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Relato de Caso

Síndrome da angústia respiratória do adulto por embolia gordurosa no período pós-operatório de lipoaspiração e lipoenxertia

Adult respiratory distress syndrome due to fat embolism in the postoperative period following liposuction and fat grafting

André Nathan Costa, Daniel Melo Mendes, Carlos Toufen, Gino Arrunátegui, Pedro Caruso, Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho

ABSTRACT

Fat embolism is defined as mechanical blockage of the vascular lumen by circulating fat globules. Although it primarily affects the lungs, it can also affect the central nervous system, retina, and skin. Fat embolism syndrome is a dysfunction of these organs caused by fat emboli. The most common causes of fat embolism and fat embolism syndrome are long bone fractures, although there are reports of its occurrence after cosmetic procedures. The diagnosis is made clinically, and treatment is still restricted to support measures. We report the case of a female patient who developed adult respiratory distress syndrome due to fat embolism in the postoperative period following liposuction and fat grafting. In this case, the patient responded well to alveolar recruitment maneuvers and protective mechanical ventilation. In addition, we present an epidemiological and pathophysiological analysis of fat embolism syndrome after cosmetic procedures.

Keywords: Respiratory distress syndrome, adult; Embolism, fat; Lipectomy.

RESUMO

A embolia gordurosa é definida como a ocorrência de bloqueio mecânico da luz vascular por gotículas circulantes de gordura. Acomete principalmente o pulmão, podendo afetar também o sistema nervoso central, a retina e a pele. A síndrome da embolia gordurosa é uma disfunção desses órgãos causada pelos êmbolos gordurosos. As causas mais comuns de embolia gordurosa e síndrome da embolia gordurosa são as fraturas de ossos longos, mas há relatos de sua ocorrência após procedimentos estéticos. O diagnóstico é clínico, e o tratamento ainda se restringe a medidas de suporte. Apresentamos o caso de uma paciente que evoluiu com síndrome da angústia respiratória do adulto por embolia gordurosa no período pós-operatório de lipoaspiração e lipoenxertia e respondeu bem às manobras de recrutamento alveolar e à ventilação mecânica protetora.Apresentamos também uma análise epidemiológica e fisiopatológica da síndrome da embolia gordurosa após procedimentos estéticos.

Palavras-chave: Síndrome do desconforto respiratório do adulto; Embolia gordurosa; Lipectomia.

Introdução

A síndrome da embolia gordurosa (SEG) é uma complicação grave de fraturas de ossos longos, com mortalidade de até 36%.(1) Mais raramente, há relatos de SEG após procedimentos estéticos como a lipoaspiração e a lipoenxertia.(2-4) No pulmão, a SEG fulminante se manifesta como insuficiência respiratória grave e síndrome da angústia respiratória do adulto (SARA), porém os êmbolos podem atingir a circulação arterial e afetar outros locais, como o sistema nervoso central, a retina e a pele.(2,3)

Apresentamos o caso de uma paciente que evoluiu com SARA por embolia gordurosa no período pós-operatório de lipoaspiração e lipoenxertia e respondeu bem às manobras de recrutamento alveolar e à ventilação mecânica protetora.

Relato de caso

Paciente previamente hígida de 53 anos, branca, natural e procedente de São Paulo, do lar, não tabagista, foi submetida a mastopexia bilateral, lipoaspiração abdominal e lipoenxertia em glúteos. Evoluiu, no 3º dia pós-operatório, com quadro de dispnéia progressiva e tosse seca, sem outros sintomas. Foi reinternada e, ao exame físico, apresentou-se descorada, taquicárdica, taquipnéica e hipoxêmica em ar ambiente, sem alterações à ausculta pulmonar. A radiografia de tórax mostrou discreto infiltrado intersticial bilateral, e a tomografia de tórax de alta resolução com protocolo para tromboembolismo pulmonar realizada 36 h depois revelou a presença de infiltrado em vidro fosco bilateral difuso e derrame pleural bilateral pequeno sem a presença de trombos nos ramos da artéria pulmonar (Figuras 1 e 2). O hemograma colhido indicou anemia, com hemoglobina de 7,5 g/dL e hematócrito de 26%, sem outros achados. Evoluiu com insuficiência respiratória hipoxêmica no 2º dia de internação hospitalar, com gasometria arterial sem acidose metabólica ou respiratória. Necessitou de intubação orotraqueal e ventilação mecânica, com relação pressão parcial arterial de oxigênio/fração inspirada de oxigênio de 32 e lung injury score (escore de lesão pulmonar) de 2,6.(5)
Iniciou-se o uso de drogas inotrópicas em razão da presença de hipotensão e oligúria, com evolução para insuficiência renal dialítica no 3º dia de internação. O ecocardiograma realizado à beira do leito afastou a hipótese de disfunção ventricular esquerda. O exame de fundo de olho mostrou sinais de embolia retiniana bilateral. O lavado broncoalveolar foi negativo para hemorragia alveolar, com pesquisas e culturas virais e bacterianas negativas e pesquisa negativa para macrófagos com inclusões gordurosas. Outros focos infecciosos, uso de drogas e inalação de gases foram descartados por culturas e história, embora tenha sido iniciada antibioticoterapia empírica com cobertura para Gram-positivos, Gram-negativos e vírus respiratórios, a qual foi mantida até o resultado final das culturas e pesquisas.




Visto que as causas mais comuns de SARA, como infecção pulmonar, contusão pulmonar, aspiração de conteúdo gástrico e quase afogamento, assim como desencadeantes indiretos, como síndrome séptica e/ou choque séptico, múltiplas transfusões sanguíneas, politraumatismo, pancreatite e embolia de líquido amniótico, foram excluídas, foi feito o diagnóstico de SARA secundária a SEG. A paciente foi tratada segundo os preceitos da estratégia protetora, utilizando-se o modo pressão controlada com volume corrente de 6 mL/kg e recrutamento alveolar com titulação da pressão positiva ao final da expiração para a melhor complacência do sistema respiratório. Apresentou melhora progressiva da relação pressão parcial arterial de oxigênio/fração inspirada de oxigênio e foi extubada no 8º dia de permanência na unidade de terapia intensiva. Recebeu alta hospitalar após um mês, sem queixas, com função renal normal e com saturação periférica de oxigênio de 98% em ar ambiente.

Discussão

Desde sua introdução na década de 70, a lipoaspiração ganhou popularidade, a ponto de se tornar o procedimento estético cirúrgico mais comum atualmente.(4) Entretanto, relatos de conseqüências adversas são cada vez mais comuns, entre elas a embolia gordurosa e a SEG .(2-4,6)

A embolia gordurosa é definida como a ocorrência de bloqueio mecânico da luz vascular por gotículas circulantes de gordura. Acomete principalmente o pulmão, podendo afetar também o sistema nervoso central, a retina e a pele.(1,7,8) A SEG é uma disfunção desses órgãos causada pelos êmbolos gordurosos e é uma complicação rara, porém potencialmente fatal, de procedimentos estéticos, como a lipoaspiração e a lipoenxertia.(2-4) Apresenta-se tipicamente como a tríade insuficiência respiratória progressiva, alteração do nível de consciência e petéquias 12 a 72 h após o procedimento cirúrgico.(3,4,8) As alterações neurológicas variam desde confusão mental a alterações do nível de consciência, podendo ainda ocorrer convulsões generalizadas e déficits focais, estes últimos transitórios e reversíveis na maioria dos casos.(1,8)

Durante a lipoaspiração e a lipoenxertia, há ruptura de vênulas e dano aos adipócitos, originando microfragmentos lipídicos que atingem a circulação venosa e, conseqüentemente, lesam os pulmões.(1,2,4) Os êmbolos gordurosos podem também atingir a circulação sistêmica, acometendo outros órgãos, em razão da patência do forame oval no septo ­interatrial, da existência de microfístulas arteriovenosas pulmonares e da deformação das microgotículas de gordura que atravessam os capilares pulmonares.(1,7,9) Um estudo realizado em modelo animal de lipoaspiração encontrou micropartículas de gordura circulantes e depósitos lipídicos pulmonares em 100% dos animais pesquisados.(4)

Existem duas etapas que explicariam a ­etiopatogenia da SEG: a fase mecânica e a fase bioquímica. Ambas são descritas após traumas de grande porte, com fratura de ossos longos, e após procedimentos ortopédicos intramedulares e não são excludentes.(1,7,8)

Na primeira, os êmbolos gordurosos, após passarem para a corrente sanguínea, atingiriam os capilares pulmonares causando obstrução mecânica, podendo também migrar até órgãos distantes, como o sistema nervoso central. Essa teoria é corroborada por estudos com ecotransesofágico intra-operatório em cirurgias ortopédicas nos quais é visto material hipoecogênico intracardíaco durante a introdução de próteses intramedulares ósseas.(9) Ela não explica, porém, a ausência de sintomas nas primeiras 12 a 24 h.(1,7,8)

Já na fase bioquímica, as gotículas de gordura, após atingirem os capilares pulmonares, seriam hidrolizadas pela lipase produzida pelos pneumócitos, dando origem a ácidos graxos livres que são tóxicos às células alveolares e endoteliais. Iniciada a lesão local, são liberadas aminas vasoativas e prostaglandinas, além de haver recrutamento neutrofílico, levando a hemorragia e a edema intersticial e alveolar. Histopatologicamente, há edema, transudato e posterior exsudato alveolar, morte de pneumócitos tipo II e formação de membrana hialina.(1-3,7,8) Essa teoria poderia explicar o fato de o início dos sintomas ocorrer após um intervalo de tempo da lesão cirúrgica, pois haveria necessidade de aglutinação e degradação dos êmbolos gordurosos e de desencadeamento do processo inflamatório local.(1-3,7,8)

Clinicamente, a SEG pós-traumática é classificada como "aguda fulminante", "subaguda" ou "subclínica", não havendo padronização para SEG após procedimentos estéticos.(1) A forma aguda fulminante ocorre poucas horas após o trauma, apresentando-se como insuficiência respiratória, coma e falência aguda de múltiplos órgãos. A forma subaguda é a clássica tríade já descrita. A forma subclínica tem sintomas frustros de dispnéia discreta e taquicardia, bem como sonolência ou irritabilidade leves.(1)

No relato apresentado, a paciente evoluiu com insuficiência respiratória, taquicardia, sinais de hemorragia retiniana, insuficiência renal e queda do hematócrito na ausência de sangramento, permitindo o diagnóstico clínico pelos critérios de Gurd e Wilson,(10) que propõem a necessidade de um critério maior e pelo menos quatro critérios menores para o diagnóstico de SEG (Tabela 1).



Radiologicamente, a SEG se apresenta tipicamente como infiltrado interstício-alveolar bilateral simétrico mais proeminente na região perihilar e na região pulmonar inferior.(10-12) Na tomografia de tórax, os achados incluem áreas de consolidação, áreas de opacidade em vidro fosco (focais ou difusas) e micronódulos menores que 10 mm, achados esses compatíveis com hemorragia intersticial e alveolar, edema e pneumonite.(1,11,12) Um estudo com 9 pacientes com SEG subaguda avaliados por meio de tomografia computadorizada de tórax mostrou opacidades em vidro fosco em 7 pacientes e opacidades nodulares em 2 pacientes. Em 5 deles houve associação a espessamento dos septos interlobulares.(12) No caso apresentado, além de infiltrado em vidro fosco e espessamento septal com predomínio nos terços superiores, foi encontrado derrame pleural bilateral (achados atípicos). Esse achado pode ser secundário à ressuscitação volêmica vigorosa, visto que o tomografia foi realizada 36 h após o início do quadro.

Ainda não há tratamento específico para a SEG, devendo-se tomar essencialmente medidas de suporte, como oxigenoterapia ou ventilação mecânica, nos casos mais graves.(1,2,8) Em nosso caso, a paciente foi tratada segundo os preceitos da estratégia protetora, utilizando-se o modo pressão controlada com volume corrente de 6 mL/kg e recrutamento alveolar com titulação da pressão positiva ao final da expiração para a melhor complacência do sistema respiratório, além de cuidados intensivos de diálise e estabilização hemodinâmica.

Apesar da boa evolução, o caso apresentado representa um alerta a médicos e pacientes, já que constitui uma grave complicação de um procedimento estético, muitas vezes realizado ambulatorialmente.

Referências


1. Filomeno LT, Carelli CR, Silva NC, Filho TE, Amatuzzi MM Embolia gordurosa: uma revisão para a prática ortopédica atual. Acta Ortop Bras. 2005; 13(4):196-208.

2. Rothmann C, Ruschel N, Streiff R, Pitti R, Bollaert PE. Embolie graisseuse pulmonaire après liposuccion Ann Franç dAnesth Réanim. 2006;25 (2):189-92.

3. Fourme T, Vieillard-Baron A, Loubières Y, Julié C, Page B, Jardin F. Early fat embolism after liposuction. Anesthesiology. 1998;89(3):782-4.

4. El-Ali KM, Gourlay T. Assessment of the risk of systemic fat mobilization and fat embolism as a consequence of liposuction: ex vivo study. Plast Reconstr Surg. 2006;117(7):2269-76.

5. Murray JF, Matthay MA, Luce JM, Flick MR. An expanded definition of the adult respiratory distress syndrome. Am Rev Respir Dis. 1988;138(3):485-489.

6. Rao RB, Ely SF, Hoffman RS. Deaths related to liposuction. N Engl J Med. 1999;340(19):1471-5.

7. Fabian TC. Unravelling the fat embolism syndrome. N Engl J Med. 1993;329(13):961-3.

8. Bulger EM, Smith DG, Maier RV, Jurkovich GJ. Fat embolism syndrome. A 10-year review. Arch Surg. 1997;132(4):435-9.

9. Pell AC, Hughes D, Keating J, Christie J, Busuttil A, Sutherland GR. Brief report: fulminating fat embolism syndrome caused by paradoxical embolism through a patent foramen ovale. N Engl J Med. 1993;329(13):926-9.

10. Gurd AR, Wilson RI. The fat embolism syndrome. J Bone Joint Surg Br. 1974;56B(3):408-16.

11. Malagari K, Economopoulos N, Stoupis C, Daniil Z, Papiris S, Müller NL, et al. High-resolution CT findings in mild pulmonary fat embolism. Chest. 2003;123(4):1196-201.

12. Prologo JD, Dogra V, Farag R. CT diagnosis of fat embolism. Am J Emerg Med. 2004;22(7):605-6.

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Trabalho realizado na Disciplina de Pneumologia, UTI Respiratória do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HC-FMUSP - São Paulo (SP) Brasil.
1. Médico Colaborador da Disciplina de Pneumologia. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HC-FMUSP - São Paulo
(SP) Brasil.
2. Médico Preceptor da Disciplina de Pneumologia. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HC-FMUSP - São Paulo (SP) Brasil.
3. Médico Colaborador da UTI Respiratória. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HC-FMUSP - São Paulo (SP) Brasil.
4. Médico da Disciplina de Cirurgia Plástica. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HC-FMUSP - São Paulo (SP) Brasil.
5. Médico da Disciplina de Pneumologia. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HC-FMUSP - São Paulo (SP) Brasil.
6. Chefe da UTI Respiratória. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HC-FMUSP - São Paulo (SP) Brasil.
Endereço para correspondência: André Nathan Costa. Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255, 6º andar, Cerqueira César, CEP 05403-000, São Paulo, SP, Brasil.
Tel 55 11 3069-7202. E-mail: nathan.andre@gmail.com
Recebido para publicação em 26/9/2007. Aprovado, após revisão, em 22/10/2007.

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