanhamento de pacientes com FC com base nas recomendações para o tratamento ideal da doença.

Palavras-chave: Fibrose cística; Triagem neonatal; Qualidade de vida; Doenças genéticas inatas; Pneumopatias.

 
INTRODUÇÃO
 
A fibrose cística (FC) é uma doença genética multissistêmica de curso crônico e progressivo que afeta principalmente os sistemas respiratório e digestivo; o principal motivo pelo qual a expectativa de vida dos pacientes é baixa é a insuficiência respiratória decorrente da doença pulmonar.(1) O diagnóstico cada vez mais precoce, atualmente feito principalmente por meio da triagem neonatal, e a maior eficácia do tratamento realizado em centros especializados em FC estão relacionados com melhoria da qualidade de vida e aumento da sobrevida em pacientes com FC.(2) Novos medicamentos cujo objetivo é corrigir a disfunção da cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR, proteína reguladora de condutância transmembrana em fibrose cística) são conhecidos como moduladores da CFTR e prometem resultados ainda melhores.(1-7) Em virtude da complexidade da FC, a assistência ao paciente envolve diversas especialidades médicas.
 
A assistência especializada de rotina em centros de tratamento de FC (CTFC) está relacionada com melhor qualidade de vida, melhor estado nutricional e maior sobrevida em pacientes com FC. Em conformidade com modelos internacionais, os pacientes com FC acompanhados nos CTFC são atendidos por uma equipe multidisciplinar, o que permite tratamentos mais abrangentes e eficazes.(1-7) A equipe multidisciplinar deve ser suficientemente treinada e composta por profissionais de saúde que cuidam dos diversos aspectos clínicos da FC em crianças, adolescentes e adultos. Além disso, a equipe multidisciplinar deve ensinar os pacientes a realizar a higiene brônquica corretamente e orientá-los a respeito do desempenho pulmonar, da nutrição adequada e dos cuidados necessários para o uso de todos os medicamentos, cateteres e dispositivos. A equipe também deve cuidar dos aspectos emocionais e sociais da FC de forma padronizada.(2,7) Além da equipe multidisciplinar, é preciso que haja nos CTFC uma infraestrutura adequada de atendimento e uma equipe treinada para atender às necessidades referentes ao diagnóstico, acompanhamento e tratamento da FC.(7)
 
No Brasil, o Programa Nacional de Triagem Neonatal de 2001 incluiu triagem de FC em todos os recém-nascidos a partir da fase III da implantação. O Programa estipula que os pacientes que recebam diagnóstico de FC devem ser tratados no Sistema Único de Saúde (SUS), o sistema público de saúde nacional financiado por impostos federais e operado pelos governos estaduais e municipais, em um ambulatório multidisciplinar especializado em FC ou em um CTFC que possa oferecer aconselhamento, monitoramento e tratamento adequados ao paciente e também contar com uma rede de serviços complementares.(8) Deve estar disponível uma rede hospitalar de apoio com UTI pediátrica e de adultos, pronto-socorro e unidades de internação. O fluxo de atendimento ao paciente deve seguir protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas (PCDT) atualizados para o tratamento da FC.(8) No entanto, o Ministério da Saúde do Brasil não fornece uma definição clara, bem estabelecida e atualizada da composição e qualificação dos CTFC nem qualquer tipo de padronização para a prestação de cuidados de saúde. Na verdade, os governos estaduais são responsáveis pela acreditação dos CTFC no SUS, e os próprios CTFC são responsáveis pela organização dos serviços e equipes.
 
Há vários CTFC no Brasil. No entanto, desconhecemos suas características e limitações no que tange ao pessoal, infraestrutura e acesso a exames e medicamentos. Na presente análise, buscamos compreender e descrever criticamente a situação dos CTFC brasileiros para propor ações de adaptação e padronização desses centros de modo a padronizar a assistência prestada em todo o país.
 
MÉTODOS
 
Os dados foram fornecidos pelos coordenadores de todos os CTFC registrados no Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFC) e em associações de pacientes com FC. O GBEFC é uma associação não governamental sem fins lucrativos composta por diversos profissionais de saúde especializados no diagnóstico e tratamento da FC. Os objetivos do GBEFC são disseminar o conhecimento a respeito da FC no Brasil, auxiliando os profissionais de saúde no diagnóstico da doença; estimular o interesse de profissionais de saúde, hospitais e órgãos públicos e privados pela FC, a fim de produzir maior conhecimento científico por meio da participação em congressos e do envolvimento em pesquisas; e discutir, elaborar e atualizar os PCDT para a FC no Brasil.
 
Todos os coordenadores dos CTFC receberam por e-mail ou mensagem instantânea no celular um questionário com perguntas a respeito do seguinte: 1) total de pacientes com FC no CTFC; 2) endereço do CTFC; 3) especialidade médica do coordenador e idade dos pacientes atendidos; 4) se a infraestrutura do centro é adequada (caso não seja, explique por que não é); 5) se fazem parte da equipe médica os seguintes especialistas: pneumologista pediátrico, gastroenterologista pediátrico, pneumologista de adultos e gastroenterologista de adultos; 6) se estão envolvidos no atendimento multidisciplinar os seguintes especialistas: fisioterapeuta, dietista, enfermeiro, assistente social, psicólogo, farmacêutico clínico e educador físico; 7) se o CTFC está vinculado a algum programa de triagem neonatal de FC; 8) se a qualidade da triagem neonatal de FC no CTFC é considerada muito boa, boa ou ruim (caso seja ruim, justifique); 9) se o teste genético para FC está disponível no CTFC; 10) se o teste do suor está disponível para o diagnóstico de FC; 11) qual técnica é usada para realizar o teste do suor (condutividade, Gibson-Cooke ou titulação coulométrica); 12) se há alguma reclamação a respeito do teste do suor (caso haja alguma, explique); 13) se o CTFC tem acesso aos seguintes medicamentos: pancrelipase, dornase alfa e tobramicina inalatória; 14) se há alguma reclamação a respeito de medicamentos para FC (caso haja alguma, explique). O questionário foi enviado entre maio e setembro de 2021. Todos os dados foram inseridos em uma planilha do programa Microsoft Excel para serem processados e analisados.
 
Como a maioria dos dados é qualitativa, foi realizada uma análise descritiva com frequências absolutas e relativas. Os dados quantitativos foram expressos em forma de média e/ou mediana.
 
RESULTADOS
 
No total, 51 CTFC no Brasil preencheram os critérios de inclusão, e todos os coordenadores desses centros preencheram o questionário. Dos coordenadores, 48 (94%) são pneumologistas pediátricos ou de adultos e 3 (6%) são gastroenterologistas pediátricos. Em cinco estados (Acre, Amapá, Roraima, Rondônia e Tocantins), todos na região Norte, não há nenhum CTFC que tenha preenchido os critérios de inclusão. Nos demais estados brasileiros, há pelo menos 1 CTFC por estado. O Sudeste do Brasil é a região onde está a maioria dos CTFC (21 centros, 41%), seguida das regiões Sul (11 centros, 21,5%), Nordeste (11 centros, 21,5%), Centro-Oeste (6 centros, 12%) e Norte (2 centros, 4%). Dos 51 CTFC brasileiros que preencheram os critérios de inclusão, 40 (78%) estão em capitais estaduais, ao passo que 11 (22%) estão em grandes cidades do interior; quase todos os CTFC são afiliados a hospitais universitários. Trinta e quatro CTFC (67%) atendem mais de 50 pacientes, ao passo que 17 (33%) atendem menos de 50 pacientes (Tabela 1).
 


 

 
Vinte e um CTFC (41%) oferecem atendimento exclusivamente pediátrico; entretanto, a definição de idade pediátrica varia: de 0-12 anos, 0-14 anos ou 0-18 anos. Dezenove CTFC (37%) atendem crianças e adultos, ao passo que 11 (22%) atendem apenas pacientes adultos. Os CTFC para pacientes adultos estão nos estados do Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, bem como no Distrito Federal.
 
Durante o período do estudo, 4.371 pacientes foram atendidos nos 51 CTFC. O número de pacientes atendidos em cada centro variou bastante: 7-240 pacientes (média de 86 pacientes/centro; mediana de 75 pacientes/centro). Metade dos pacientes (2.197 pacientes) foi atendida em centros na região Sudeste, particularmente no estado de São Paulo, onde 33% (1.213) dos pacientes brasileiros com FC receberam atendimento, sendo o restante atendido nas regiões Sul (1.014 pacientes, 23%), Nordeste (665 pacientes, 15%), Centro-Oeste (354 pacientes, 8%) e Norte (141 pacientes, 4%). Com base nas estimativas de densidade populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em julho de 2020,(9) a distribuição dos pacientes com FC é proporcional ao número de indivíduos nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte. No entanto, na região Sul, há maior densidade de pacientes com FC (23% do total de pacientes brasileiros com FC) e menor densidade populacional (14% da população brasileira), ao passo que na região Nordeste há menor densidade de pacientes com FC (15% do total de pacientes brasileiros com FC) e maior densidade populacional (27% da população brasileira). Além disso, 3 centros oferecem somente atendimento ambulatorial e são altamente dependentes das características locais do SUS para hospitalizar pacientes, se necessário.
 
Todos os CTFC já enfrentaram dificuldades. Houve muitas reclamações a respeito da infraestrutura dos centros, incluindo (em ordem de frequência) a falta de salas para atendimento adequado, falta de locais para a segregação de pacientes, falta de leitos hospitalares para internação, assistência inadequada a pacientes adultos (prestada por equipes pediátricas em ambulatórios pediátricos), falta de um programa de transição da pediatria para a assistência ao paciente adulto, demora na realização de exames e falta de exames básicos, tais como a dosagem da elastase fecal para a determinação de insuficiência pancreática e testes de função pulmonar (espirometria), entre outros (Quadro 1).

 

 

 
Em todos os CTFC, a equipe médica que prestava atendimento ambulatorial compartilhado contava com pelo menos um pneumologista pediátrico e/ou de adultos, mas apenas 29 (57%) contavam com um gastroenterologista para atendimento ambulatorial simultâneo. Três centros relataram que o número de médicos era insuficiente para atender à demanda de pacientes. Uma reclamação comum foi o acesso limitado a outras especialidades médicas (tais como endocrinologia, psiquiatria e reumatologia), restritas a processos de referência e contrarreferência entre instituições ou entre serviços dentro da mesma instituição.
 
Quarenta e sete CTFC (92%) relataram que contavam com uma equipe multidisciplinar, mas a equipe geralmente estava incompleta; em 4 CTFC (8%), as equipes multidisciplinares careciam de membros essenciais. Seis centros (12%) careciam de fisioterapeuta, 5 (10%) careciam de dietista, 17 (33%) careciam de cuidados ambulatoriais de enfermagem, 13 (25%) careciam de serviços ambulatoriais de assistência social, 14 (27%) careciam de psicólogo e 32 (63%) careciam de farmacêutico clínico. Apenas 1 centro contava com um educador físico no ambulatório. Além de uma equipe incompleta, todos os coordenadores relataram que os membros da equipe multidisciplinar eram compartilhados com outros serviços ou frequentemente substituídos e designados para outras funções. Durante a pandemia de COVID-19, o desvio de profissionais de saúde, especialmente pneumologistas de adultos e fisioterapeutas, para atender pacientes com COVID-19 foi um fator agravante que teve grande impacto no atendimento de adultos com FC.
 
Todos os CTFC pediátricos relataram que estavam vinculados a centros de triagem neonatal de FC. No entanto, não temos informações a respeito da triagem neonatal nos estados da região Norte nos quais não há um CTFC. Sete CTFC (14%) nas regiões Norte e Nordeste relataram que a qualidade da triagem neonatal de FC era ruim, com atraso significativo na coleta da segunda amostra para o teste de tripsinogênio imunorreativo e na comunicação dos resultados dos testes de triagem, além de irregularidades na realização/qualidade do teste do suor na triagem. Nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, a qualidade da triagem neonatal de FC foi considerada boa ou muito boa, com problemas ocasionais relacionados à falta de materiais e/ou pessoal. O teste genético, que deveria complementar o diagnóstico, não estava prontamente disponível em todas as regiões via serviços de saúde do SUS.
 
Em cada estado, pelo menos um laboratório é acreditado para realizar o teste do suor, sendo muitas vezes vinculado ao centro de referência em triagem neonatal, mas não necessariamente ao CTFC. No entanto, o SUS subsidia o teste do suor apenas para pacientes de até 2 anos de idade. A técnica utilizada para coletar e medir o cloreto no suor variou de centro para centro: 2 centros empregavam medidas de condutividade, 5 centros empregavam a titulação manual (método de Gibson-Cooke), e os demais centros eram afiliados a laboratórios que empregavam a titulação coulométrica. As principais reclamações a respeito do teste do suor foram a falta de cobertura do SUS para pacientes com idade > 2 anos, o alto custo dos insumos para a coleta e medição do cloreto do suor, a falta de insumos e a falta de pessoal treinado.
 
Todos os CTFC relataram que tinham acesso aos medicamentos listados nos PCDT de 2017 para a FC no Brasil,(10) isto é, pancrelipase, dornase alfa e tobramicina inalatória. No entanto, todos os centros reclamaram do fornecimento irregular de medicamentos, com escassez frequente e distribuição ineficiente. Vários coordenadores relataram que a falta de adesão do paciente ao tratamento poderia estar relacionada ao fornecimento irregular de medicamentos.
 
DISCUSSÃO
 
Esta breve análise da situação dos CTFC brasileiros revela as diferentes realidades enfrentadas pelos pacientes com FC em todo o país e a presença de dificuldades em 100% dos CTFC. A padronização da assistência nos CTFC pode ser um desafio em um país de dimensões continentais como o Brasil, com uma população cultural e socialmente diversa, recursos financeiros limitados e considerável variabilidade das políticas públicas de saúde nos diferentes estados e municípios. Sem recursos adequados, os CTFC correm o risco de oferecer assistência fragmentada, não abrangente, não padronizada e ineficaz, aumentando assim o ônus financeiro sobre nosso sistema de saúde. Devemos, portanto, estabelecer prioridades e sugerir melhorias.
 
Todos os 51 CTFC brasileiros registrados no GBEFC e espalhados pelo país se empenham em seguir as recomendações para oferecer aos pacientes com FC assistência multidisciplinar padronizada. No entanto, há problemas crônicos em todos os centros: há poucos médicos para muitos pacientes; os centros carecem de especialistas e especialidades médicas, o que torna as equipes multidisciplinares incompletas; os membros da equipe são compartilhados com outros serviços e são frequentemente designados para outras funções; a qualificação e treinamento dos profissionais de saúde variam consideravelmente. Além disso, apenas alguns centros estão habilitados a atender pacientes adultos; a maioria dos centros está nas capitais estaduais, e os pacientes precisam percorrer longas distâncias; a infraestrutura dos CTFC é seriamente inadequada; os centros carecem de salas para atendimento adequado; a triagem neonatal não é realizada regularmente; o teste do suor é frequentemente interrompido, e há atraso no diagnóstico; os centros carecem de exames para avaliar a evolução da doença e de leitos hospitalares para a internação de pacientes. Em suma, os profissionais de saúde se esforçam para fornecer cuidados adequados, e os pacientes brasileiros com FC têm dificuldade em obter acesso a um tratamento eficaz.
 
Os pacientes estão distribuídos de forma heterogênea nos CTFC brasileiros, com muitos pacientes nas regiões Sudeste e Sul (68%) e poucos na região Norte (4%). Essa distribuição corrobora a incidência variável de FC previamente relatada no Brasil,(11) sabidamente relacionada a características étnicas regionais e à miscigenação decorrente do processo de colonização/imigração no país. Essa grande variabilidade é um desafio para os médicos e gestores de centros especializados, pois cabe às secretarias de saúde de cada estado o planejamento e a distribuição desses centros, que devem estar de acordo com as taxas de nascidos vivos e a incidência de FC no estado a fim de garantir um fluxo operacional adequado para facilitar o acesso ao usuário e a cobertura assistencial, reduzindo custos desnecessários e/ou o uso inadequado dos recursos existentes. No entanto, apesar da publicação de alguns de nossos dados e de dados provenientes do Registro Brasileiro de Fibrose Cística (REBRAFC), os resultados da triagem neonatal são mal divulgados no âmbito nacional/estadual.
 
Os CTFC brasileiros enfrentam um amplo espectro de problemas, que vão desde grandes centros com muitos pacientes, mas com equipe insuficiente para atender à demanda, até pequenos centros com poucos pacientes e muitas dificuldades de implantação da assistência multidisciplinar. Um melhor planejamento da distribuição dos pacientes nos CTFC poderia levar a melhor assistência ao paciente e melhor organização das equipes, eliminando a necessidade de deslocamento dos pacientes por longas distâncias. Atualmente, 78% dos CTFC estão nas capitais estaduais, ao passo que os demais centros estão nas principais cidades do interior, muitas vezes afiliados a faculdades de medicina. Segundo dados do relatório anual de 2018 do REBRAFC, 43 pacientes registrados nasceram nos estados da região Norte nos quais não há nenhum CTFC.(12) Esses pacientes provavelmente estão sendo atendidos em outros estados ou se mudaram para outra cidade para receber tratamento.
 
As equipes brasileiras de assistência aos pacientes com FC muitas vezes estão incompletas, e os membros das equipes são frequentemente substituídos, o que afeta negativamente a qualidade do atendimento. Esses profissionais de saúde não têm um contrato específico para atender pacientes com FC e muitas vezes precisam assumir múltiplos papéis. As instituições não têm incentivos financeiros para apoiar a implantação dos CTFC, o que revela pouco interesse em manter grandes equipes capacitadas para cuidar exclusivamente de pacientes com FC. Além disso, a falta de recursos específicos dificulta a disponibilidade não apenas de exames complementares mais caros, especialmente o teste do suor, mas também de simples testes de função pulmonar e dosagem da elastase fecal para a determinação de insuficiência pancreática.
 
Apesar das dificuldades, o Brasil como um todo tem um número crescente de pacientes com FC chegando à idade adulta (cerca de 25% dos pacientes têm mais de 18 anos), e o diagnóstico cada vez mais precoce está relacionado com a triagem neonatal. Segundo dados do relatório anual de 2018 do REBRAFC, 1.406 casos foram diagnosticados por meio da triagem neonatal desde 2009, representando quase 60% de todos os novos diagnósticos.(12) No entanto, a qualidade do processo de triagem neonatal e confirmação diagnóstica infelizmente ainda é inadequada e altamente variável. Em alguns estados, há demora na comunicação dos resultados dos testes de triagem e, consequentemente, na confirmação do diagnóstico, o que é incompatível com todo o investimento no diagnóstico precoce. Portanto, é fundamental identificar as dificuldades e organizar melhor os serviços. Melhorar a interação entre os serviços de triagem de FC e os CTFC pode facilitar esse processo.
 
A realização do teste do suor é outro ponto crítico. Como se trata de um teste caro que envolve uma técnica complexa, a disponibilidade é muito limitada e há problemas no tocante à qualidade. A reformulação das políticas de financiamento do teste do suor é de suma importância.
 
Todos os centros relataram o fornecimento irregular de medicamentos, com escassez frequente e distribuição ineficiente, inclusive dos medicamentos incluídos nos PCDT de 2017 para a FC no Brasil. O acesso a outros medicamentos, vitaminas, suplementos, dispositivos, oxigênio e outros recursos necessários aos pacientes com FC é ainda mais problemático, o que afeta substancialmente a adesão ao tratamento. Os novos PCDT para a FC no Brasil,(13) mais abrangentes e completos, incluem o ivacaftor, um dos novos moduladores da CFTR, que pode ser útil. No entanto, ainda é necessário melhorar os processos administrativos e organizacionais nos estados e suas respectivas farmácias públicas.
 
Cada CTFC deve ter o compromisso de prestar assistência de alta qualidade, humanizada, integral e bem coordenada, visando à apreensão de toda a complexidade da FC. A implantação de centros integrados, qualificados e bem equipados pode resultar em economia considerável para o SUS, especialmente em comparação com a prestação de assistência fragmentada e não integral. Poucos estados brasileiros têm políticas públicas consolidadas a respeito da FC. Na maioria dos estados, há enormes dificuldades para regularizar os serviços de FC junto aos gestores e secretarias de saúde em virtude da falta de documentos que descrevam adequadamente as condições necessárias para a implantação desses serviços. Há uma grande necessidade de regulamentar a implantação de centros de referência em FC no Brasil e de estabelecer uma rede de centros devidamente treinados e qualificados para confirmar o diagnóstico de FC e acompanhar os pacientes com FC com base em recomendações estabelecidas de tratamento. Portanto, o GBEFC recomenda que os centros brasileiros de referência em FC sejam constituídos de acordo com as características descritas no Quadro 2.
 


 

 
AGRADECIMENTOS
 
Agradecemos a todos os coordenadores dos CTFC, que contribuíram com informações para esta análise.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
EFAP foi responsável pela coleta de dados. Todos os autores contribuíram igualmente para a concepção e desenho do estudo; a análise e interpretação dos dados; a análise estatística e a redação e revisão do manuscrito. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.
 
CONFLITOS DE INTERESSE
 
Nenhum declarado.
 
REFERÊNCIAS
 
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