CENÁRIO PRÁTICO Uma empresa farmacêutica desenvolveu um novo medicamento para melhorar o controle da asma e solicita a uma respeitada equipe de pesquisadores que elabore um estudo para comparar a “melhoralina” (novo medicamento) com a “normalralina” (tratamento padrão). Os pesquisadores acreditam que o melhor desenho deve ser um ensaio clínico randomizado (ECR) comparando os dois medicamentos e medindo a melhora do VEF1 após três meses de tratamento como desfecho principal. Porém, estão preocupados com os custos, o comprometimento de tempo e a necessidade de uma equipe organizada para minimizar as perdas de seguimento, bem como com a logística para mensurar o desfecho primário. Eles se perguntam quais são os prós e os contras de se realizar um ECR neste caso.
Na pesquisa clínica e epidemiológica, os estudos analíticos visam avaliar a potencial associação causa-efeito entre uma intervenção e um desfecho para garantir que a causalidade seja a melhor explicação possível entre todas as opções disponíveis.
Para estabelecer causalidade, a pergunta de estudo que gostaríamos de responder é: qual seria o desfecho se os pacientes recebessem uma intervenção experimental (cenário factual) em comparação com o que teria acontecido se os mesmos pacientes tivessem recebido um tratamento controle, no mesmo momento de suas vidas, em condições idênticas (cenário contrafactual)? Como não podemos testar isso na vida real, o melhor substituto é selecionar aleatoriamente pacientes “semelhantes” para receber a intervenção ou o controle e comparar os desfechos. O desfecho do grupo controle é o cenário contrafactual.(1) Embora não seja perfeito, esse modelo serviu como conceito central inspirando o início de experimentos randomizados e sua inferência estatística por Ronald Fisher por volta dos anos 1920.
VANTAGENS DOS ECR O ECR é um desenho de estudo robusto porque os participantes são designados aleatoriamente para receber a intervenção ou o controle, o que garante que tanto os potenciais fatores de confusão conhecidos quanto os desconhecidos sejam equilibrados no momento da randomização nos dois (ou mais) grupos de estudo. Este processo é realizado em duas etapas. Primeiro, a geração de uma lista aleatória; segundo, o cegamento da alocação, que é um procedimento para evitar que os pesquisadores saibam a qual grupo o próximo paciente será sorteado. Existem algumas maneiras de se fazer isso, como usar envelopes opacos lacrados ou usar sistemas digitais de resposta automática acessados por telefone ou pela internet.
Qualquer tentativa de manipular o processo perturba o equilíbrio que tentamos alcançar. Outra vantagem dos ECR é que a medição das variáveis durante o estudo é prospectiva e garante que todos os participantes tenham medições feitas da mesma maneira ao longo do estudo, evitando viés de informação, minimizando dados faltantes e aumentando a validade interna.
O cegamento, quando possível, é outra vantagem dos ECR. Os participantes, os pesquisadores que acompanham os pacientes durante o estudo, os pesquisadores responsáveis por definir se os participantes vivenciaram ou não o desfecho e/ou o estatístico que analisa os dados podem ser impedidos de saber o grupo a que cada participante havia sido sorteado para minimizar vieses.
A realização de um ECR requer muito preparo, com um protocolo de estudo cuidadosamente elaborado, um manual de procedimentos (por exemplo, instruções específicas para realizar a espirometria), uma equipe e um líder experiente. Isso consome tempo e dinheiro; portanto, um cronograma e um orçamento realistas são essenciais.
CONSIDERAÇÕES IMPORTANTES E ARMADILHAS Os participantes de um ECR não são selecionados aleatoriamente na população de interesse. Eles geralmente são encaminhados por seus médicos ou são autorreferidos por meio de anúncios ou recomendações de outros pacientes, o que pode afetar a generalização. Além disso, as maravilhas da randomização estão no cerne dos ECR, mas como qualquer órgão vital, pode ser afetado por certas condições:
• Cruzamento: pacientes que são designados para um dos braços do estudo, mas, por motivos inespera-dos, recebem o tratamento do outro braço do estudo. Por exemplo, os participantes designados para o grupo intervenção obtêm inaladores contendo “normalralina” em uma farmácia.
• Falta de adesão: alguns participantes podem não aderir ao tratamento designado. No nosso exemplo, um paciente pode decidir parar de usar os seus inaladores para asma. Se essa proporção for elevada, ou se ocorrer com mais frequência num braço do que no outro, torna-se um potencial viés.
• Perda de seguimento: se um participante abandona o estudo e não pode ser contatado, não é possível determinar se ele experimentou ou não o desfecho do estudo, afetando a interpretação dos resultados.(2)
• Co-intervenções: quando os participantes recebem outras intervenções além da intervenção principal, pode ser difícil saber se devemos atribuir o benefício à intervenção do estudo ou à co-intervenção. No nosso exemplo, a adição de corticosteróides para conseguir o controle da asma é uma co-intervenção.
Os investigadores decidiram realizar um ECR para testar se a “melhoralina” é superior ao cuidado habitual para tratar a asma, porque o ECR é o desenho mais robusto para determinar a causalidade se todas as premissas forem cumpridas. Para obter resultados válidos, o estudo precisará de planejamento cuidadoso, tempo, recursos e uma equipe dedicada.
REFERÊNCIAS 1. Höfler M. Causal inference based on counterfactuals. BMC Med Res Methodol. 2005;5:28. https://doi.org/10.1186/1471-2288-5-28
2. Bell ML, Kenward MG, Fairclough DL, Horton NJ. Differential dropout and bias in ran-domised controlled trials: when it matters and when it may not. BMJ. 2013;346:e8668. https://doi.org/10.1136/bmj.e8668