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Cartas ao Editor

Doença de vias aéreas associada à artrite reumatoide: comportamento longitudinal da função pulmonar

Rheumatoid arthritis-associated airway disease: longitudinal pulmonary function behavior

Maria Laura Bertozo Sabbag1, Camila de Assis Molina1, Márcio Valente Yamada Sawamura2, Karina Bonfiglioli3, Ana Cristina Medeiros-Ribeiro3, Alisson Pugliesi4, Renato Hideo Nakagawa5, Fabio Eiji Arimura6, Rodrigo Abensur Athanazio6, Ronaldo Adib Kairalla6, Bruno Guedes Baldi6, Leticia Kawano-Dourado6,7

DOI: https://dx.doi.org/10.36416/1806-3756/e20230322

PARA O EDITOR,
 
A doença de vias aéreas associada à Artrite Reumatoide (DVA-AR) é uma manifestação pulmonar comumente negligenciada da Artrite Reumatoide (AR).(1) Sua prevalência varia consideravelmente, de 8 a 60%, dependendo da fonte dos casos (estudos hospitalares ou autópsia) e dos critérios utilizados para definir a DVA-AR, seja com base nos sintomas, nos testes de função pulmonar (TFPs) ou em exames de imagem.(1)
 
O espectro de manifestações varia desde o comprometimento das pequenas vias aéreas (bronquíolos) até o das grandes vias aéreas.(2) Apesar de sua alta prevalência e complexidade, há poucos estudos na literatura caracterizando a DVA-AR e menos ainda avaliando sua progressão longitudinal.(3)
 
No presente estudo, descrevemos o comportamento longitudinal dos TFPs em pacientes com DVA-AR. Este estudo retrospectivo de centro único envolveu indivíduos com 18 anos ou mais, diagnosticados com DVA-AR em uma clínica pulmonar terciária, que foram acompanhados entre 2016 e 2017. A DVA-AR foi definida pela ausência de doença pulmonar intersticial (DPI) e pela presença de características de doença das vias aéreas em tomografia computadorizada de alta resolução (TCAR) do tórax, não explicadas por outros diagnósticos, como asma ou DPOC. Devido ao tabagismo estar na via causal da AR e provavelmente na via causal da DVA-AR, ele não foi utilizado como um critério de exclusão.(2)
 
Para serem considerados elegíveis, os pacientes precisavam ter realizado uma TCAR de tórax e TFPs. Os TFPs basais foram definidos como os primeiros realizados dentro de um intervalo de 6 meses desde a TCAR. Até quatro resultados adicionais de TFP foram obtidos nos registros eletrônicos de saúde (RES) para estimar a taxa de variação do volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1), capacidade vital forçada (CVF) e a razão VEF1/CVF. Dados clínicos foram obtidos dos RES. Este projeto recebeu aprovação do comitê de ética do Hospital das Clínicas (Processo: 2.825.510).
 
A primeira TCAR de tórax disponível foi analisada qualitativamente por dois leitores independentes (LKD e MVYS) quanto à presença de DVA-AR. Inconsistências foram resolvidas por meio de consenso (concordância kappa entre os leitores: 0,71).
 
Os achados de imagem de DVA-AR foram categorizados da seguinte forma: espessamento brônquico inequívoco, atenuação em mosaico, micronódulos centrolobulares e/ou bronquiectasias focais ou multifocais.
 
A taxa anual de variação do VEF1, CVF e a razão VEF1/CVF foram estimadas usando um modelo de regressão mista (inclinações e intercepções aleatórias), incluindo idade, sexo e VEF1, CVF e VEF1/CVF basais (respectivamente) como covariáveis. O pacote estatístico R foi utilizado na análise.
 
Dentre os 2.495 pacientes que passaram por uma visita de acompanhamento em nossa clínica pulmonar entre 2016 e 2017, 96 (3,8%) correspondiam à nossa definição de caso para AR e envolvimento pulmonar. Destes 96 pacientes, 48 (50%) atenderam aos critérios para DVA-AR. A maioria dos indivíduos soropositivos para AR era do sexo feminino, na sexta década de vida, com uma média de duração da doença de 15 anos. Aproximadamente metade dos pacientes com DVA-AR (48%) nunca havia fumado. Não foram observadas diferenças entre DVA-AR e Doença Pulmonar Intersticial na Artrite Reumatoide (DPI-AR) em relação ao contato anterior com tuberculose (TB) ou tratamento para TB latente.(4) Variáveis clínicas adicionais estão apresentadas na Tabela 1.


 
Os achados mais comuns na TCAR entre os pacientes com DVA-AR foram espessamento brônquico inequívoco em 46 (96%), seguido por atenuação em mosaico em 30 (63%), micronódulos centrolobulares em 28 (58%) e bronquiectasias focais ou multifocais em 23 (48%).
 
Quarenta e quatro pacientes tiveram pelo menos dois TFPs incluídos na análise longitudinal. O intervalo mediano entre o primeiro e o último TFP analisados foi de 20 meses [IIQ: 9,3 – 22,5]. A média da CVF basal foi de 79 ± 19% do valor previsto, do VEF1 foi de 65 ± 22% do valor previsto e da razão VEF1/CVF foi de 0,65 ± 0,17, caracterizando um leve defeito ventilatório obstrutivo (DVO) (Tabela 1). Foi observada uma redução anual estatisticamente significante na CVF (-1,45% previsto, IC 95%: -2,37 a -0,53), enquanto o VEF1 permaneceu estável (-0,62% previsto, IC 95%: -1,54 a 0,30), resultando em um aumento estatisticamente significante na razão VEF1/CVF de 0,01 (IC 95%: 0,005 a 0,016), sugerindo aprisionamento de ar e/ou hiperinsuflação (Figura 1).


 
Conforme esperado para uma amostra de pacientes com AR, metade dos indivíduos havia sido exposto ao tabaco. Excluir pacientes com histórico de tabagismo das análises provavelmente enviesaria os resultados, uma vez que o tabagismo está diretamente relacionado à via causal da própria AR.(5) Funcionalmente, um caso de DVO leve evoluiu com redução da CVF e aumento na razão VEF1/CVF, sugerindo aprisionamento de ar/hiperinsuflação, consistente com achados longitudinais anteriores em DVA-AR.(3) Vale ressaltar que a estimativa de aprisionamento de ar/hiperinsuflação pela razão VEF1/CVF é considerada precisa quando comparada à razão volume residual/capacidade pulmonar total. (6) Na DPOC, o aprisionamento de ar/hiperinsuflação está associado a um aumento no risco de exacerbação da doença, um maior grau de dispneia e uma pior qualidade de vida. Embora esses aspectos não tenham sido avaliados em nosso estudo, eles devem servir como hipóteses de pesquisa plausíveis a serem investigadas em DVA-AR.(7)
 
Os achados tomográficos observados neste estudo são consistentes com o que foi descrito previamente. (2) Além disso, apesar desta coorte ser originária de uma região endêmica para TB, as proporções de bronquiectasias e espessamento da parede brônquica (sequelas comuns de TB) encontradas em nossa amostra foram semelhantes a relatos anteriores sobre DVA-AR em regiões não endêmicas para TB.(8,9)
 
Este estudo apresentou algumas limitações. Primeiramente, foi um estudo retrospectivo de centro único. No entanto, as características de nossa amostra são semelhantes a relatos anteriores sobre DVA-AR na literatura.(1,2,3,9) Em segundo lugar, os dados sobre o acompanhamento da TCAR não estavam disponíveis. Por outro lado, nosso estudo caracterizou minuciosamente os achados basais da TCAR e o comportamento longitudinal dos TFPs em pacientes com DVA-AR, sugerindo o aprisionamento de ar/hiperinsuflação como um mecanismo importante na progressão da doença. Os pacientes relataram evitar exposição ambiental e cessação do tabagismo; portanto, esses fatores são improváveis de serem determinantes causais de nossos achados funcionais longitudinais. Um histórico prévio de tratamento para tuberculose foi constatado em apenas 8% de nossa amostra, e a exclusão desses pacientes não alterou os resultados (dados não apresentados).
 
Em conclusão, na presente coorte, a DVA-AR foi caracterizada por achados de imagem nas pequenas e grandes vias aéreas associados a um defeito ventilatório obstrutivo. Durante o acompanhamento, o aumento observado no aprisionamento de ar e/ou hiperinsuflação possivelmente explica a redução na CVF e o aumento na razão VEF1/CVF. Estudos adicionais são necessários para confirmar o aprisionamento de ar/hiperinsuflação como um mecanismo de progressão na DVA-AR, o que, por sua vez, pode influenciar a escolha de intervenções a serem testadas no manejo dessa condição.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
Os autores contribuíram para o desenvolvimento do estudo da seguinte forma: concepção e delineamento do estudo MLBS, CAM, MVYS, KB, RAK, BGB, LKD; coleta de dados MLBS, CAM, FEA, LKD; análise e interpretação dos resultados MLBS, CAM, AP, RHN, RAA, BGB, LKD; preparação do manuscrito inicial MLBS, CAM, MVYS, KB, ACMR, AP, RHN, FEA, RAA, RAK, BGB, LKD. Todos os autores revisaram os resultados e aprovaram a versão final do manuscrito. Tanto MLBS quanto LKD contribuíram igualmente.
 
CONFLITOS DE INTERESSE
 
Os autores não têm conflitos de interesse a declarar.
 
REFERÊNCIAS
 
1.            Matson SM, Demoruelle MK, Castro M. Airway Disease in Rheumatoid Arthritis. Ann Am Thorac Soc. 2022 Mar;19(3):343-52. https://doi.org/10.1513/AnnalsATS.202107-876CME.
2.            Perez T, Remy-Jardin M, Cortet B. Airways involvement in rheumatoid arthritis: clinical, functional, and HRCT findings. Am J Respir Crit Care Med. 1998;157(5 Pt 1):1658-65. https://doi.org/10.1164/ajrccm.157.5.9710018.
3.            Fuld JP, Johnson MK, Cotton MM, Carter R, Watkin SW, Capell HA, et al. A longitudinal study of lung function in nonsmoking patients with rheumatoid arthritis. Chest. 2003;124(4):1224-31. https://doi.org/10.1378/chest.124.4.1224.
4.            Sabbag ML, Molina C de Assis, Sawamura M, Bonfiglioli K, Arimura FE, Athanazio RA et al. Characterization of Airway Disease in Rheumatoid Arthritis. Am J Resp Crit Care Med 2019; 199:A1440. Disponível em: <https://observatorio.fm.usp.br/handle/OPI/32693>.
5.            Klareskog L, Stolt P, Lundberg K, Källberg H, Bengtsson C, Grunewald J, et al. A new model for an etiology of rheumatoid arthritis: smoking may trigger HLA-DR (shared epitope)-restricted immune reactions to autoantigens modified by citrullination. Arthritis Rheum. 2006 Jan;54(1):38-46. https://doi.org/10.1002/art.21575.
6.            Alter P, Orszag J, Kellerer C, Kahnert K, Speicher T, Watz H, et al. Prediction of air trapping or pulmonary hyperinflation by forced spirometry in COPD patients: results from COSYCONET. ERJ Open Res. 2020 Jul;6(3):00092-2020; https://doi.org/10.1183/23120541.00092-2020.
7.            Kim Y, Kim SH, Rhee CK, Lee JS, Lee CY, Kim DK, et al. Air Trapping and the Risk of COPD Exacerbation: Analysis From Prospective KOCOSS Cohort. Front Med (Lausanne). 2022 Mar;9:835069. https://doi.org/10.3389/fmed.2022.835069.
8.            Kronzer VL, Westerlind H, Alfredsson L, Crowson CS, Nyberg F, Tornling G, et al. Respiratory Diseases as Risk Factors for Seropositive and Seronegative Rheumatoid Arthritis and in Relation to Smoking. Arthritis Rheumatol. 2021 Jan;73(1):61-8. https://doi.org/10.1002/art.41491.
9.            Vuorela M, Mars NJ, Salonen J, Kauppi MJ. Tuberculosis in people with rheumatic di-sease in Finland 1995–2007: a nationwide retrospective register study. Rheumatol Adv Pract. 2019 Aug;3(2):rkz020. https://doi.org/10.1093/rap/rkz020.

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