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Cartas ao Editor

Convencer e informar: questões éticas nas campanhas de saúde pública

To convince and to inform: ethical issues in public health campaigns

Alexandre Amaral Rodrigues

Prezado Editor

Recentemente passei a ouvir muitas pessoas afirmarem com segurança que uma sessão de consumo de tabaco por narguilé equivaleria ao fumo de mais de 100 cigarros. Como tenho formada opinião cética acerca de informações relacionadas a campanhas de saúde pública, cujos dados me parecem ser muitas vezes descuidados e frequentemente exagerados, resolvi buscar a fonte da informação. Verifiquei tratar-se do artigo de revisão intitulado "Formas não habituais de uso do tabaco", de Carlos Alberto de Assis Viegas, publicado neste Jornal, vol. 34, n. 12.

O texto, contudo, apresenta problemas de rigor, e a informação divulgada é, no mínimo, passível de dúvidas.

Veja-se, primeiramente, o quarto parágrafo após o subtítulo "Narguilé". Ali,
lê-se o seguinte: "Os fumantes de um cigarro habitualmente inalam entre 8 e 12 baforadas de fumaça com 40-75 mL cada, em 5-7 min, inalando de 0,5-0,6 L de fumaça por cigarro. Por outro lado, uma sessão de narguilé habitualmente dura 20-80 min ou mais, durante a qual o fumante inala 50-200 baforadas num total de 0,5-1,0 L de fumaça. Desta forma, o fumante de narguilé deve inalar, em uma sessão, a mesma quantidade de fumaça que um fumante de cigarros inalaria se consumisse 100 ou mais cigarros".

Ora, se atentarmos para a proporção ente os volumes de fumaça, veremos que não é possível fazer tal inferência: uma sessão de narguilé não corresponderia, em volume de fumaça inalado, a mais de 100 cigarros, mas a algo entre 1 e 1,7 cigarro.

Tal equívoco, entretanto, deve-se a um erro de redação. O artigo de onde se extraiu a informação afirma que cada baforada (e não uma sessão) de narguilé produz algo entre 0,15 L e 1 L de fumaça e, portanto, o fumante "pode [e não "deve"] inalar em uma sessão (...) tanta fumaça quanto (...) [se] inalaria ao consumir 100 ou mais cigarros".(1) Os números causam estranhamento, mas a explicação estaria no fato de que a água filtra, sim, parte da nicotina, mas a assimilação do alcaloide regularia a quantidade de fumaça inalada, daí o espantoso volume produzido em cada baforada.(2)

Este último dado, referente à relação entre a assimilação de nicotina e o volum e de fumaça inalado é citado no artigo em questão, no último parágrafo deste tópico. Porém, no mesmo trecho lê-se que "a água usada no narguilé absorve pouco da nicotina (cerca de 5%), fazendo com que os fumantes sejam expostos a quantidades suficientes para que a droga cause dependência". Ora, se levarmos em conta os dados informados no quarto parágrafo do tópico, segundo o qual "a composição do tabaco usado para esta modalidade de consumo não é padronizada e seu conteúdo de nicotina é estimado entre 2% e 4%, em comparação com 1-3% do tabaco usado para cigarros", concluiremos que o teor de nicotina da fumaça após a filtragem da água continuaria a ser maior do que no cigarro (95% × 2-4%, resultando em algo entre 1,9% e 3,8%). Portanto, os fumantes de narguilé não inalariam mais fumaça; ao contrário, eles deveriam, em tese, inalar menos fumaça. Ocorre, justamente, que o artigo de onde se extrai a informação sobre a filtragem, mais recente que o de Shihadeh et al.,(1) não chega à mesma conclusão deste. Com efeito, em seu abstract lê-se que "uma sessão de uso de narguilé produziu um nível de cotinina urinária equivalente ao consumo de 2 cigarros em um dia".(3)

Em suma, um dos artigos utilizados afirma que uma sessão de narguilé pode equivaler a 100 ou mais cigarros, e justifica isso com a hipótese de uma compensação entre a filtragem da nicotina e o volume de cada baforada; ao passo que o outro desautoriza essa justificativa, ao afirmar que a água filtra pouca nicotina, e chega à conclusão de que uma sessão inteira de narguilé equivale, em termos de nicotina absorvida, a fumar 2 cigarros, e não 100 ou mais. Assim, a informação do volume de fumaça e a da filtragem pela água são incongruentes entre si.

Perguntamo-nos, assim, o que teria levado um texto científico a incorrer em tantos descuidos de rigor. E atrevo-me a uma resposta. O erro geral consiste em selecionar informações de artigos diferentes, que usam metodologias diversas e chegam a resultados distintos. O critério parece ter sido o de apresentar os dados mais impressionantes de cada um.

Não se trata, na verdade, de um artigo científico, mas de um artigo de divulgação de material para o público leigo, com o fim de promover o antitabagismo. Mas por que apresentá-lo em embalagem científica? O motivo parece claro: influenciar a opinião pública. Mas não seria isso uma forma de ludibriar o público, ainda que para promover-lhe o bem? Seria justo induzir pessoas a repetirem algo incessantemente, seguros de que possuem a informação certa, quando na verdade tantas dúvidas pairam sobre ela? Se as informações são manipuladas para convencer as pessoas de certa conduta ou abstenção, quem, ou que grupo, decidiu por essa moralidade? Baseado em quê, já que os fatos que deveriam fundamentá-la são alterados para melhor persuadir de sua beneficência?

O fato para o qual chamo a atenção aqui não parece ser isolado. É provável que outras grandes campanhas de saúde pública que visem promover mudanças de hábitos e costumes individuais apresentem problemas da mesma ordem. Isso certamente mereceria maior debate quanto aos problemas éticos implicados do que se vem observando atualmente.

Alexandre Amaral Rodrigues
Revisor parecerista dos Cadernos de Ética e Filosofia Política,
Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil


Referências


1. Shihadeh A, Azar S, Antonios C, Haddad A. Towards a topographical model of narghile water-pipe café smoking: a pilot study in a high socioeconomic status neighborhood of Beirut, Lebanon. Pharmacol Biochem Behav. 2004;79(1):75-82.

2. World Health Organization. WHO Study Group on Tobacco Product Regulation [monograph on the Internet]. TobReg Advisory Note: Waterpipe Tobacco Smoking: Health Effects, Research Needs and Recommended Actions by Regulators. Geneva: WHO/TobReg; 2005 [cited 2009 Feb 22]. p. 3-4. Available from: http://www.who.int/tobacco/global_interaction/tobreg/Waterpipe%20recommendation_Final.pdf

3. Neergaard J, Singh P, Job J, Montgomery S. Waterpipe smoking and nicotine exposure: a review of the current evidence [abstract]. Nicotine Tob Res. 2007;9(10)987-94.

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