ABSTRACT
Objective: To estimate the prevalence of obstructive sleep apnea syndrome (OSAS) in children and adolescents with sickle cell anemia (SCA); to investigate the possible correlation between mean annual hemoglobin level and total sleep time with SpO2 < 90%, as well as between mean annual hemoglobin level and total sleep time with SpO2 < 80%; and to investigate the possible correlation between apnea-hypopnea index (AHI) and painful crisis. Methods: The study involved 85 patients with SCA. The patients completed a questionnaire, were submitted to polysomnography and underwent clinical evaluation (by a pediatrician and an otolaryngologist). An AHI > 1 was considered indicative of a diagnosis of OSAS. Results: The prevalence of OSAS was 10.6%. We found a negative correlation between mean annual hemoglobin level and total sleep time with SpO2 < 90% (r = −0.343; p = 0.002), as well as between mean annual hemoglobin level and total sleep time with SpO2 < 80% (r = −0.270; p = 0.016). There was no association between AHI and painful crisis. Conclusions: The prevalence of OSAS in this population was high (10.6%). Therefore, it is important to identify signs of OSAS as soon as possible and to determine the mean annual hemoglobin level because of the inverse correlation between that level and the total sleep time with SpO2 < 90% or < 80%.
Keywords:
Prevalence; Sleep apnea, obstructive; Anemia, sickle cell; Polysomnography; Sleep apnea syndromes.
RESUMO
Objetivo: Estimar a prevalência da síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) em crianças e adolescentes com anemia falciforme (AF) e investigar a possível correlação entre hemoglobina anual média e tempo total de sono com SpO2 < 90% e tempo total de sono com SpO2 < 80%, assim como investigar a possível correlação entre o índice de apneia-hipopneia (IAH) e episódios de crise álgica. Métodos: Participaram 85 pacientes com AF, que responderam a um questionário, foram avaliados por um pediatra e um otorrinolaringologista, e submetidos a estudo polissonográfico. O diagnóstico de SAOS foi definido como IAH > 1. Resultados: A prevalência da SAOS foi 10,6%. Observou-se uma correlação negativa entre hemoglobina anual média e tempo total de sono com SpO2 < 90% (r = −0,343; p = 0,002) e tempo total de sono com SpO2 < 80% (r = −0,270; p = 0,016). Não foi observada associação entre IAH e episódios de crise álgica. Conclusões: A prevalência da SAOS nesta população foi alta (10,6%). Portanto, é importante identificar precocemente os sinais de SAOS e avaliar hemoglobina anual média, devido à correlação inversa entre essa e o tempo total de sono com SpO2 < 90% ou < 80%.
Palavras-chave:
Prevalência; Apneia do sono tipo obstrutiva; Anemia falciforme; Polissonografia; Síndromes da apneia do sono.
IntroduçãoRaros são os trabalhos que descrevem a sobreposição da síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) na anemia falciforme (AF), ou seja, a exata prevalência da SAOS, sua etiologia e sua história natural em portadores de AF permanece pouco definida.(1) Sabe-se que a SAOS se associa a hipoxemia, hipercapnia e acidose, podendo induzir a polimerização da hemoglobina S (Hb S), a potencialização do processo de falcização e o aparecimento das crises vaso-oclusivas.(2) Além disso, a dessaturação noturna ocorre em aproximadamente 80% das crianças com AF, podendo ser resultado da SAOS.(3)
Poucos estudos têm sido desenvolvidos na tentativa de estimar a prevalência da SAOS em crianças e adolescentes portadores de AF. Além disso, esses poucos trabalhos apresentam limitações metodológicas quanto à população estudada, ao número de pacientes da amostra e ao diagnóstico da SAOS, o qual é realizado através de estudo polissonográfico. Os trabalhos descritos na literatura não avaliaram o problema da SAOS na população geral, mas em condições específicas. Pode-se observar que um grupo de autores,(4) em 1992, não realizou a polissonografia na população estudada, sendo possível determinar apenas a prevalência dos distúrbios respiratórios do sono (DRS) em crianças com AF, pois foi aplicado um questionário e realizada a avaliação clínica em uma amostra que incluía crianças portadoras de AF ou de talassemia. Outros autores,(1) em 2008, realizaram estudos polissonográficos, mas sua população constava de crianças portadoras da AF, bem como de portadoras de talassemia; além disso, essas crianças deveriam apresentar SpO2 diurna ≤ 94%. Outro grupo de autores,(3) também em 2008, aplicou um questionário em 100 crianças portadoras de AF, selecionando as que apresentavam os quadros mais graves, ou seja, com DRS, para que realizassem a polissonografia.
Diante do que foi exposto, pode-se observar que a prevalência da SAOS em crianças e adolescentes com AF é desconhecida. Logo, o objetivo primário deste estudo foi estimar a prevalência da SAOS em crianças e adolescentes com AF; os objetivos secundários foram investigar uma possível correlação entre hemoglobina anual média com tempo total de sono (TTS) com SpO2 < 90% e com TTS com SpO2 < 80%, observados durante o registro polissonográfico, assim como avaliar uma possível correlação entre o índice de apneia-hipopneia (IAH) e episódios de crises álgicas.
MétodosTrata-se de um estudo do tipo corte transversal, observacional, com a seleção de 85 pacientes com AF inscritos em um centro de referência de hematologia e hemoterapia, por amostragem não-probabilística do tipo sequencial, entre maio de 2007 e maio de 2008. Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: ter diagnóstico confirmado de AF através da análise quantitativa de hemoglobina por eletroforese de hemoglobina ou HPLC, realizada no equipamento Variant II (Bio-Rad Laboratories, Bossier City, LA, EUA); ter idade entre 2 e 19 anos; estar clinicamente estável; responder ao questionário; permitir avaliação pediátrica e otorrinolaringológica; e realizar a polissonografia noturna. Foram adotados os seguintes critérios de exclusão: apresentar outras síndromes genéticas, doenças debilitantes, hepatite aguda, tratamento prévio para SAOS ou trauma craniofacial recente; usar hipnóticos; ter realizado terapia com corticoides; ser gestante; e apresentar infecção durante a avaliação. Para o cálculo do tamanho amostral, foi utilizado o programa PEPI-Sample (Sagebush Press, Salt Lake City, UT, EUA) e foram adotados os seguintes parâmetros: nível de confiança de 95%, e prevalência da SAOS em crianças e adolescentes de 5% (4,9% como diferença aceitável da prevalência). A população da qual foi retirada a amostra foi de aproximadamente 1.000 crianças e adolescentes portadores de AF, cadastrados em uma unidade de referência em hematologia e hemoterapia. Dessa forma, para responder aos objetivos, o tamanho amostral calculado foi de 71 pacientes. Considerando a possibilidade de 10% de perdas, a amostra calculada foi de 78 pacientes.
A idade foi medida em anos completos de acordo com a data de nascimento. A variável raça foi autodefinida, de acordo com a nomenclatura oficial dos censos demográficos, adotando como referência a cor da pele (branca, parda ou negra). Também foi realizada a coleta nos prontuários dos dados de hemoglobina média dos últimos 12 meses (g/dL).
Os pacientes foram pesados em uma balança mecânica (modelo 131; Filizola, São Paulo, Brasil). O comprimento foi medido com um antropômetro ou estadiômetro. Essas medidas foram comparadas aos gráficos de crescimento do National Center for Health Statistics e convertidas para os escores Z de índice de massa corpórea (IMC) e estatura/idade, baseados em idade e gênero, utilizando o programa Epi Info versão 3.4.1.
O exame da cavidade oral foi realizado por um único otorrinolaringologista. As tonsilas faríngeas e palatinas foram classificadas segundo os critérios de Brodsky,(5) sendo consideradas obstrutivas quando apresentavam grau 3 ou 4. As tonsilas faríngeas foram observadas através de nasofaringoscopia com fibra ótica flexível (Machida, Tóquio, Japão) acoplada a uma fonte de luz após o uso de três gotas de vasoconstritor tópico nasal em cada narina. Essas tonsilas foram classificadas entre 0-100%, de acordo com a ocupação do cavum por tecido linfoide. O tamanho da tonsila faríngea foi estimado com base na porcentagem da área posterior da coana que estava ocupada pelo tecido adenoidiano; foi considerada obstrutiva quando mais de 70% dessa área estava ocupada. Foi considerado como portador de hipertrofia adenotonsilar (HAT) obstrutiva quando o paciente apresentava tonsila palatina de grau 3 ou 4, ou tonsila faríngea maior que 70%.
Os pacientes foram submetidos ao estudo polissonográfico, acompanhados pelo responsável, durante pelo menos 10 h, em ambiente silencioso, com temperatura e iluminação adequadas para o exame. Esse foi conduzido em sono espontâneo, sem nenhuma sedação ou privação do mesmo, evitando-se alimentos estimulantes (café, chocolate, refrigerante e chá preto). A polissonografia foi realizada em ambiente hospitalar, através de equipamento computadorizado Sonolab 620 (Medtron, São Paulo, Brasil), sendo os laudos emitidos pelo mesmo observador.
Através da polissonografia foram registrados: eletroencefalograma (C4-A1, C3-A2, O2-A1 e O1-A2), eletro-oculograma, eletromiografia de nervos tibiais anteriores e de mento e eletrocardiograma. Os movimentos respiratórios foram observados através de faixa torácica e abdominal e a SpO2 através de oxímetro de pulso. Também foi utilizada uma cânula oronasal e termistor para medir o fluxo oronasal, além de um microfone colocado na região do pescoço para registrar o ronco.
Utilizamos os critérios de Rechtschaffen & Kales para o estadiamento do sono: a eficiência do sono foi calculada como TTS dividido pelo tempo durante o qual o paciente permaneceu na cama. A latência do sono foi definida como o intervalo entre o desligar das luzes e o primeiro minuto no estagio 1 do sono. A latência para o sono rapid eye moviment (REM) foi definida como o intervalo entre o início do sono e o primeiro período do sono REM. Microdespertar foi definido como a mudança abrupta na frequência do eletroencefalograma com duração mínima de 3 s, precedido de no mínino 10 s de sono. O índice total de microdespertares correspondeu ao número de microdespertares dividido pelo número total de horas de sono.
Foram adotadas as seguintes definições:
Apneia obstrutiva-interrupção do fluxo aéreo, com duração ≥ 2 ciclos respiratórios, a despeito da persistência do esforço torácico e/ou abdominal
Índice de apneia obstrutiva do sono-número de apneias obstrutivas/h de sono
Hipopneia-redução ≥ 50% da amplitude do fluxo associado a um microdespertar ou redução > 3% da SpO2 basal
IAH-número de apneias obstrutivas e hipopneias obstrutivas durante o sono
Índice de dessaturação de oxigênio-todas as dessaturações de oxigênio > 3% a partir da SpO2 basal/h de sono
Foram considerados apneicos os pacientes com IAH > 1 evento/h de sono.
Neste estudo, foi adotado o IAH para o diagnóstico e a classificação da SAOS devido aos seguintes motivos: primeiro, é relativamente incomum ocorrer obstrução completa das vias aéreas superiores (VAS) em crianças; segundo, foi relatado em um estudo que crianças portadoras de SAOS diagnosticadas através do IAH, cuja hipopneia não esteve associada a dessaturações, apresentaram escores cognitivos baixos(6); terceiro, nesse mesmo estudo, as crianças que tiveram o IAH com hipopneias associadas a dessaturações apresentaram um quadro clínico de hipertensão arterial.(6)
O projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisas da instituição (Protocolo 197; Parecer 98/2006). Os responsáveis pelos pacientes, ao concordarem em participar do estudo, assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.
Para a tabulação e a análise dos dados, foi utilizado o programa Statistical Package for the Social Sciences, versão 12.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA). As variáveis quantitativas foram expressas em média ± dp ou mediana (Md) e amplitude interquartil, sendo comparadas através do teste de Mann-Whitney. As variáveis qualitativas foram expressas através de frequências simples e relativas. Para testar a correlação entre as variáveis, foi utilizado o teste de Spearman. Foram considerados estatisticamente significantes valores de p < 0,05.
ResultadosForam avaliados 85 pacientes, sendo 58,8% do gênero masculino. Quanto à raça, 71,8% se autodefiniram como pardos, 20% como negros e 8,2% como brancos. Na Tabela 1 está demonstrado o perfil clínico das crianças e adolescentes portadores de AF.
A prevalência da SAOS na amostra foi de 10,6%, e a do ronco foi de 44,7%. A distribuição dos dados polissonográficos em pacientes apneicos e não-apneicos está representada nas Tabelas 2 e 3. Não foi observada associação entre SAOS e as variáveis raça, gênero, idade, escore Z para IMC e escore Z estatura/idade.
Através do gráfico tipo box plot (Figura 1), observa-se que o grupo de pacientes com apneia obstrutiva do sono apresentou IAH significativamente maior que o grupo de pacientes sem apneia obstrutiva do sono (p < 0,001). O número de microdespertares não apresentou significância estatística (p = 0,145) ao compararmos o grupo de pacientes apneicos com o grupo de não-apneicos. Crianças e adolescentes portadores da apneia do sono apresentaram maior percentual do TTS com SpO2 < 80% do que o grupo de pacientes não-apneicos, e isso foi estatisticamente significante (p = 0,021), conforme ilustra a Figura 2.
A dessaturação noturna foi observada em 69 pacientes (81,2%); entretanto, não foi observada associação entre esse parâmetro e SAOS, eventos obstrutivos e HAT obstrutiva. Dos pacientes estudados, 66 (77,6%) apresentaram SpO2 basal ≤ 94%. Dentre esses, 6 (9,1%) apresentaram IAH ≥ 1 evento/h de sono.
A HAT obstrutiva foi observada em 55,3% dos pacientes (resultado previamente publicado).(7) Pacientes com HAT obstrutiva apresentaram mais episódios de eventos obstrutivos (Md: 1 vs. 0; p = 0,010), bem como maior duração dos eventos obstrutivos (Md: 8,1 vs. 0; p = 0,015).
Entretanto, não houve associações com o número de dessaturações, IAH ou episódios de crises álgicas nos últimos 12 meses.
As crises álgicas nos últimos 12 meses ocorreram em 47 pacientes (55,3%). As correlações entre os dados polissonográficos, o tamanho das tonsilas faríngeas e as características da AF foram as seguintes: eficiência do sono vs. IAH = −0,214 (p = 0,049); tamanho das tonsilas faríngeas vs. IAH = 0,256 (p = 0,018); tamanho das tonsilas faríngeas vs. dessaturação = 0,064 (p = 0,571); IAH vs. episódios de crises álgicas = −0,067 (p = 0,545); dessaturação vs. episódios de crises álgicas nos últimos 12 meses = −0,150 (p = 0,181); episódios de crises álgicas nos últimos 12 meses vs. TTS com SpO2 < 80% = 0,062 (p = 0,589).
DiscussãoA prevalência da SAOS em crianças e adolescentes com AF, encontrada no presente estudo, foi de 10,6%. Esse resultado reflete a prevalência de uma população geral de crianças e adolescentes portadores de AF de um centro de referência, opondo-se ao estudo de Kaleyias et al.(3) que, ao aplicarem um questionário em 100 crianças, selecionaram apenas as 19 que apresentavam quadros mais graves com suspeita de DRS para realizarem a polissonografia; dessa forma, constataram que 53% dessas eram portadoras de SAOS. Por outro lado, em outro estudo,(1) a população não era composta exclusivamente por portadores de AF, pois também constava de portadores de talassemia; além disso, a população deveria apresentar SpO2 diurna ≤ 94% e realizar estudo polissonográfico, sendo, então, constatado que dos 20 pacientes estudados, 35% apresentaram SAOS. Logo, este é o primeiro estudo na literatura que apresenta a prevalência da SAOS em crianças e adolescentes portadores de AF exclusivamente. Este estudo torna-se relevante, pois pouco é conhecido sobre as consequências da sobreposição do quadro clínico da SAOS em portadores de AF, mas sabe-se que quando a SAOS não é tratada adequadamente, sérias complicações podem ocorrer, dentre elas, o atraso na curva de crescimento.(8) Segundo um estudo,(9) o atraso da curva de crescimento das crianças portadoras de SAOS está relacionado com o aumento do trabalho respiratório durante o sono, gerando aumento do consumo calórico; além disso, os eventos obstrutivos podem implicar na diminuição da liberação do hormônio de crescimento.(10) De acordo com uma revisão,(11) os portadores de AF apresentam uma redução da concentração sérica do fator de crescimento e uma resposta diminuída à estimulação do hormônio de crescimento, provavelmente secundária a injúria hípóxico-isquêmica no eixo hipotalâmico-pituitário após um ou mais episódios de crise vaso-oclusiva, contribuindo para tornar mais lento o crescimento.
No presente estudo, os portadores de AF apresentaram redução do TTS. Resultado semelhante foi observado por outros autores,(12) ao estudarem 50 pacientes com idade média de 13,9 ± 2,5 anos; os autores associaram o resultado ao "efeito da primeira noite" no laboratório do sono, que pode diferir das noites que são dormidas em casa e é caracterizada pela diminuição do TTS. No presente estudo, foi observado que a arquitetura do sono mostrou-se alterada, devido aos estágios 3 e 4 que se encontravam acima do valor esperado, bem como o percentual do sono REM, mas também foi observado um aumento do número de despertares breves. Além disso, tanto a latência para o sono quanto a latência para o sono REM encontravam-se aumentadas. Foi observado que a eficiência do sono encontrava-se reduzida e correlacionava-se com o IAH (p = 0,049). É importante atentar ao fato de que os pacientes apneicos apresentaram valores menores para a eficiência do sono quando comparados com os não-apneicos (p = 0,047). Esse resultado coincide com o observado por outros autores,(12) que caracterizaram a qualidade do sono desses pacientes como fragmentado, uma vez que o número de microdespertares, movimentos durante o sono e mudanças de estágio encontravam-se aumentados para a idade. Esses mesmos autores também constataram um comprometimento do sono de ondas lentas, o qual se apresentava diminuído e com latência aumentada.
A polissonografia permite correlacionar SpO2, padrão respiratório e despertares durante o sono.(3) Este estudo mostrou elevada frequência de dessaturação noturna (81,2%). Resultado semelhante foi obtido por um grupo de autores,(3) através de um estudo realizado com polissonógrafo e capnógrafo. Esses autores observaram que 83% dos pacientes com AF apresentavam dessaturação noturna. A dessaturação de oxigênio é comum na AF e está relacionada com o processo de falcização intracelular.(13) Entretanto, quando essa ocorre durante o sono, pode haver associação com hipoventilação e pode ser exacerbada pela obstrução das VAS.(14) A obstrução das VAS por HAT corresponde a um dos principais fatores causais para SAOS em crianças,(15) como pôde ser constatado no nosso estudo - os portadores de HAT apresentaram mais episódios de eventos obstrutivos (p = 0,010) e maior duração dos eventos obstrutivos (p = 0,015), assim como o tamanho das tonsilas faríngeas apresentou correlação positiva com o IAH (p = 0,018). Um grupo de autores(7) observou uma elevada prevalência da HAT obstrutiva em crianças e adolescentes com AF, sendo que a prevalência para hipertrofia de tonsilas palatinas obstrutivas foi de 18,8% e, para tonsilas faríngeas, de 55,3%. Esses autores atribuíram essa elevada prevalência ao fato de que portadores de AF apresentam maior suscetibilidade a contrair infecções graves devido à asplenia, à diminuição da capacidade de opsonização e a alterações do sistema reticuloendotelial e da função fagocítica. Outros autores(4) relataram que 36% dos pacientes com AF apresentavam obstrução das VAS. Nas crianças, esses episódios frequentemente estão associados à HAT, de tal forma que tanto a oclusão parcial quanto a oclusão total das VAS durante o sono podem iniciar-se desde os primeiros anos de vida.(15)
Em outro estudo,(16) observou-se, através da análise da regressão linear múltipla, que 74,3% das obstruções das VAS nessa população puderam ser explicadas pelas tonsilas palatinas, pelas tonsilas faríngeas e pelo palato duro.
No presente estudo, houve correlação inversa entre hemoglobina anual média e TTS com SpO2 < 90% assim como TTS com SpO2< 80%.
Semelhante resultado foi obtido em um estudo com 390 pacientes com AF, no qual a SpO2 basal, em consultas de rotina, variou de 86% a 99%; entretanto, apenas 2,3% dos pacientes apresentaram SpO2 < 90% e, ao realizarem uma análise multivariada, encontrou-se que a SpO2 estava associada inversamente à hemoglobina.(17) A hipoxemia tem sido descrita como um fator precipitante para crises álgicas e para eventos vaso-oclusivos no nível da microcirculação,(18) bem como o acidente vascular cerebral isquêmico "silencioso", o qual causa várias deficiências neurocognitivas, como problemas de aprendizado e redução do coeficiente de inteligência, afetando os lobos frontais e causando deficiência da atenção, falta de habilidades executivas e falhas na memória ativa e de longo prazo.(19) Além disso, acredita-se que pacientes com SAOS apresentem níveis plasmáticos mais elevados de fibrinogênio, atividade plaquetária exacerbada e redução da capacidade fibrinolítica, caracterizando um estado de hipercoagulabilidade, quando comparados com indivíduos não-apneicos. O estado de hipercoagulabilidade parece estar relacionado com a SAOS devido aos níveis elevados de estresse oxidativo e de inflamação. Dessa forma, alguns estudos afirmam que os DRS estão intimamente associados ao risco aumentado para acidente vascular cerebral.(20)
As dessaturações de oxigênio não se correlacionaram com o tamanho das tonsilas faríngeas, como também não se correlacionaram com o IAH. Alguns autores(21) estudaram os mecanismos de dessaturação noturna em 20 crianças e adolescentes com AF e concluíram que, embora a hipoxemia noturna seja comum nessas crianças, a SAOS não pareceu exercer um importante papel; eles ainda expuseram a necessidade de se considerar que essa dessaturação pode ser resultado do comprometimento pulmonar crônico devido aos episódios repetidos de síndrome torácica aguda, com consequente fibrose pulmonar e hipoxemia crônica, o que eventualmente pode levar ao desenvolvimento de hipertensão pulmonar,(22) ou devido à diminuição da afinidade da Hb S pelo oxigênio.(23)
No presente estudo, o tamanho das tonsilas faríngeas apresentou correlação com o IAH. Sabe-se que o espaço aéreo da faringe tende a ser menor em crianças portadoras de SAOS do que em indivíduos sem SAOS.(24) Foram estudadas crianças sedadas, através de ressonância magnética, com idade média de 4,8 anos, sendo observada uma correlação linear positiva entre o volume das tonsilas e o IAH (r2 = 0,26).(2) Em outro estudo com crianças não-sedadas, com idade média de 9,5 anos, foi observado que a área transversal das tonsilas palatinas, do palato duro e da região posterior ao palato duro, assim como o volume da orofaringe, se correlacionou fortemente com o IAH.(25)
Dos pacientes estudados, 77,6% apresentaram SpO2 basal ≤ 94%; dentre esses, 9,1% apresentaram IAH ≥ 1 evento/h de sono. O percentual do TTS com SpO2 < 80% apresentou maior valor para os portadores de SAOS quando comparado com o grupo não-apneico (p = 0,021); entretanto, não observamos associação estatisticamente significante entre essas variáveis e episódios de crises álgicas. Da mesma forma, alguns autores(26) também não observaram correlação entre a frequência de episódios de crises álgicas e SAOS, mas descreveram a associação entre crises álgicas e infecções recorrentes (p = 0,02).
Entretanto, estudos sugerem que a SAOS pode induzir a polimerização da Hb S, potencializando o processo de falcização e o aparecimento das crises vaso-oclusivas.(2) Diante do que foi exposto, deve-se considerar que o fenômeno de falcização tem condicionantes que o facilitam ou o dificultam. Para que as moléculas de Hb S se agreguem, é necessário que, além de desoxigenadas, estejam em elevada concentração, o que facilita sua associação. O fenômeno de falcização não é instantâneo, ou seja, ocorre após um intervalo, de forma que se a hemoglobina conseguir se reoxigenar nesse intervalo, a falcização não ocorrerá. Como consequência, a falcização não ocorre na maioria das hemácias em cada ciclo de passagem pelos capilares, mas em uma pequena porcentagem das células, pois as que conseguirem ser reoxigenadas reassumem aspecto normal. Logo, o processo de falcização, para um grande número de hemácias em um vaso sanguíneo, tem como principal fator causal a falta de tempo das hemácias para se reoxigenar, gerando a vaso-oclusão, e não apenas o fato isolado da desoxigenação.(27)
A principal limitação deste estudo está relacionada com a ampla faixa etária dos pacientes, que variou entre 2 e 18 anos. De acordo com outro estudo,(28) tende a ocorrer um grande incremento do crescimento nos primeiros anos de vida de um indivíduo, sendo que, ao nascimento, o esqueleto crânio-facial de um americano caucasiano corresponde a 60% do tamanho cefálico do adulto; aos 6 meses de vida, esse equivale a 80%; aos 3 anos, já atingiu os 90%; e, aos 9 anos, quase todo o esqueleto já se desenvolveu, correspondendo a 95%. Dessa forma, devem-se considerar trabalhos futuros com faixas etárias mais restritas com o intuito de investigar uma possível associação entre as características crânio-faciais e SAOS em portadores de AF.
Este estudo se torna relevante por tratar-se da primeira investigação sobre a prevalência de SAOS em crianças e adolescentes portadores de AF, o qual permitiu o conhecimento da elevada prevalência da SAOS (10,6%) nessa população. Os dados chamam a atenção para a necessidade de identificar precocemente os sinais de SAOS e avaliar alguns fatores, como hemoglobina anual média, pois foi observada uma correlação inversa dessa com TTS com SpO2 < 90% e TTS com SpO2 < 80%. Apesar da literatura referir que a hipóxia favorece o processo de falcização, no presente estudo, não foi observado associação entre IAH e episódios de crises álgicas. Esses dados podem contribuir para amenizar o quadro clínico da AF, patologia que ainda não tem um único tratamento específico, mas que é baseado em medidas preventivas e sintomáticas.
AgradecimentosEste artigo é parte da dissertação de Cristina Salles no Curso de Pós-Graduação em Medicina e Saúde Humana da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
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Trabalho realizado na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, na Fundação Oswaldo Cruz, no Hospital Especializado Otávio Mangabeira - HEOM - e no Centro de Hematologia e Hemoterapia da Bahia - HEMOBA - Salvador (BA) Brasil.
Endereço para correspondência: Cristina Salles. Centro Médico Hospital da Bahia, Avenida Professor Magalhães Neto, 1541, sala 2010, CEP 41.810-011, Salvador, BA, Brasil.
Tel/fax 55 71 2109-2210. E-mail: cristinasalles@click21.com.br
Apoio financeiro: Este estudo recebeu apoio financeiro da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
Recebido para publicação em 22/1/2009. Aprovado, após revisão, em 22/7/2009.
Sobre os autoresCristina Salles
Médica Otorrinolaringologia e em Medicina do Sono. Centro Médico Hospital da Bahia, Salvador (BA) Brasil.
Regina Terse Trindade Ramos
Professora Adjunta. Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia, Salvador (BA) Brasil.
Carla Daltro
Professora Assistente. Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Salvador (BA) Brasil.
Andréa Barral
Médica. Hospital Especialista Otávio Mangabeira, Salvador (BA) Brasil.
Jamocyr Moura Marinho
Professor Adjunto. Fundação para Desenvolvimento das Ciências, Salvador (BA) Brasil.
Marcos Antônio Almeida Matos
Professor Adjunto. Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Salvador (BA) Brasil.