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Relato de Caso

Carcinoma mucoepidermoide da traqueia mimetizando asma brônquica

Mucoepidermoid carcinoma of the trachea mimicking asthma

Ricardo Kalaf Mussi, Ivan Felizardo Contrera Toro, Mônica Corso Pereira

ABSTRACT

In cases of recent asthma in which clinical control with the usual treatment (corticosteroids and bronchodilator) is unsatisfactory, it is important to consider other diagnoses, such as congestive heart failure, gastroesophageal reflux or other forms of airway obstruction. We report the case of a female patient with mucoepidermoid carcinoma of the trachea mimicking asthma. The patient presented cough and wheezing, as well as abnormal spirometry results with an obstructive pattern that was responsive to bronchodilators. One year later, the patient presented clinical and spirometric worsening. The chest X-ray revealed no abnormalities. A CT scan showed a vegetative lesion obstructing the tracheal lumen and located 1 cm from the carina. Fiberoptic bronchoscopy showed a finding similar to a bronchial carcinoid tumor. The anatomopathological diagnosis made after surgical resection was low-grade mucoepidermoid carcinoma, without lymph node involvement. Although the flow-volume curve was not suggestive of upper airway obstruction, the spirometry performed after the surgery showed a significant reduction in the degree of obstruction and greater reversibility after bronchodilator use. There was no evidence of recurrence of the disease or of the symptoms after a two-year follow-up period.

Keywords: Bronchial hyperreactivity; Carcinoma, mucoepidermoid; Trachea; Asthma; Lung diseases, obstructive.

RESUMO

Em casos de asma de início recente em que o controle clínico com tratamento habitual (corticosteroide e broncodilatador) é insatisfatório, é importante considerar outros diagnósticos, tais como insuficiência cardíaca congestiva, refluxo gastroesofágico ou outras formas de obstrução das vias aéreas. Relatamos o caso de uma paciente do sexo feminino com carcinoma mucoepidermoide da traqueia mimetizando um quadro de asma brônquica. A paciente apresentava tosse e sibilância, bem como espirometria anormal com padrão obstrutivo responsivo a broncodilatador. Após um ano, apresentou deterioração clínica e espirométrica. Nenhuma anormalidade foi encontrada no radiograma de tórax. A TC revelou lesão vegetativa, a 1 cm da carina, reduzindo a luz traqueal. A fibrobroncoscopia mostrou imagem semelhante a tumor carcinoide brônquico. O diagnóstico anatomopatológico após a ressecção cirúrgica foi carcinoma mucoepidermoide de baixo grau, sem envolvimento linfonodal. Embora a curva fluxo-volume não fosse sugestiva de obstrução de vias aéreas superiores, a espirometria realizada após a cirurgia mostrou redução significativa do grau de obstrução e maior reversibilidade com broncodilatador. Não houve evidência de recidiva da doença ou retorno dos sintomas após dois anos de seguimento.

Palavras-chave: Hiper-reatividade brônquica; Carcinoma mucoepidermoide; Traqueia; Asma; Pneumopatias obstrutivas.

Introdução

A asma brônquica é uma afecção que usualmente se manifesta na infância. O início tardio é uma situação menos frequente dentro do contexto da história natural dessa doença e, portanto, deve funcionar como um alerta quanto à possibilidade de diagnósticos diferenciais, como insuficiência cardíaca, refluxo gastresofágico ou outras formas de obstrução das vias aéreas.

Relatamos o caso de uma paciente com diagnóstico de asma brônquica que, a despeito de utilizar adequadamente o tratamento prescrito, evoluiu com piora clínica. Após investigação tomográfica que evidenciou um tumor traqueal, foi submetida à ressecção cirúrgica do mesmo, no qual se constatou um carcinoma mucoepidermoide (CME). Esse tumor raro representa 0,1-0,2% das neoplasias pulmonares e estava incluído na classificação de adenoma brônquico; porém, atualmente, a Organização Mundial de Saúde o classifica como uma entidade distinta dos outros carcinomas das vias aéreas.(1) O CME pode ocorrer em todas as faixas etárias(2) e geralmente produz sintomas de irritação das vias aéreas superiores, tais como tosse, hemoptise, atelectasia e pneumonia pós-obstrutiva.(3)

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, de 68 anos, relatava que há quatro anos vinha apresentando tosse, chiado no peito e crises de dispneia, com piora progressiva do quadro. Inicialmente diagnosticada como portadora de asma brônquica, apresentou resposta satisfatória com o uso de broncodilatadores e corticosteroide sistêmico. Negava tabagismo ou antecedente de doenças pulmonares. O radiograma de tórax era normal.
Após um ano de início dos sintomas, realizou-se uma espirometria, a qual revelou defeito obstrutivo moderado responsivo ao broncodilatador (Tabela 1 e Figura 1a). Nos dois anos subsequentes, mesmo mantendo-se o tratamento adequado, houve piora clínica. Realizou-se outra espirometria, a qual revelou agravamento da obstrução, agora não responsiva ao broncodilatador (Tabela 1 e Figura 1b).








Optou-se por investigar a presença de condições associadas que pudessem estar causando a piora do quadro. A TC de tórax mostrou uma lesão vegetativa da traqueia, localizada a 1,0 cm da carina, com estreitamento endoluminal significativo (Figura 2). A fibrobroncoscopia evidenciou uma lesão endobrônquica violácea, com bordas bem definidas e superfície lisa, implantada na parede lateral direita da traqueia e obstruindo 90% da luz. Não foi realizada biópsia.




A paciente foi submetida à toracotomia póstero-lateral direita e ressecção de 2,5 cm de extensão da traqueia, seguida de anastomose término-terminal e esvaziamento linfonodal. À congelação, as margens microscópicas não estavam acometidas.

Evoluiu sem intercorrências pós-operatórias e teve alta no 7º dia de internação.

O estudo anatomopatológico mostrou um CME bem diferenciado, de baixo grau, sem acometimento linfonodal mediastinal.

Não foi realizado tratamento complementar. O seguimento endoscópico e tomográfico semestral não mostrou recidiva após dois anos.

A espirometria realizada no sexto mês pós-operatório mostrou regressão do quadro obstrutivo (Tabela 1 e Figura 1c).

Discussão

O diagnóstico de asma brônquica é eminentemente clínico, e a história natural inclui início na infância, remissão na adolescência e retorno dos sintomas na fase adulta. Entretanto, alguns pacientes podem ter suas primeiras manifestações clínicas após a quinta década de vida. Nesses casos, devem-se considerar diagnósticos diferenciais, como DPOC, insuficiência cardíaca, tromboembolismo pulmonar e refluxo gastroesofágico. Além disso, se o tratamento recomendado (broncodilatadores, corticosteroides inalatórios e profilaxia ambiental) não for eficaz para controlar os sintomas, impõe-se ampliar a investigação.

Sinais e sintomas de obstrução de vias aéreas superiores nem sempre são evidentes. Na obstrução traqueal, a dispneia aos esforços surge somente quando o quadro já está avançado, e a luz traqueal tem menos de 8 mm de diâmetro. Provavelmente, nessa situação, a dispneia deve-se mais ao esforço extra que o paciente tem que fazer para que o ar chegue aos pulmões do que à presença de hipóxia ou hipercapnia. Sibilos no exame físico são frequentes, sendo um sinal comum em asmáticos ou portadores de DPOC. Sibilos audíveis somente em um hemitórax ou que se modificam com a posição do paciente, ou ainda a evidência de estridores ou cornagem são sinais mais sugestivos de obstrução de vias aéreas superiores.

A paciente descrita não apresentava nenhum desses achados clássicos de obstrução de vias aéreas superiores e tinha a história prévia de asma como fator de confusão. No entanto, a progressiva redução da resposta ao tratamento e a modificação do padrão de resposta ao broncodilatador na espirometria induziram a procura de diagnósticos diferenciais.

Embora o radiograma de tórax seja o exame radiológico inicial na avaliação de pacientes com sintomas de obstrução de vias aéreas, raramente ele é conclusivo.(4) Caso haja suspeita de lesões em vias aéreas superiores, pode-se realizar uma TC de tórax e, eventualmente, uma fibrobroncoscopia.(5)

A primeira espirometria mostrou um distúrbio ventilatório obstrutivo moderado responsivo ao broncodilatador (Tabela 1 e Figura 1a). Com o agravamento do quadro, uma segunda espirometria evidenciou distúrbio ventilatório obstrutivo mais acentuado que aquele do exame anterior e
não responsivo ao broncodilatador (Tabela 1 e Figura 1b).

Se o primeiro exame poderia pertencer tanto a um paciente asmático como a um portador de DPOC com algum grau de hiper-reatividade brônquica, o segundo já sugeria tratar-se de indivíduo portador de alguma doença obstrutiva com baixa reversibilidade. Analisando-se retrospectivamente a terceira espirometria, realizada no sexto mês após a cirurgia (Tabela 1 e Figura 1c), pode-se considerar que a alteração funcional detectada traduzia, na verdade, a presença de uma obstrução das vias aéreas superiores intratorácicas, e não uma doença acometendo difusamente as pequenas vias aéreas. Neste exame, os valores estão próximos da normalidade, e o VEF1 corresponde a mais que o dobro do VEF1 do exame anterior (Tabela 1; Figuras 1b e 1c).

Na obstrução de vias aéreas superiores, o acometimento pode ser extratorácico (faringe, laringe e traqueia extratorácica) ou intratorácico (traqueia e brônquios principais). O efeito das lesões anatômicas ou anormalidades funcionais depende da localização, do tipo de obstrução (fixa ou variável) e da extensão da lesão.

Anormalidades funcionais podem passar despercebidas quando a obstrução não é significativa; porém, com a piora da obstrução, alteram-se os fluxos mais dependentes do esforço. Uma obstrução traqueal com luz menor que 8 mm geralmente produz dispneia aos esforços, e se o lúmen estiver menor que 5 mm, pode ocorrer dispneia mesmo em repouso, além de alterações no VEF1.(6,7)

Embora nem sempre haja redução do VEF1 e da CVF, o PFE costuma ser bastante afetado. No entanto, este parâmetro é bastante dependente do esforço, limitando sua valorização.(8)

O aspecto da curva fluxo-volume pode ser bastante sugestivo de obstrução de vias aéreas superiores, especialmente se houver um platô na alça inspiratória, com ou sem platô na alça expiratória. Tal achado sugere obstrução da via aérea central extratorácica ou das vias aéreas superiores. Para que esse dado seja confiável, é fundamental que o exame seja feito em três manobras reprodutíveis, assegurando-se que o paciente tenha chegado próximo do esforço máximo, e que a aparência da curva esteja semelhante em todas as repetições.

Ao contrário, a presença de um platô (repetido em pelo menos três manobras) no FEF e ausência de platô na fase inspiratória forçada sugerem obstrução variável das vias aéreas intratorácicas (superiores ou central). A presença de um platô de amplitude semelhante nas alças inspiratória e expiratória sugere obstrução fixa da via aérea central ou das vias aéreas superiores.(7,8)

Na obstrução de vias aéreas superiores extratorácicas, o fluxo inspiratório máximo apresenta-se frequentemente reduzido. Ao contrário, na obstrução intratorácica, o fluxo inspiratório máximo é pouco afetado porque a pressão que circunda essa região (semelhante à pressão intrapleural) se opõe fortemente à pressão intraluminal gerada pela inspiração, fato que limita o efeito da obstrução dos fluxos.(7,8)

A ausência de achados típicos e clássicos na curva fluxo-volume, como os descritos acima, não afasta a possibilidade de obstrução de vias aéreas superiores. No caso aqui relatado pode-se observar, pelas curvas fluxo-volume apresentadas (Figura 1), que os achados típicos de obstrução intratorácica não estavam presentes.

O CME traqueobrônquico é similar aos tumores mucoepidermoides das glândulas salivares, podendo ser visualizado pela fibrobroncoscopia quando sua localização for central.(9) Uma lesão nessa situação pode produzir sintomas de irritação das vias aéreas superiores, e, desse modo, mimetizar um quadro de asma brônquica.(3,10) A TC de tórax é útil tanto no caso de o tumor não ser visível ao exame endoscópico, como também para o estadiamento tumoral intratorácico.(11)

O curso clínico do CME correlaciona-se com o grau histológico. As lesões tumorais de alto grau indicam sobrevida em cinco anos de 31%. Os tumores de baixo grau têm crescimento localizado, raramente apresentam acometimento linfonodal e são facilmente ressecáveis. O envolvimento linfonodal tem sido relatado como indicador de pior prognóstico.(1) A ressecção completa é o tratamento de escolha no CME, em geral com sobrevida em cinco anos de até 80%.(1) O papel da radioterapia e da quimioterapia pré- ou pós-operatória ainda não está bem estabelecido.(3)

Em suma, quadros atípicos de asma brônquica e com resposta inadequada ao tratamento devem ser bem investigados, pois podem ocultar doenças outras, por vezes raras. A espirometria, em particular a curva fluxo-volume, é uma ferramenta útil para os diagnósticos diferenciais, devendo ser bem compreendida e atentamente observada. No entanto, muitas vezes somente a ampliação da investigação diagnóstica permite chegar ao diagnóstico definitivo.

Referências

1. Vadasz P, Egervary M. Mucoepidermoid bronchial tumors: a review of 34 operated cases. Eur J Cardiothorac Surg. 2000;17(5):566-9.

2. Heitmiller RF, Mathisen DJ, Ferry JA, Mark EJ, Grillo HC. Mucoepidermoid lung tumors.Ann Thorac Surg. 1989;47(3):394-9.

3. Noda S, Sundaresan S, Mendeloff EN. Tracheal mucoepidermoid carcinoma in a 7-year-old child. Ann Thorac Surg. 1998;66(3):928-9.

4. Baldi BG, Fernandes CJ, Salge JM, Takagaki TY. Tracheal polyp. J Bras Pneumol. 2007;33(5):616-20.

5. Chen F, Tatsumi A, Miyamoto Y. Successful treatment of mucoepidermoid carcinoma of the carina. Ann Thorac Surg. 2001;71(1):366-8.

6. Ernst A, Feller-Kopman D, Becker HD, Mehta AC. Central airway obstruction. Am J Respir Crit Care Med. 2004;169(12):1278-97.

7. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Diretrizes para Testes de Função Pulmonar. J Pneumol. 2002;28(Suppl 2):S2-S238.

8. Pellegrino R, Viegi G, Brusasco V, Crapo RO, Burgos F, Casaburi R, et al. Interpretative strategies for lung function tests. Eur Respir J. 2005;26(5):948-68.

9. Devbhandari M, Stamenkovic S, Walker W, Cameron E. Unusual presentation of mucoepidermoid carcinoma with recurrent pulmonary embolism. Eur J Cardiothorac Surg. 2002;22(3):482-4.

10. Mehra PK, Woessner KM. Dyspnea, wheezing, and airways obstruction: is it asthma? Allergy Asthma Proc. 2005;26(4):319-22.

11. Kim TS, Lee KS, Han J, Im JG, Seo JB, Kim JS, et al. Mucoepidermoid carcinoma of the tracheobronchial tree: radiographic and CT findings in 12 patients. Radiology. 1999;212(3):643-8.


* Trabalho realizado na Disciplina de Cirurgia Torácica da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp - Campinas (SP) Brasil.
Endereço para correspondência: Ricardo Kalaf Mussi. Rua Copaíba, 810, Jardim Miriam, CEP 13098-347, Campinas, SP, Brasil.
Tel 55 19 3521-9441. E-mail: rkalaf@fcm.unicamp.br
Suporte financeiro: Nenhum.
Recebido para publicação em 19/10/2007. Aprovado, após revisão, em 26/6/2008.



Sobre os autores

Ricardo Kalaf Mussi
Médico Assistente da Disciplina de Cirurgia Torácica. Universidade Estadual de Campinas - Unicamp - Campinas (SP) Brasil.
Ivan Felizardo Contrera Toro
Coordenador da Disciplina de Cirurgia Torácica. Universidade Estadual de Campinas - Unicamp - Campinas (SP) Brasil.
Mônica Corso Pereira
Médica Assistente da Disciplina de Pneumologia. Universidade Estadual de Campinas - Unicamp - Campinas (SP) Brasil

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