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Relato de Caso

Derrame pleural secundário à hiperestimulação ovariana

Pleural effusion following ovarian hyperstimulation

Jader Joel Machado Junqueira, Ricardo Helbert Bammann, Ricardo Mingarini Terra, Ana Cristina Pugliesi de Castro, Augusto Ishy, Angelo Fernandez

ABSTRACT

Ovarian hyperstimulation syndrome (OHSS) is an iatrogenic complication that occurs in the luteal phase of an induced hormonal cycle. In most cases, the symptoms are self-limited and spontaneous regression occurs. However, severe cases are typically accompanied by acute respiratory distress. The objective of the present study was to describe the clinical presentation, treatment, and outcome of pleural effusion associated with OHSS in three patients undergoing in vitro fertilization. The patients ranged in age from 27 to 33 years. The onset of symptomatic pleural effusion (bilateral in all cases) occurred, on average, 43 days (range, 27-60 days) after initiation of hormone therapy for ovulation induction. All three patients required hospitalization for massive fluid resuscitation, and two required noninvasive mechanical ventilation. Although all three patients initially underwent thoracentesis, early recurrence of symptoms and pleural effusion prompted the use of drainage with a pigtail catheter. Despite the high output from the pleural drain (mean, 1,000 mL/day in the first week) and prolonged drainage (for 9-22 days), the outcomes were excellent: all three patients were discharged from hospital. Although pleural effusion secondary to OHSS is probably underdiagnosed, the associated morbidity should not be underestimated, especially because it affects potentially pregnant patients. In this study, early diagnosis and appropriate supportive measures yielded favorable results, limiting the surgical approach to adequate pleural drainage.

Keywords: Fertilization in vitro; Ovarian hyperstimulation syndrome; Pleural effusion.

RESUMO

A síndrome de hiperestimulação ovariana (SHEO) é uma complicação iatrogênica que ocorre na fase lútea de um ciclo hormonal induzido. Na maioria dos casos, os sintomas são autolimitados e regridem espontaneamente. Entretanto, casos graves comumente cursam com desconforto respiratório agudo. O objetivo deste estudo foi descrever a apresentação clínica, o tratamento e os desfechos de derrame pleural associado a SHEO em três pacientes submetidas a fertilização in vitro. A idade das pacientes variou de 27 a 33 anos, e o aparecimento do derrame pleural sintomático (bilateral em todos os casos) ocorreu, em média, 43 dias (variação: 27-60 dias) após o início da terapia hormonal para a indução da ovulação. Todas as pacientes necessitaram de internação hospitalar para reposição volêmica maciça, e duas delas necessitaram de ventilação mecânica não invasiva. Embora todas as pacientes tenham sido inicialmente submetidas à toracocentese, a recidiva precoce dos sintomas e do derrame pleural fez com que se optasse pela drenagem pleural com cateter do tipo pigtail. Apesar do alto débito de drenagem (média de 1.000 mL/dia na primeira semana) e do tempo de drenagem prolongado (9-22 dias), os desfechos foram excelentes (alta hospitalar). Embora o derrame pleural secundário a SHEO seja provavelmente subdiagnosticado, a morbidade associada não deve ser subestimada, principalmente devido a seus efeitos em pacientes potencialmente gestantes. Nesta série de casos, o diagnóstico precoce e as medidas de suporte clínico adequadas permitiram uma evolução favorável, limitando a abordagem cirúrgica a uma drenagem pleural adequada.

Palavras-chave: Fertilização in vitro; Síndrome de hiperestimulação ovariana; Derrame pleural.

Introdução

A síndrome de hiperestimulação ovariana (SHEO) é uma complicação iatrogênica que ocorre na fase lútea de um ciclo hormonal induzido.(1) A patogênese da SHEO está ligada à ação de substâncias vasoativas (citocinas, interleucinas, endotelinas, sistema renina-angiotensina, fator de necrose tumoral e fator de crescimento endotelial) que são secretadas sob estímulo gonadotrófico e que geram aumento da permeabilidade vascular, com depleção do volume intravascular e extravasamento maciço de fluido rico em proteína para dentro do espaço peritoneal, do espaço pleural e, mais raramente, do espaço pericárdico.(2-9)

Na maioria dos casos, as manifestações clínicas da SHEO são autolimitadas e a síndrome resolve espontaneamente em poucos dias, contanto que se inicie o tratamento de suporte adequado.(6,7) Entretanto, há relatos de associação entre SHEO e morbidade substancial, principalmente desconforto respiratório agudo, bem como de complicações fatais em pacientes com SHEO grave ou crítica.(8) Informações a respeito da SHEO não são amplamente divulgadas e restringem-se principalmente a estudos publicados em periódicos especializados em ginecologia e obstetrícia ou reprodução humana. O objetivo do presente relato foi descrever a apresentação clínica, o tratamento e o curso de derrame pleural secundário a SHEO em três pacientes atendidas pela mesma equipe de cirurgia torácica em dois hospitais terciários particulares na cidade de São Paulo (SP). O estudo foi aprovado pelos comitês de revisão das duas instituições, e as três pacientes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.

Relato de casos

Três pacientes de 27 a 33 anos de idade foram internadas devido a dispneia progressiva e derrame pleural bilateral volumoso. Todas as pacientes estavam recebendo terapia de indução da ovulação para fertilização in vitro. Duas das pacientes já haviam sido submetidas à transferência embrionária. As três pacientes apresentaram a hipertrofia ovariana e vários cistos foliculares, com ou sem ascite. O derrame pleural foi inicialmente tratado com toracocentese bilateral (em duas das pacientes) ou paracentese (em uma) para alívio dos sintomas. Entretanto, devido à recidiva precoce do derrame pleural, realizou-se em seguida drenagem pleural com cateter do tipo pigtail. Como mostra a Tabela 1, o débito diário foi muito alto. Não obstante, nenhuma medida específica além de reposição volêmica agressiva foi tomada a fim de controlar o alto débito de drenagem. As pacientes receberam injeção intravenosa de cristaloides (2.000-4.000 mL/dia) e albumina humana a 20% (200-300 mL/dia) durante 7 dias, em média. Duas das pacientes necessitaram de ventilação mecânica não invasiva. As três pacientes apresentaram resposta favorável ao tratamento, e o tempo de internação variou de 9 a 17 dias (em duas pacientes, os drenos pleurais foram retirados em ambulatórios, após a alta hospitalar). Mais informações clínicas e laboratoriais encontram-se na Tabela 1.



Discussão

A classificação da SHEO pode se basear em parâmetros clínicos e laboratoriais, bem como em achados ultrassonográficos. A SHEO pode ser classificada de acordo com sua gravidade(3,5,7):

 leve (distensão e desconforto abdominal)
 moderada (ascite identificada somente por ultrassom)
 grave (ascite identificada por exame físico ou presença de derrame pleural ou pericárdico associado a hemoconcentração (hematócrito > 45% e contagem de leucócitos > 15.000 células/µL)
 crítica (os sintomas descritos acima são acompanhados de hipotensão, insuficiência renal aguda e distúrbios tromboembólicos devido a hemoconcentração elevada: hematócrito > 55% e contagem de leucócitos > 25.000 células/µL)

Relatou-se que a SHEO grave ou crítica ocorre em menos de 2% dos casos.(5) Os três casos descritos no presente relato podem ser considerados graves ou críticos, sendo que os sintomas respiratórios manifestaram-se, em média, 43 dias (variação: 27-60 dias) após o início da terapia de indução da ovulação. Os sintomas da SHEO geralmente se manifestam 4 a 5 dias após a coleta dos óvulos e, caso não haja gravidez, a SHEO tende a resolver espontaneamente em poucos dias. Entretanto, caso haja gravidez, a SHEO tende a ser mais grave e de maior duração. Das duas pacientes que já haviam sido submetidas à transferência embrionária, apenas uma permaneceu grávida, e não houve outras complicações durante a gestação.

Uma anamnese precisa e eficaz inevitavelmente revelará comprometimento respiratório secundário ao tratamento de fertilização. Porém, a avaliação do derrame pleural deve se basear primordialmente nos resultados do exame físico. O diagnóstico deve ser confirmado preferencialmente por ultrassom, pois a exposição a radiação deve ser evitada em pacientes potencialmente gestantes. O sintoma respiratório mais comum é a dispneia, que é facilmente explicada pela presença de líquido na cavidade pleural, comprometendo a expansão pulmonar e causando atelectasia basal. Além disso, a ascite, o progressivo aumento ovariano e o íleo paralítico contribuem para a piora do desconforto respiratório.(9)

O desconforto abdominal comumente relatado pelas pacientes não se deve necessariamente à ascite, mas sim ao volume de cada ovário hiperestimulado, que pode ser superior a 500 cm3, como ocorreu em um dos três casos descritos aqui. A formação de ascite não está relacionada a eventuais rupturas ou extravasamentos dos ovários hipertrofiados, mas sim aos mecanismos do aumento da permeabilidade capilar.(7)

Os casos de derrame pleural associado a ascite podem ser explicados pela migração de líquido da cavidade abdominal para a cavidade torácica através dos poros do diafragma, influenciada pela pressão negativa intrapleural.(3,6) Entretanto, a fisiopatologia do derrame pleural isolado (sem líquido ascítico, como ocorreu em um dos casos relatados aqui) não é totalmente clara.(6)

A análise do líquido pleural revelou a presença de exsudato em um dos casos e de transudato nos outros dois, um achado que vai ao encontro daqueles relatados em outros estudos publicados na literatura,(10) o que sugere a existência de múltiplos mecanismos envolvidos no derrame pleural e reforça a falta de informações precisas acerca de sua fisiopatologia.

Em casos de recidiva do derrame pleural, a drenagem pleural reduz significativamente a dispneia e melhora a função respiratória. Além de controlar os sintomas, a re-expansão pulmonar e a oxigenoterapia suplementar visam corrigir a hipoxemia em pacientes potencialmente gestantes, minimizando o risco de complicações mais sérias que possam afetar o embrião.(2)

A gravidade da SHEO está intimamente relacionada ao grau de resposta folicular ovariana.(3) Como a resposta individual à indução da ovulação é imprevisível, uma abordagem preventiva torna-se praticamente impossível. Entretanto, atenção especial deve ser dada a potenciais fatores de risco, alguns dos quais foram observados nos três casos aqui relatados: idade inferior a 35 anos; diagnóstico prévio de síndrome do ovário policístico; visualização de mais de dez folículos ovarianos e níveis plasmáticos de estradiol acima de 2.000 pg/mL.(11)

O acúmulo de derrame pleural secundário à SHEO é provavelmente subdiagnosticado. Porém, essa hipótese diagnóstica deve ser considerada caso a anamnese inclua tratamento atual ou procedimentos recentes para fertilização in vitro. Não se deve subestimar a morbidade associada à SHEO, especialmente porque as pacientes podem estar grávidas. A presença de SHEO grave ou crítica constitui indicação para internação hospitalar, sendo necessária monitoração hemodinâmica contínua até que se restabeleça o volume intravascular, o que se dá por meio de injeção intravenosa de soluções cristaloides e coloides. Quando o diagnóstico é precoce e medidas de suporte adequadas são tomadas, o prognóstico da SHEO é favorável.

Referência

1. Wood N, Edozien L, Lieberman B. Symptomatic unilateral pleural effusion as a presentation of ovarian hyperstimulation syndrome. Hum Reprod. 1998;13(3):571-2. PMid:9572413. http://dx.doi.org/10.1093/humrep/13.3.571

2. Abramov Y, Elchalal U, Schenker JG. Pulmonary manifestations of severe ovarian hyperstimulation syndrome: a multicenter study. Fertil Steril. 1999;71(4):645-51. http://dx.doi.org/10.1016/S0015-0282(98)00528-7

3. Roden S, Juvin K, Homasson JP, Israël-Biet D. An uncommon etiology of isolated pleural effusion. The ovarian hyperstimulation syndrome. Chest. 2000;118(1):256-8. PMid:10893391. http://dx.doi.org/10.1378/chest.118.1.256

4. Man A, Schwarz Y, Greif J. Pleural effusion as a presenting symptom of ovarian hyperstimulation syndrome. Eur Respir J. 1997;10(10):2425-6. PMid:9387976. http://dx.doi.org/10.1183/09031936.97.10102425

5. McNeary M, Stark P. Radiographic findings in ovarian hyperstimulation syndrome. J Thorac Imaging. 2002;17(3):230-2. PMid:12082376. http://dx.doi.org/10.1097/00005382-200207000-00009

6. Murray A, Rombauts L. Unilateral pleural effusion as the main presentation of "early onset" severe ovarian hyperstimulation syndrome. Fertil Steril. 2004;81(4):1127-9. PMid:15066475. http://dx.doi.org/10.1016/j.fertnstert.2003.12.010

7. Whelan JG 3rd, Vlahos NF. The ovarian hyperstimulation syndrome. Fertil Steril. 2000;73(5):883-96. http://dx.doi.org/10.1016/S0015-0282(00)00491-X

8. Semba S, Moriya T, Youssef EM, Sasano H. An autopsy case of ovarian hyperstimulation syndrome with massive pulmonary edema and pleural effusion. Pathol Int. 2000;50(7):549-52. PMid:10886738. http://dx.doi.org/10.1046/j.1440-1827.2000.01082.x

9. Delvigne A, Rozenberg S. Review of clinical course and treatment of ovarian hyperstimulation syndrome (OHSS). Hum Reprod Update. 2003;9(1):77-96. PMid:12638783. http://dx.doi.org/10.1093/humupd/dmg005

10. Gregory WT, Patton PE. Isolated pleural effusion in severe ovarian hyperstimulation: A case report. Am J Obstet Gynecol. 1999;180(6 Pt 1):1468-71. http://dx.doi.org/10.1016/S0002-9378(99)70039-6

11. Priou G. Ovarian hyperstimulation in medically assisted reproduction: which practical approach? [Article in French]. Contracept Fertil Sex. 1996;24(9):647-9. PMid:8998510.




Trabalho realizado nas Clínicas de Cirurgia Torácica do Hospital Sírio-Libanês e do Hospital Nove de Julho, São Paulo (SP) Brasil.
Endereço para correspondência: Jader Joel Machado Junqueira. Rua Adma Jafet, 50, conjunto 55, Cerqueira César, CEP 01308-050,São Paulo, SP, Brasil.
Tel./Fax: 55 11 3214-6661 E-mail: jader_junqueira@yahoo.com.br
Apoio financeiro: Nenhum.
Recebido para publicação em 15/7/2010. Aprovado, após revisão, em 18/10/2010.




Sobre os autores

Jader Joel Machado Junqueira
Médico Residente de Cirurgia. Clínica de Cirurgia Torácica, Hospital Sírio-Libanês, São Paulo (SP) Brasil.

Ricardo Helbert Bammann
Cirurgião Torácico. Clínica de Cirurgia Torácica, Hospital Nove de Julho, São Paulo (SP) Brasil.

Ricardo Mingarini Terra
Cirurgião Torácico. Clínica de Cirurgia Torácica, Hospital Sírio-Libanês, São Paulo (SP) Brasil.

Ana Cristina P. Castro
Cirurgiã Torácica. Clínica de Cirurgia Torácica, Hospital Sírio-Libanês, São Paulo (SP) Brasil.

Augusto Ishy
Cirurgião Torácico. Clínica de Cirurgia Torácica, Hospital Nove de Julho, São Paulo (SP) Brasil.

Angelo Fernandez
Cirurgião Torácico. Clínica de Cirurgia Torácica, Hospital Sírio-Libanês, São Paulo (SP) Brasil.

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