Uma paciente de 32 anos é atendida em um pronto-socorro devido a uma dor intensa na altura das omoplatas, que se irradiava para a região esternal. Informa antecedente de asma, que se tornou intermitente nos últimos anos. Há três meses, devido a condições ambientais adversas no trabalho, tem utilizado β2-agonistas de curta duração para alívio sintomático, três vezes por semana. Sua radiografia de tórax é normal. A paciente é medicada com analgésicos e anti-inflamatórios. Diante da persistência do quadro, retorna ao hospital após 48 h, e o processo se repete. No sexto dia após o início da dor torácica, a paciente é novamente atendida; informando ao médico que a mãe, moradora em outra cidade, havia relatado que, durante sua infância e adolescência, quando as crises de asma eram frequentes, as dores torácicas eram um sinal de que a asma estava exacerbada. Ao exame físico, apresenta-se eupneica, sem presença de ruídos adventícios pulmonares. A espirometria detecta um distúrbio ventilatório obstrutivo, com VEF1 de 37% do predito, com reversibilidade de 70% após o uso de broncodilatador. Este caso, incomum e real, reflete bem a complexidade que envolve o que os asmáticos sentem, como se expressam a respeito da doença e como os profissionais de saúde os interpretam.
Sabemos de longa data que a relação entre sintomatologia e medidas objetivas de função pulmonar é pobre. Há 40 anos, em um estudo clássico, McFadden et al. correlacionaram a mecânica pulmonar aos sintomas e aos achados no exame físico de 22 pacientes, na crise de broncoespasmo e, seriadamente, durante o tratamento.(1) Os autores observaram que o grau de dispneia e sibilância não foi capaz de determinar aqueles que tinham a limitação funcional mais grave e, independentemente do grau de broncoespasmo inicial, quando os pacientes tornaram-se assintomáticos, os parâmetros de mecânica pulmonar mantinham-se em torno de 40-50% do valor predito.(1) Outro exemplo da dissociação entre dados clínicos e funcionais é a estratégia atual que adotamos para o manejo da asma, utilizando um escore composto que define quando a doença está controlada.(2) As diretrizes adotaram esse conceito baseando-se na observação de que desfechos, como sintomas, uso de medicação de alívio ou parâmetros espirométricos, quando avaliados isoladamente, refletem de maneira imprecisa a resposta dos asmáticos à terapêutica.(3)
A discrepância entre os sintomas e as medidas objetivas de função pulmonar tem sido estudada por diferentes métodos, que tendem a classificar os pacientes em dois subgrupos - os "hipopercebedores" e os "hiperpercebedores". A ampla variabilidade das estimativas da magnitude da disparidade, com prevalências reportadas de 15% a 60% de hipopercebedores, demonstra o quanto se desconhece o assunto.
A literatura tem dado ênfase principalmente à parcela dos pacientes considerados hipopercebedores, aqueles que não avaliariam adequadamente a gravidade da sua situação; portanto, com maior risco de hospitalização e morbidade, visto que postergam o tratamento adequado. Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Reck et al. analisaram essa faceta em um estudo que incluiu 53 pacientes com asma leve.(4) Desses, 21 (39%) não foram capazes de identificar a broncoconstrição induzida por metacolina. Em outro estudo em nosso meio, um grupo de autores, comparando sintomas (avaliados por uma escala visual analógica) com dados de espirometria, concluíram que 51% dos pacientes não perceberam adequadamente o grau de obstrução das vias aéreas.(5) Em contrapartida, uma parcela dos asmáticos tenderia a ser muito sensível a pequenas mudanças de calibre das vias aéreas, o que os induziria à supermedicação, com o uso excessivo de broncodilatadores para alívio.(6)
Assim posto, fica-se com a impressão de que estamos diante de uma situação estanque; os asmáticos se dividem em "normopercebedores", hiperpercebedores ou hipopercebedores. Os hipopercebedores estariam sujeitos a um aumento da morbidade e mortalidade, enquanto os hiperpercebedores tenderiam a um exagero na utilização de medicamentos. Ambos seriam candidatos à baixa aderência, seja por tratamento aquém do indicado, seja por seu excesso. Essa divisão faz, de fato, pleno sentido?
As ciências da psicologia trazem, a meu ver, uma contribuição importante, que faz senso com o que observamos na prática clínica. Segundo um grupo de autores, somente uma pequena parcela dos asmáticos tem uma condição única e estável no decorrer do tempo, ou seja, eles reportam seus sintomas em desacordo com a gravidade da real situação clínica.(7) Esses indivíduos teriam um comprometimento permanente de processamento central dos sinais provenientes das vias neurobiológicas.
A maioria dos asmáticos, à parte desse pequeno grupo, não é consistente na capacidade de percepção, intensamente influenciada por expectativas e fatores emocionais, que interagem com a personalidade e o contexto das situações de momento.(7) Estudos sugerindo que diferentes desencadeantes (como exercício ou broncoprovocação inespecífica) gerariam sensações diversas,(8) bem como o alto nível de ansiedade e depressão a que esses pacientes estão sujeitos dão suporte a esta teoria.(9)
Em conclusão, como exemplificado pelo caso clínico descrito, a linguagem dos sintomas na asma é complexa e pouco explicada. Esse contexto enfatiza a importância, particularmente nos pacientes mais instáveis e mais graves, de estimularmos a avaliação objetiva da função pulmonar e do redobrado cuidado em ouvir esses pacientes, entender suas expectativas, identificar como expressam seu desconforto e orientá-los adequadamente.
Alberto Cukier
Professor Livre-Docente em Pneumologia
Divisão de Pneumologia, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Referências
1. McFadden ER Jr, Kiser R, DeGroot WJ. Acute bronchial asthma. Relations between clinical and physiologic manifestations. N Engl J Med. 1973;288(5):221-5.
2. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. IV Diretrizes Brasileiras para o Manejo da Asma. J Bras Pneumol. 2006;32(Suppl 7):S447-S474.
3. Bateman ED, Bousquet J, Braunstein GL. Is overall asthma control being achieved? A hypothesis-generating study. Eur Respir J. 2001;17(4):589-95.
4. Reck CL, Fiterman-Molinari D, Barreto SS, Fiterman J. Poor perception of dyspnea following methacholine challenge test in patients with asthma. J Bras Pneumol. 2010;36(5):539-44.
5. Souza-Machado A, Cavalcanti MN, Cruz AA. Má percepção da limitação aos fluxos aéreos em pacientes com asma moderada a grave. J Pneumol. 2001;27(4):185-92.
6. Mawhinney H, Spector SL, Heitjan D, Kinsman RA, Dirks JF, Pines I. As-needed medication use in asthma usage patterns and patient characteristics. J Asthma. 1993;30(1):61-71.
7. Janssens T, Verleden G, De Peuter S, Van Diest I, Van den Bergh O. Inaccurate perception of asthma symptoms: a cognitive-affective framework and implications for asthma treatment. Clin Psychol Rev. 2009;29(4):317‑27.
8. Scano G, Stendardi L. Dyspnea and asthma. Curr Opin Pulm Med. 2006;12(1):18-22.
9. Carvalho NS, Ribeiro PR, Ribeiro M, Nunes Mdo P, Cukier A, Stelmach R. Comparing asthma and chronic obstructive pulmonary disease in terms of symptoms of anxiety and depression. J Bras Pneumol. 2007;33(1):1-6.