ABSTRACT
Objective: To assess the determining factors for Mycobacterium tuberculosis multidrug resistance at a referral center for infectious diseases in the state of Minas Gerais, Brazil. Methods: A retrospective case-control study was conducted using data collected from September of 2000 to January of 2004. During this period, 473 cultures presenting growth of M. tuberculosis, corresponding to 313 patients, were submitted to susceptibility tests at the Central Laboratory of Minas Gerais. Cases presenting resistance to at least rifampin and isoniazid were classified as cases of multidrug resistance and were selected for study. These cases were paired to control group cases of drug-susceptible tuberculosis at a ratio of 1:3. Clinical and demographic data were analyzed using univariate and multivariate analyses. Results: During the study period, 12 (3.83%) cases of multidrug-resistant tuberculosis were identified. In the univariate analysis, multidrug-resistant tuberculosis was found to be more common among male patients, as well as among those testing positive in the sputum smear microscopy, those with cavitations larger than 4 cm in diameter and those having been previously treated for tuberculosis (p = 0.10 for all). After the multivariate analysis, only previous treatment for tuberculosis remained statistically significant (p = 0.0374), with an odds ratio of 14.36 (1.96-176.46). Conclusion: In the present study, previous treatment for tuberculosis was found to be an independent risk factor for multidrug-resistant tuberculosis.
Keywords:
Mycobacterium tuberculosis; Tuberculosis, multidrug-resistant; Tuberculosis; Microbial sensitivity tests; Risk factors
RESUMO
Objetivo: Estudar os fatores determinantes da multirresistência do Mycobacterium tuberculosis às drogas tuberculostáticas em centro de referência de doenças infecto-contagiosas do Estado de Minas Gerais, Hospital Eduardo de Menezes. Métodos: Estudo tipo caso-controle, retrospectivo, realizado de setembro de 2000 a janeiro de 2004. Nesse período, 473 culturas com crescimento de M. tuberculosis relativas a 313 pacientes foram analisadas quanto ao perfil de sensibilidade, no Laboratório Central de Minas Gerais. Foram selecionados os casos multirresistentes definidos como resistência a pelo menos rifampicina e isoniazida, depois de pareados com o grupo controle de pacientes com tuberculose sensível a todas as drogas na razão de 1:3. A associação dos dados demográficos e clínicos foi feita por análise estatística uni e multivariada. Resultados: Durante o período de estudo, doze casos de tuberculose multirresistente foram identificados (3,83%). Na análise univariada, a tuberculose multirresistente foi mais comum no sexo masculino, em pacientes com baciloscopia de escarro positiva, pacientes com cavitações maiores que 4 cm de diâmetro e pacientes com um ou mais tratamentos prévios para tuberculose (p = 0,10). Após a análise multivariada somente o tratamento anterior para tuberculose permaneceu estatisticamente significativo (p = 0,0374), com odds ratio de 14,36 (1,96 - 176,46). Conclusão: O fator de risco que se mostrou independentemente associado ao desenvolvimento de tuberculose multirresistente neste estudo foi a presença de um ou mais tratamentos prévios para tuberculose.
Palavras-chave:
Mycobacterium tuberculosis;. Tuberculose resistente a múltiplas drogas; Tuberculose;
INTRODUÇÃOA tuberculose é uma doença infecciosa grave, porém curável em praticamente 100% dos casos novos, desde que obedecidos os princípios da quimioterapia específica, já preconizada pelo Ministério da Saúde desde 1979. A dose adequada em combinações medicamentosas corretas e o uso regular da medicação por tempo suficiente, de preferência com supervisão das tomadas, são meios efetivos para se evitar a persistência bacteriana e o desenvolvimento de resistência às drogas.(1-2)
O aumento da freqüência de cepas do M. tuberculosis resistentes às drogas tuberculostáticas, principalmente em países em desenvolvimento e em pacientes com infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, tem sido um problema preocupante no meio científico. Esse fato tem aumentado o número de estudos sobre o assunto nos centros de pesquisa.(3)
O M. tuberculosis apresenta uma freqüência de mutantes naturalmente resistentes às drogas, sendo a razão entre bacilos resistentes e sensíveis de 1:106 para isoniazida, 1:108 para rifampicina e menos do que 1:1014 para ambas simultaneamente. Essa resistência aos medicamentos deve-se a mutações genéticas e existe naturalmente nas populações bacilares, fato mostrado desde o aparecimento das drogas antituberculosas.(4) Apesar de rara, a resistência adquirida ocorre quando há quimioterapia inadequada para tratar bacilos sensíveis, erros na prescrição e falta de medicamentos tuberculostáticos, absorção intestinal deficiente ou falhas em diferentes processos do programa de controle da tuberculose, selecionando-se mutantes resistentes que predominam sobre as populações sensíveis eliminadas pelos medicamentos.(4-6)
No Brasil considera-se multirresistente o bacilo que apresenta resistência in vitro à rifampicina e isoniazida, e a uma terceira droga dos esquemas padronizados. Essa definição difere das de outros países porque o Brasil preconizou, desde 1979, um esquema de reserva (Esquema III) para os casos de falência aos esquemas de primeira linha (Esquemas I, IR e II).(4) O critério internacional, o qual foi adotado neste estudo, considera multirresistência a resistência in vitro à rifampicina e isoniazida simultaneamente.(7)
O aumento da presença de multirresistência e a identificação de possíveis fatores de risco associados podem funcionar como marcadores epidemiológicos de efetividade nos programas de controle da tuberculose e serem úteis na elaboração de estratégias.(8)
Diante da relevância da tuberculose em nosso meio e das escassas publicações de dados no Estado de Minas Gerais, este trabalho pretende descrever o panorama epidemiológico e os fatores associados à multirresistência em um centro de referência nesse Estado.
MÉTODOSDesde setembro de 2000 a rotina laboratorial do Hospital Eduardo de Menezes consiste no encaminhamento de todo exame positivo para pesquisa de bacilos álcool-acido resistentes (BAAR) para a Fundação Ezequiel Dias, referência laboratorial do Estado de Minas Gerais, onde as culturas para micobactérias são realizadas. Se houver solicitação médica, são enviados também os exames negativos para BAAR. Na Fundação Ezequiel Dias todas as culturas positivas são submetidas aos testes de identificação de micobactérias e ao teste de sensibilidade.
No período de setembro de 2000 a janeiro de 2004 (aproximadamente 40 meses), foram realizadas 1.519 culturas para micobactérias provindas do Hospital Eduardo de Menezes, a partir de escarro, lavado broncoalveolar, aspirado de linfonodos, líquor, líquido pleural e ascítico, medula óssea e sangue. Os resultados encontrados foram: 33 contaminadas (2,2%), 956 negativas (62,9%) e 530 positivas (34,9%).
Das 530 culturas positivas, 57 cepas eram de micobactérias não tuberculosas (10,7%). As 473 culturas positivas restantes eram de M. tuberculosis e, depois de excluídas as culturas repetidas do mesmo paciente, resultaram em um total de 313 culturas, em que foram encontradas 60 (19,17%) cepas obtidas a partir de material respiratório (escarro e lavado broncoalveolar) que apresentaram resistência a pelo menos uma droga, conforme apresentado na Tabela 1.
Dezenove cepas foram resistentes à rifampicina e 32 resistentes à isoniazida. Entre elas 12/60 foram resistentes simultaneamente às duas drogas (20%). Estas doze cepas preencheram o critério internacional para cepas multirresistentes e foram selecionadas como casos do estudo.
O critério de inclusão para seleção dos casos foi haver pelo menos uma cultura positiva para M. tuberculosis resistente simultaneamente à rifampicina e à isoniazida.
O critério de inclusão no grupo controle foi haver cultura para M. tuberculosis positiva com teste de sensibilidade sensível a todas as drogas testadas. Os pacientes foram pareados por idade (mais ou menos três anos de diferença). A razão do pareamento foi de 1:3 (um caso para três controles).
Foram observados os seguintes dados: sexo, idade, raça, escolaridade, atividade profissional, tipo de habitação, história pregressa de tuberculose, número de tratamentos para tuberculose, esquema usado no primeiro tratamento, forma clínica, contato com paciente portador de tuberculose, tipo de contato, história da moléstia atual (se era caso novo ou não), tempo de aparecimento dos sintomas, motivo do atendimento ou internação, sinais e sintomas na internação ou consulta, radiografia de tórax no atendimento (extensão das lesões, tamanho das cavidades, com diâmetro maior ou menor que 4 cm e outras lesões associadas), doenças e fatores associados, alcoolismo, diabetes, câncer, corticoterapia, uso de imunossupressores, pneumopatias prévias, distúrbios psiquiátricos, sorologia para o vírus da imunodeficiência humana, e resultado de pesquisa de BAAR descrito em cruzes conforme número de bacilos por campos examinados, de acordo com os critérios do Ministério da Saúde.(9)
O resultado de cultura para M. tuberculosis foi considerado positivo quando ocorreu crescimento de colônias típicas de M. tuberculosis, as quais foram submetidas ao teste de sensibilidade após identificação pelos testes de PNB (ácido p-nitrobenzóico), TCH (hidrazida do ácido tiofeno-2-carboxílico) e fita de niacina. Foi utilizado o meio sólido Lowenstein-Jensen e a leitura feita no 45o e 60o dia após o plantio da espécie de material biológico enviado para exame.(9) Todos os resultados de cultura positivos para M. tuberculosis foram submetidos ao teste de sensibilidade pelo método indireto da técnica das proporções em meio sólido, e a resistência foi definida como crescimento de pelo menos 1% de colônias sob concentrações críticas das seguintes drogas: 0,2 mg/ml para isoniazida, 2 mg/ml para etambutol e 40 mg/ml para rifampicina; e crescimento de pelo menos 10% de colônias sob concentrações críticas para as seguintes drogas: 20 mg/ml para etionamida, 100 mg/ml para pirazinamida e 4 mg/ml para estreptomicina.(10-11)
A análise estatística foi feita com o objetivo de se avaliar a associação entre fatores demográficos, clínicos e laboratoriais e a multirresistência. Para o banco de dados e análise estatística, foi utilizado o programa Epinfo 2002 versão 3.2. Após a análise descritiva e a análise univariada, as variáveis com valor de p < 0,10 foram encaminhadas para análise multivariada com a técnica de regressão logística, sendo que o valor de significância de p adotado foi de 0,05.
Por ser um estudo baseado em revisões de prontuários, no qual os autores se comprometeram a manter o sigilo dos pacientes, o trabalho foi aprovado pelo comitê de ética e pesquisa do hospital, sem necessidade de obtenção de consentimento livre e esclarecido.
RESULTADOSEm relação ao sexo dos pacientes, foram observados 32 homens (66,7%) e 16 mulheres (33,3%), num total de 48 indivíduos. A idade dos pacientes variou entre 15 e 59 anos. A idade média foi de 37,35 (± 12,09) anos, com mediana de 37 anos. Para o grupo de casos, obteve-se 37,17 (± 12,90) anos com mediana de 36,5 anos e para os controles 37,42 (± 11,99) anos com mediana de 37 anos. Considerando-se a cor da pele, os pacientes eram, em sua maioria, não-brancos (81,3%). Quanto ao grau de escolaridade dos pacientes, a maioria tinha, no máximo, o segundo grau incompleto ou completo, sendo que 12,5% eram analfabetos. Em relação à atividade profissional, os indivíduos foram categorizados como ativos (79,2%) ou inativos (20,8%). Tanto no grupo de casos como entre os controles, 91,7% moravam em áreas urbanas.
Considerando-se o total de pacientes, o número de tratamentos anteriores para tuberculose foi em média igual a 0,9, variando de zero a seis. A distribuição de freqüências dos tratamentos é apresentada na Tabela 2.
O tempo de aparecimento dos sintomas da tuberculose variou de uma a 30 semanas. A média foi de 8,5 + 7,3 e a mediana de 4,5 semanas. As porcentagens de ocorrência de doenças e fatores associados foram 51,1% de alcoolismo, 6,7% de diabetes, 4,2% de pneumopatias e 6,3% de psicopatias.
Quanto aos exames de radiologia de tórax no momento do atendimento, a distribuição segundo a extensão das lesões foi de 6,3% de radiografias de tórax normais, 33,3% com lesão unilateral e 60,4% com lesões bilaterais. Com relação ao tamanho das cavidades, houve 35,4% com cavitações pequenas, 41,7% com cavitações grandes e 22,9% sem nenhuma cavidade. Foram observadas as seguintes lesões associadas: 6,3% com apresentação pleural, 8,3% miliar, 6,3% com pulmão destruído unilateral, 18,8% com disseminação broncogênica e 25% com consolidações.
A distribuição de freqüências do resultado de BAAR foi de 6 negativos, 13 com BAAR+, 6 com BAAR++ e 23 com BAAR+++. O resultado mais comum foi o BAAR +++, que correspondeu a 47,9% dos pacientes. Entre os casos, todos os exames foram positivos para BAAR (100%), enquanto que entre os controles houve 83,3% de exames positivos.
O teste para o vírus da imunodeficiência humana foi realizado em todos os pacientes, e os resultados foram positivos em 8 deles (1 caso e 7 controles).
As variáveis descritas abaixo não foram passíveis de análise devido ao número insuficiente em cada categoria: tipo de habitação, contato prévio com pacientes portadores de tuberculose, câncer, e uso de corticoesteróides e de imunossupressores.
A Tabela 3 mostra a análise univariada da associação das características clínicas e radiológicas com resistência do M. tuberculosis. Para a análise multivariada foram escolhidas as variáveis com valor estatístico significativo (p < 0,10). Os resultados são apresentados na Tabela 4.
Estes resultados indicam associação estatisticamente significativa apenas com a variável "tratamento anterior de tuberculose", com p = 0,0374. Indivíduos com história de tuberculose tiveram neste estudo chance catorze vezes maior de desenvolver resistência que indivíduos sem história prévia de tuberculose.
DISCUSSÃONo Estado de Minas Gerais, no período do estudo, de setembro de 2000 a janeiro de 2004, ocorreram 18.507 casos novos de tuberculose, com média de aproximadamente 6.000 casos novos por ano (dados oficiais da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais, de junho de 2004). O número de casos de tuberculose multirresistente notificados no Brasil, no período de 2000 a 2005, foi de 1.907 casos, sendo 1.246 na Região Sudeste.(4)
O Hospital Eduardo de Menezes, centro de referência de tratamento de doenças infecto-contagiosas do Estado de Minas Gerais, após análise de 313 culturas, apresentou 60 resistentes a pelo menos uma droga (19,17%), índice similar aos de estudos anteriores revisados na literatura, em que a resistência global a pelo menos uma droga é de aproximadamente 21%.(13-14) Entre esses, doze casos foram de tuberculose multirresistente em um período de quarenta meses (setembro de 2000 a janeiro de 2004). A taxa de multirresistência deste trabalho, de 3,83% (12/313), foi superior à encontrada no Brasil de 2000 a 2005, de 0,44%,(4) provavelmente devido à seleção de pacientes mais graves, com maior taxa de abandono e recidiva, em um hospital de referência. Logo, estes dados não devem ser extrapolados para unidades primárias de saúde. Embora este número seja pequeno, é preocupante, pois o diagnóstico de tuberculose multirresistente não só diminui as probabilidades de cura, como também aumenta o tempo do tratamento e a sua toxicidade. Seu custo eleva-se cerca de 700 vezes, em comparação com esquemas usados na tuberculose multissensível.(14)
O índice de resistência à rifampicina e isoniazida simultaneamente, de 3,83% (doze resistentes em 313 culturas positivas para M. tuberculosis), foi mais alto quando comparado com os resultados encontrados no último inquérito epidemiológico realizado no Brasil, entre 1995 e 1996, que demonstrou uma taxa de 2,2%.(15) Nesse levantamento, a resistência adquirida associada à multirresistência foi de 7,9%, e a resistência primária de 1,1%. No estudo atual, a multirresistência primária ocorreu em apenas um caso (0,3%) e a adquirida em onze deles (3,5%). A multirresistência primária, que não é um problema grave atualmente no Brasil, tem-se mostrado alta em alguns países, como Letônia (14,4%), Estônia (10,2%), República Dominicana (6,6%), Costa do Marfim (5,3%), Argentina (4,4%) e Rússia (4%).(16)
Na análise descritiva não se observou diferença quanto ao sexo e cor da pele. A maioria dos pacientes tinha, no máximo, o segundo grau incompleto, tanto nos casos como nos controles, o que sugere que a tuberculose esteja acometendo indivíduos com baixo nível educacional, fato já relatado em outros estudos no Brasil.(17)
A maioria dos pacientes deste estudo é de zona urbana, dado similar aos de trabalhos anteriormente publicados no Brasil. Não foi possível o detalhamento das condições higiênicas das moradias (número de quartos, presença de água encanada ou rede de esgoto), critério indireto de pobreza, devido ao registro escasso nos prontuários.
Em relação ao número de tratamentos realizados anteriormente para tuberculose, foi observada uma média de 0,9, variando de zero a seis, e foi em maior número nos casos do que nos controles. Somente um caso (1/12) não tinha sido submetido a tratamento prévio. Nos controles, 77% deles (28/36) não tiveram tratamento prévio para tuberculose. Foi descrito em outro estudo que 85,4% dos pacientes portadores de tuberculose multirresistente apresentaram dois ou mais tratamentos anteriores para tuberculose, valor próximo do achado neste estudo, que foi de 91,6%.(18-19) A média de tratamentos anteriores para tuberculose foi de 2,3 tratamentos para os casos e 0,47 para o grupo controle. Estes dados são similares aos do Brasil, onde os casos com tuberculose multirresistente tiveram uma média de 2,8 tratamentos prévios para tuberculose.(4)
O tempo de aparecimento dos sintomas, até a procura por atendimento médico, variou de uma a 30 semanas, com mediana de nove semanas. O maior tempo de início dos sintomas (superior ao ponto de corte, nove semanas) foi mais freqüente entre os pacientes com tuberculose multirresistente, diferentemente do ocorrido em relação à tuberculose multissensível, que foi menor que quatro semanas. Isto pode ser explicado pela própria evolução da doença resistente, com pacientes crônicos, história anterior de tratamento e abandono, e maior demora para procura de serviço médico, o que facilita a progressão da doença, assim como a sua propagação. Essa demora no diagnóstico pode ser comparada a dados da Cidade de São Paulo, onde 55,9% dos pacientes com tuberculose tinham sintomas havia mais de 30 dias antes do diagnóstico.(20-22)
A taxa de alcoolismo foi mais elevada no grupo controle (25% nos casos e 55,6% nos controles), mas este fato não foi associado à tuberculose resistente. É importante a avaliação deste dado, pois foi referida várias vezes na literatura a associação do alcoolismo à multirresistência.(19-21) Neste trabalho não ocorreu valor estatístico significativo, provavelmente devido à maior gravidade dos pacientes do grupo controle, com taxa de 55,6% de uso abusivo de álcool.
Para serem avaliados os resultados das radiografias de tórax, foi feita uma subdivisão em três itens, para facilitar não só o laudo, mas também a compilação de dados: extensão das lesões, tamanho das cavidades e outras lesões associadas, seguindo os protocolos dos trabalhos publicados anteriormente.(20,23-24) A análise final não foi diferente das publicações mencionadas. A presença de cavitações, principalmente maiores que 4 cm de diâmetro, foi mais encontrada em pacientes portadores de tuberculose multirresistente na análise univariada. Na análise multivariada não houve diferença estatisticamente significativa, provavelmente pelo tamanho insuficiente da amostra.
A análise do escarro mostrou inicialmente maior positividade nos pacientes do grupo de casos, fato explicado pela persistência de positividade na baciloscopia, devida à resistência aos medicamentos. Mas quando a análise foi feita na regressão logística multivariada, não foi observada diferença estatisticamente significativa, pois este exame realmente não é indicador de resistência, e sim de presença de doença em atividade.(25)
Embora na nossa amostra a prevalência de soropositividade para o vírus da imunodeficiência humana tenha sido baixa, os nossos achados mantiveram-se similares aos dados já conhecidos e publicados anteriormente no Brasil, não mostrando associação entre a multirresistência da tuberculose e a co-infecção pelo vírus da imunodeficiência humana.(26-28)
Pacientes com tratamento anterior para tuberculose tiveram catorze vezes mais chances de desenvolver tuberculose multirresistente. Este resultado está em consonância com a literatura, ou seja, a tuberculose multirresistente não é uma nova doença e tampouco algo que desconhecemos, e sim uma doença que acomete pacientes crônicos, eliminadores de bacilos, resultado de deficiências de nosso sistema de saúde básico, ainda bastante precário.(1,29)
No final do estudo concluímos que os fatores de risco associados de forma estatisticamente significativa à multirresistência na análise univariada foram: gênero (resistência mais comum no sexo masculino), emagrecimento (mais evidente nos pacientes com cepas multissensíveis), presença de maior positividade na baciloscopia de escarro (maior positividade nos exames de cepas resistentes), tamanho das cavitações avaliadas na radiologia de tórax (maiores nos exames de pacientes resistentes) e tratamento anterior para tuberculose (associado a uma chance 18,98 vezes maior de desenvolver tuberculose resistente).
Após a análise de regressão logística múltipla, a única variável que se manteve independentemente associada ao risco de tuberculose multirresistente foi a presença de tratamentos anteriores para tuberculose (p = 0,0374), sendo que os indivíduos com história de tuberculose, avaliados neste estudo, tinham catorze vezes mais chances de apresentar resistência do que aqueles indivíduos sem história prévia de tuberculose.
O estudo tem suas limitações, uma vez que foi baseado somente em coleta de dados em prontuários, e se restringiu a uma unidade de saúde com suas especificidades, sendo a principal a maior gravidade dos pacientes, selecionados por estarem em um hospital de referência. No entanto, o estudo justificou-se pela necessidade de conhecermos a realidade desta instituição de referência e para verificarmos a relevância nesta população dos dados já descritos na literatura.
Este trabalho volta a reforçar a necessidade de investimentos nos programas básicos de saúde pública, pois só assim teremos mais atenção ao atendimento e adesão do paciente ao tratamento, com menor taxa de abandono, que é na verdade a grande responsável pelo aparecimento da multirresistência em nosso país.
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* Trabalho realizado no Hospital Eduardo de Menezes, Belo Horizonte (MG) Brasil.
1. Mestre em Medicina Clínica. Pneumologista do Hospital Eduardo de Menezes - Belo Horizonte (MG) Brasil.
2. Professor de Estatística do Serviço de Pós-Graduação da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte - Belo Horizonte (MG) Brasil.
3. Mestre em Infectologia. Pneumologista do Hospital Eduardo de Menezes e da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte - Belo Horizonte (MG) Brasil.
Endereço para correspondência: Márcia Beatriz de Souza. Av. Dr. Cristiano Rezende, 2.213, Bairro Bom Sucesso - CEP: 30622-020, Belo Horizonte, MG, Brasil. Tel: 55 31 3383-8000. Email: mbsmmarcia@yahoo.com.br.
Recebido para publicação em 21/4/05. Aprovado, após revisão, em 31/1/06.