Ao Editor:A criptosporidiose é uma infecção causada pelo protozoário do gênero Cryptosporidium spp., que infecta células epiteliais do trato gastrointestinal dos seres humanos e dos animais.(1)
As manifestações clínicas dependem do estado imune do paciente. Nos imunocompetentes, provoca episódios de diarreia autolimitada, principalmente em crianças da América Latina. Nos pacientes com AIDS e imunodeficiência avançada, é a causa parasitária mais comum de diarreia prolongada, associada à perda de peso acentuada, podendo evoluir com grave desidratação e distúrbio eletrolítico.(1,2)
Na era pré-terapia antirretroviral (TARV), a criptosporidiose intestinal era responsável pelo sintoma diarreico em 10-30% dos pacientes com AIDS procedentes de países desenvolvidos e em 30-50% daqueles em países em desenvolvimento.(3) Na atualidade, em países desenvolvidos, com baixas taxas de contaminação ambiental e disponibilidade de TARV potente, a incidência de criptosporidiose intestinal é inferior a 1 caso por 100 pessoas/ano entre pacientes com AIDS.(4)
O comprometimento pulmonar é uma rara complicação da criptosporidiose intestinal, descrita em pacientes imunocomprometidos, a maioria com AIDS e grave imunodeficiência.(2) A prevalência da criptosporidiose pulmonar, entretanto, pode estar subestimada, por não ser sistematicamente investigada.(5) Em um estudo prospectivo realizado em 275 pacientes com AIDS na Espanha, 43 apresentaram enterite por criptosporídio, dos quais, em 7 pacientes, identificaram-se oocistos de Cryptosporidium spp. no exame de escarro.(3)
A patogenia da criptosporidiose pulmonar não está totalmente esclarecida.(2,6) Discute-se a possibilidade de a localização pulmonar resultar da inalação de oocistos durante um episódio de vômito ou ser consequente da disseminação hematogênica.(2) Apesar de os oocistos de criptosporídio usualmente não invadirem a mucosa intestinal, oocistos desse parasita têm sido encontrados no interior de macrófagos, os quais podem ter sua habilidade fagocítica defectiva. Ademais, esse parasita pode se multiplicar em macrófagos in vitro, sugerindo que o parasitismo extraintestinal ocorreria através dos macrófagos circulantes.(7) Essa hipótese é sustentada pela presença de Cryptosporidium spp. no interior dos vasos sanguíneos da submucosa intestinal e pulmonar, evidenciada em estudos de necropsia.(2,7)
As manifestações clínicas da criptosporidiose pulmonar são inespecíficas e incluem habitualmente tosse crônica, febre e dispneia como sintomas mais frequentes, podendo ou não apresentar alterações radiológicas.(2) Apesar de não haver descrição de achado radiológico patognomônico de criptosporidiose pulmonar, tem sido descrita a presença de opacidade intersticial em alguns relatos de casos.(2,3,7,8)
Em uma pesquisa conduzida em hospitais de referência para atendimento de pacientes com HIV/AIDS e suspeita clínica de tuberculose pulmonar em Recife (PE), de um total de 130 exames de escarro realizados até o momento, Cryptosporidium spp. foi o único agente identificado em 2 (1,5%) daqueles pacientes; o diagnóstico foi realizado através da identificação de oocistos de Cryptosporidium spp. no exame de escarro corado com Ziehl-Neelsen (Figura 1). Em ambos os casos, os pacientes apresentaram febre vespertina, tosse, perda ponderal e mal-estar geral, sugerindo o diagnóstico de tuberculose pulmonar. Nos 2 casos estudados observou-se um grave comprometimento imune, com contagem das células T CD4 muito baixas (25 e 37células/µL). Apesar de não ter sido pesquisada a presença de Pneumocystis jirovecii, foi prescrito sulfametoxazol/trimetoprima para a profilaxia contra esse agente. Ambos os pacientes tiveram diagnóstico recente de AIDS, e apenas 1 deles teve suspeita clínica inicial de criptosporidiose intestinal, confirmada através do exame coproparasitológico, enquanto o outro apresentou sinais clínicos sugestivos de tuberculose pulmonar, sem, entretanto, referir queixas digestivas. O exame radiográfico do tórax (Figura 2) foi normal nos 2 pacientes. As culturas de escarro realizadas utilizando-se os meios Löwenstein-Jensen e Middlebrook 7H9 não evidenciaram crescimento de micobactérias.
Os pacientes evoluíram com melhora clínica, imunológica e virológica progressivas, após o início da TARV. Não existe medicamento específico com eficácia comprovada para o tratamento da criptosporidiose, estando a melhora clínica relacionada ao estado imune do paciente.(2)
Ressalta-se a importância da necessidade de investigação dessa parasitose nos pacientes com AIDS e clinicamente suspeitos de tuberculose pulmonar, principalmente nos que apresentarem diarreia prolongada.
AgradecimentosOs autores agradecem ao Laboratório Marcelo Magalhães o suporte na realização dos exames de escarro.
Yvana Maria Maia de Albuquerque
Médica Infectologista,
Hospital Correia Picanço, Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco,
Recife (PE) Brasil
Márcia Cristina Fraga Silva
Médica Infectologista,
Hospital Correia Picanço, Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco,
Recife (PE) Brasil
Ana Luiza Magalhães de Andrade Lima
Acadêmica de Medicina,
Faculdade Pernambucana de Saúde, Recife (PE) Brasil
Vera Magalhães
Professora Titular em
Doenças Infecciosas,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife (PE) BrasilReferências1. Vergara Castiblanco C, Santos Núñez S, Freire Santos F, Ares Mazás
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