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Editorial

Fogão a lenha: um passatempo agradável, uma rotina perigosa

Wood stoves: a source of enjoyment and a potential hazard

Irma de Godoy

As vantagens do fogão a lenha são inúmeras: pela facilidade de obtenção de lenha, por aquecer a casa, reunindo a família nas noites frias e, finalmente, pela fama de atribuir melhor paladar à comida. Cozinhar é um passatempo agradável e até mesmo uma paixão para a minoria da população. Por outro lado, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de três bilhões de pessoas no mundo dependem de combustíveis sólidos, incluindo lenha, carvão mineral, carvão vegetal e resíduos orgânicos para realizar tarefas que atendam necessidades básicas como cozinhar, ferver a água e aquecer o ambiente.(1) No Brasil, o alto custo ou a inacessibilidade ao botijão de gás obriga as parcelas mais carentes da população a utilizarem fogões a lenha primitivos, com baixo aproveitamento energético e que geram fumaça no ambiente. Dados do Boletim Energético Nacional de 2006, publicados pelo Ministério de Minas e Energia, mostram que a lenha é a principal fonte do consumo total de energia residencial no Brasil, representando 37,5% do total.(2) As outras fontes utilizadas, em ordem decrescente, são eletricidade (33,4%) e gás liquefeito (25,5%). Freqüentemente, o fogão a lenha é utilizado como complemento ao gás de cozinha.

A queima ineficiente dos combustíveis sólidos em fogo aberto ou em fogões a lenha tradicionais, dentro dos domicílios, libera uma mistura perigosa de milhares de substâncias. Muitas delas causam danos à saúde humana, e os componentes mais importantes são material particulado, monóxido de carbono, óxido nitroso, óxidos sulfúricos, formaldeído, hidrocarbonetos e material orgânico policíclico, que inclui carcinogênicos como o benzopireno.(3) Em geral, há associação entre a alta emissão de poluentes, devido à combustão incompleta, e a ventilação inadequada do ambiente e, em conseqüência, os níveis de poluição intradomiciliar são muito elevados. Os valores podem exceder em dez, vinte ou até mais vezes os padrões utilizados pelo U.S. Environmental Protection Agency para média anual de material ­particulado < 10 mícron de diâmetro no ar ambiente (50 µg/m3) e também o limite ­estabelecido pela União Européia (40 µg/m3).(4) As ­conseqüências desta exposição para a saúde dependem não apenas do nível da poluição mas ­principalmente do tempo que os ­indivíduos passam respirando o ar poluído. Nos países em desenvolvimento, os indivíduos são expostos aos altos níveis de poluição por longos períodos, de 3 a 7 horas/dia, durante muitos anos.(5) Os mais expostos são aqueles que permanecem mais tempo nos ambientes poluídos, ou seja, principalmente as mulheres, as crianças, os idosos e os doentes. Como a tarefa de cozinhar ocorre todos os dias do ano e consome várias horas do dia, a exposição é persistente e duradoura.

Dados da OMS mostram a poluição intradomiciliar, secundária à queima de combustíveis sólidos, como um dos dez mais importantes riscos para a saúde no mundo.(4) Em 2002, 1,5 milhão de pessoas morreram devido a doenças causadas pela poluição intradomiciliar.(4) A maioria dos estudos sobre a associação entre poluição intradomicilar e danos à saúde é observacional e não avaliou de forma detalhada a intensidade de exposição; entretanto, há evidências que indicam uma relação de causa e efeito entre a ­exposição e infecções agudas do trato respiratório em crianças menores que 5 anos, bronquite crônica, assim como DPOC.(5) Por outro lado, as evidências desta associação com otite média, câncer de pulmão, câncer de laringe, exacerbação da asma, tuberculose pulmonar, baixo peso ao nascer, mortalidade infantil e catarata são mais fracas.(5)

Diretrizes para tratamento reconhecem a poluição intradomiciliar como um fator de risco para o desenvolvimento de DPOC.(6,7) Entretanto, o número de estudos nacionais que avaliou a influência deste fator de risco para a doença é reduzido, e os resultados são inconclusivos.(8,9) Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Moreira et al.(10) apresentam um estudo que avaliou os sintomas respiratórios e alterações da função pulmonar de 170 pacientes com DPOC: 34 expostos somente à fumaça de combustão de lenha, 59 expostos somente ao tabaco e 77 com exposição aos dois agentes. Os resultados não mostraram diferenças nos sintomas entre os grupos. Entretanto, os expostos à fumaça de lenha apresentaram menor comprometimento da função pulmonar quando comparados aos expostos aos dois agentes ou exclusivamente ao tabaco. Além disso, o percentual de pacientes com doença grave ou muito grave foi menor no grupo com exposição exclusiva à biomassa quando comparados aos expostos exclusivamente ao tabaco (11,8 vs. 44,1%). As limitações do presente estudo são similares às observadas durante a análise da literatura sobre o assunto, incluindo a avaliação não sistemática da exposição, o caráter observacional e, em particular neste estudo, o caráter retrospectivo. Entretanto, o estudo mostrou que a maioria absoluta (80%) da amostra estudada apresentava história de exposição à poluição intradomiciliar causada pela combustão de lenha > 80 horas-ano. Este dado revela a importância da avaliação sistemática da exposição ao agente, mesmo em tabagistas, para que durante o manejo dos pacientes com DPOC, a orientação para afastamento dos fatores de risco seja completa. Dados nacionais que reforcem a associação de danos à saúde com a exposição aos produtos de combustão da lenha podem contribuir para a implantação dos fogões ecológicos e, assim, para a prevenção de DPOC. Nada impede, entretanto, que os apaixonados pelo ato de cozinhar em fogões a lenha modernos continuem desenvolvendo este agradável passatempo porque, pelo menos por enquanto, não há associação da exposição eventual com danos à saúde.

Irma de Godoy
Professora Livre Docente da Disciplina de Pneumologia
Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista - UNESP - Botucatu (SP) Brasil



Referências


1. World Health Organization - WHO. [homepage on the Internet]. Geneva: World Health Organization. [cited 2008 Jul 16]. Indoor air pollution and health. Fact sheet No. 292. June 2005. Available from: www.who.int/entity/mediacentre/factsheets/fs292/en/

2. Ministério de Minas e Energia. [homepage on the Internet]. Brasília: The Ministry [cited 2008 Jun 16]. Balanço energético nacional: consumo de energia por setor entre 1970-2006. Available from: www.mme.gov.br/site/menu/select_main_menu_item.do?channelId=1432&pageId=14130.

3. Bruce N, Perez-Padilla R, Albalak R. Indoor air pollution in developing countries: a major environmental and public health challenge. Bull World Health Organ. 2000;78(9):1078-92.

4. World Health Organization - WHO. [homepage on the Internet]. Geneva: World Health Organization. [cited 2008 Feb 16]. Fuel for life: household energy and health. Available from: www.who.int/indoorair/publications/fuelforlife/en/

5. Bruce N, Perez-Padilla R, Albalak R. The health effects of indoor air pollution exposure in developing countries [monograph on the Internet]. Geneva: World Health Organization. Protection of the Human Environment; 2002. [cited 2008 Jul 16]. Available from: www.who.int/indoorair/publications/health_effects/en/

6. Fabbri LM, Hurd SS; GOLD Scientific Committee. Global Strategy for the Diagnosis, Management and Prevention of COPD: 2003 update. Eur Repir J. 2003;22(1):1-2.

7. Sociedade Brasileira de Pneumologia-SBPT. II Consenso Brasileiro sobre Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica - DPOC - 2004. J Bras Pneumol. 2004;30(Supl 5):S1-S42.

8. Menezes AM, Jardim JR, Pérez-Padilha R, Camalier A, Rosa F, Nascimento O, et al. Prevalence of chronic obstructive pulmonary disease and associated factors: the PLATINO study in São Paulo, Brazil. Cad. Saúde Pública. 2005;21(5):1565-73.

9. Menezes AM, Victora CG, Rigatto M. Prevalence and risk factors for chronic bronchitis in Pelotas, RS, Brazil: a population-based study. Thorax. 1994;49(12):1217-21.

10. Moreira MA, Moraes MR, Silva DG, Pinheiro TF, Vasconcelos Jr HM, Maia LF, et al. Estudo comparativo de sintomas respiratórios e função pulmonar em pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica relacionada à exposição à fumaça de lenha e de tabaco. J Bras Pneumol. 2008;34(9);667-74.

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