AO EDITOR, A fibrose cística (FC) é uma doença crônica que requer acompanhamento em serviço especializado e com equipe multidisciplinar.(1) Apesar dos avanços no tratamento, ainda existem muitos desafios relacionados à adesão e à prestação de cuidados nas diferentes localidades. (2) Diante da pandemia de COVID-19, as atividades normais de cuidados foram suspensas para cumprir as recomendações de lockdown, e foram necessárias formas alternativas para adaptar os planos de atendimento.(3)
A telessaúde tem sido particularmente útil onde o acesso a cuidados é difícil devido à necessidade de percorrer longas distâncias até um centro de referência.(4) Tem sido associada a melhorias na eficiência e a uma satisfação igual ou maior do paciente do que as consultas presenciais.(5) Embora os resultados sejam positivos, poucos estudos foram realizados em países de baixa renda.(2)
A Bahia é um estado localizado na região Nordeste do Brasil com grandes dimensões geográficas, ocupando o 4º lugar no ranking brasileiro de número de diagnósticos de FC.(6) O estado possui dois centros de referência, ambos localizados na capital, Salvador. A maioria das pessoas viaja muitas horas para comparecer às consultas clínicas. A incorporação de avaliações remotas permite que os dados sejam coletados com mais frequência no ambiente natural da pessoa, além de reduzir a carga do número de visitas presenciais.(4,5) Portanto, este estudo teve como objetivo avaliar as percepções de famílias sobre um programa de telessaúde para pessoas com FC durante a pandemia de COVID-19 no Nordeste do Brasil.
Até então, a telessaúde não era utilizada rotineiramente. Como estratégia de enfrentamento à crise sanitária, foi disponibilizado um programa de atendimento remoto para indivíduos com FC entre setembro de 2020 e outubro de 2021 por meio de uma plataforma da Universidade Federal da Bahia.
Os participantes foram recrutados no centro de referência de FC. Caso concordassem com o atendimento prestado pelo modelo, as consultas eram agendadas. Os critérios de exclusão foram os seguintes: indivíduos que apresentassem comorbidades que limitassem sua participação no estudo, bem como a existência de dificuldades comportamentais ou intelectuais que não permitissem a interação remota. Este projeto incluiu telemonitorização, telerreabilitação individual e em grupo, apoio comportamental/emocional e educação em saúde. Vídeos, webinars e cartilhas estavam disponíveis gratuitamente.
Ao final dos 12 meses do estudo, a satisfação dos participantes foi avaliada através de um questionário adaptado (Telehealth Satisfaction Scale),(7) por meio do Google Forms. Um questionário semelhante foi validado para uso no Brasil em 2022.(8) O conselho de ética em pesquisa institucional aprovou o estudo (Protocolo nº 4.237.807). Todos os pacientes e/ou responsáveis assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, além do termo de assentimento, quando indicado.
Este estudo envolveu 51 participantes entre dois meses e 21 anos de idade — mediana (IQR) = 76 (36-120) meses — que eram predominantemente do sexo masculino (53%), e apenas 10 pacientes (20%) residiam na cidade de Salvador. Em 70,6% da amostra a renda familiar era de até três salários mínimos nacionais e 45% dos responsáveis completaram o ensino médio.
Foram realizados 393 atendimentos. Houve duas interrupções, e exacerbações pulmonares ocorreram em 5 crianças (9,8%) durante o estudo. Participantes maiores de 14 anos e pais/responsáveis de menores dessa idade responderam ao questionário. O nível de satisfação com este modelo de cuidados foi elevado, e a maioria dos participantes classificou como excelentes o tempo e as explicações prestadas pela equipe de FC, bem como a privacidade e a comodidade da telessaúde; 51% dos participantes avaliaram como excelentes a qualidade visual do equipamento, o conforto pessoal e a facilidade de uso do sistema de telessaúde (Figura 1).
Considerando a falta de visitas presenciais, 36,6% relataram preocupação moderada com a falta de espirometria e de culturas de garganta/escarro, enquanto apenas 19,5% expressaram grande preocupação com a falta de exames físicos. No entanto, apenas 22% dos participantes tinham experiências anteriores com cuidados remotos, e a maioria afirmou que acolheria favoravelmente a inclusão da telessaúde nas rotinas de tratamento.
Este estudo relatou a experiência de implementação de atendimento remoto durante a COVID-19 em um centro de referência para pessoas que vivem com FC (PvFC) no Brasil. Observou-se um elevado nível de satisfação com a telessaúde. Dado o momento crítico de acesso aos serviços presenciais, a maioria dos participantes disseram não estar muito preocupados com o absentismo durante a rotina. Além disso, a maioria afirmou que gostaria de receber algumas visitas remotamente.
Perante o advento de novas terapias, particularmente moduladores de CFRT, as mudanças no modelo de cuidados devem enfrentar os desafios atuais, adotando uma perspectiva proativa. Estudos anteriores relataram que a telessaúde é viável e aceitável para prestar cuidados às PvFC.(3,4,9)
As lições aprendidas nos últimos anos demonstraram que a utilização da telessaúde pode continuar no período pós-pandemia e reduzir a carga sobre as famílias. Além disso, o bem-estar e a segurança podem ser aprimorados através de um modelo flexível de telessaúde. Melhorar a educação do paciente e a comunicação com a equipe de especialistas pode ser útil para garantir os melhores resultados clínicos para PvFC e ajudar a resolver as disparidades geográficas.(4,9)
Apesar dos enormes benefícios mencionados acima, devem ser feitas considerações críticas sobre a telessaúde para PvFC, uma vez que não podemos generalizar seus benefícios para todos. As necessidades individuais, bem como os contextos sociais e culturais, devem ser consideradas. Reconhecer o potencial das abordagens digitais e as oportunidades para planejar um modelo de cuidado híbrido pode ser crucial para garantir melhores resultados.(9,10)
Uma limitação deste estudo foi a pequena amostra de indivíduos e o delineamento utilizado. Contudo, considerando o cenário pandêmico, os autores desenvolveram uma resposta rápida para superar as limitações impostas. A força deste estudo reside na possibilidade de replicá-lo para outras doenças raras.
Em resumo, houve um elevado nível de satisfação com a telessaúde, que desempenhou um papel importante na abordagem dos desafios associados à pandemia da COVID-19. Para a gestão das PvFC, as abordagens digitais são promissoras para o futuro. A sua implementação pode ajudar a melhorar a qualidade de vida, reduzir custos e expandir o apoio a pessoas com doenças crônicas.
Este estudo destaca as possibilidades de utilização de ferramentas tecnológicas acessíveis para prestar cuidados à comunidade com FC, principalmente em países de baixa renda, onde há escassez de recursos e acesso limitado a centros de referência. No entanto, são necessárias mais pesquisas para explorar esses resultados e a padronização de tecnologias para cuidados clínicos.
AGRADECIMENTOS Os autores agradecem à equipe do Núcleo de Telessaúde da Universidade Federal da Bahia e à Editora da Universidade Federal da Bahia.
CONTRIBUIÇÕES DO AUTOR AVBF: desenho do estudo; coleta e análise de dados; e redação e revisão do manuscrito. ELS e RTR: supervisão do estudo e revisão do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito.
CONFLITOS DE INTERESSE Nenhum declarado.
REFERÊNCIAS 1. Athanazio RA, Silva Filho LVRF, Vergara AA, Ribeiro AF, Riedi CA, Procianoy EDFA, et al. Brazilian guidelines for the diagnosis and treatment of cystic fibrosis. J Bras Pneumol. 2017;43(3):219-245. https://doi.org/10.1590/s1806-37562017000000065
2. da Silva Filho LVRF, Zampoli M, Cohen-Cymberknoh M, Kabra SK. Cystic fibrosis in low and middle-income countries (LMIC): A view from four different regions of the world. Paediatr Respir Rev. 2021;38:37-44. https://doi.org/10.1016/j.prrv.2020.07.004
3. Shur N, Atabaki SM, Kisling MS, Tabarani A, Williams C, Fraser JL, et al. Rapid deployment of a telemedicine care model for genetics and metabolism during COVID-19. Am J Med Genet A. 2021;185(1):68-72. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.61911
4. Desimone ME, Sherwood J, Soltman SC, Moran A. Telemedicine in cystic fibrosis. J Clin Transl Endocrinol. 2021;26:100270. https://doi.org/10.1016/j.jcte.2021.100270
5. World Health Organization. Global Observatory for eHealth. Telemedicine: Opportunity and developments in Member States. Global Observatory for eHealth - Volume 2; 2010. ISBN: 978-92-4-156414-4
6. Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFB) [homepage on the Internet]. Registro Brasileiro de Fibrose Cística 2015. [Adobe Acrobat document, 18p.]. Available from: http://portalgbefc.org.br/ckfinder/userfiles/files/REBRAFC_2015.pdf
7. Morgan DG, Kosteniuk J, Stewart N, O’Connell ME, Karunanayake C, Beever R. The telehealth satisfaction scale: reliability, validity, and satisfaction with telehealth in a rural memory clinic population. Telemed J E Health. 2014;20(11):997-1003. https://doi.org/10.1089/tmj.2014.0002
8. Moreira TDC, Constant HM, Faria AG, Matzenbacher AMF, Balardin GU, Matturro L, et al. Translation, cross-cultural adaptation and validation of a telemedicine satisfaction questionnaire [Article in Portuguese]. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2022 17(44):2837,20220304.
9. Dixon E, Dick K, Ollosson S, Jones D, Mattock H, Bentley S, et al. Telemedicine and cystic fibrosis: Do we still need face-to-face clinics?. Paediatr Respir Rev. 2022;42:23-28. https://doi.org/10.1016/j.prrv.2021.05.002
10. Prickett MH, Flume PA, Sabadosa KA, Tran QT, Marshall BC. Telehealth and CFTR modulators: Accelerating innovative models of cystic fibrosis care. J Cyst Fibros. 2023;22(1):9-16. https://doi.org/10.1016/j.jcf.2022.07.002