O surgimento de cepas de Streptococcus pneumoniae resistentes à penicilina, decorrência de mutações cromossômicas e alterações nas proteínas ligadoras do antibiótico na parede bac-teriana, repercutiu amplamente no uso clínico da droga. Essas cepas, aparentemente restritas à África do Sul na década de 1970, disseminaram-se pelo mundo e ganham espaço cada vez maior como agentes de infecções comunitárias e hospitalares. Com o propósito maior de guiar uma terapêutica com níveis eficazes para a meningite pneumocócica, foram revisados os critérios internacionais de interpretação da concentração inibitória mínima (CIM) da penicilina G sobre o pneumococo, classificando-se atualmente estas bactérias em sensíveis (CIM < 0,06 g/mL), com resistência intermediária (CIM entre 0,12 e 1,0 g/mL) e com resistência elevada (CIM > 2,0 g/mL). Amostras de pneumococo enquadradas nestas duas últimas categorias, denominadas penicilino não susceptíveis, mostram prevalência variável conforme as regiões do mundo e de cada país, chegando a causar 40% a 60% dos casos de infecção pneumocócica, nos últimos anos, na França, Espanha, México, Chile e Israel. No Brasil, o teste de sensibilidade feito com amostras isoladas em 20 hospitais de 12 cidades, no período de 1993 a 1999, mostrou que 20,7% delas classificaram-se como penicilino não susceptíveis, das quais 1,6% apresentaram resistência de nível elevado.(1) Estas prevalências foram as menores dentre os países latino-americanos participantes desse estudo. Infelizmente, a proporção de isolamento de amostras penicilino não susceptíveis vem sofrendo incremento gradativo, e estas cepas de pneumococo freqüentemente apresentam resistência associada a antimicrobianos de outras classes e, até mesmo, multirresistência.
A eritromicina, antibiótico do grupo dos macro-lídeos, vem sendo prescrita no tratamento de pacientes com infecções respiratórias altas e baixas há algumas décadas. Neste período, em relação à pneumonia pneumocócica, representou principalmente uma alternativa secundária para pacientes impossibilitados de receber penicilina. A dispo-nibilização farmacêutica de novos macrolídeos (claritromicina e outros) e azalídeos (azitromicina), com meia vida longa, posologia simples e melhor tolerância do que a eritromicina, trouxe grande incremento no uso clínico de antibióticos pertencentes a esses grupos. Possivelmente, o conhecimento da menor sensibilidade do pneumococo às penicilinas também contribuiu para que clínicos e pediatras ampliassem a utilização de macrolídeos e azalídeos. Como acontece com a maioria dos antimicrobianos, o seu uso freqüente pressionou a seleção de microorganismos não susceptíveis. No caso do pneumococo, a resistência à eritromi-cina, que abrange a claritromicina e a azitromicina, teve rápida e significativa elevação em diversas partes do mundo. O isolamento de cepas resistentes é maior em crianças do que em adultos e guarda relação com o uso prévio de macrolídeos.(2) Estudo realizado por Zettler et al., em cinco hospitais de Porto Alegre, publicado neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia,(3) revelou que 5,2% dos pneumococos isolados tinham resistência à eritromicina, valor semelhante à proporção de 4,3% encontrada em avaliação de amostras isoladas em três estados brasileiros, no período de 1990 a 1999.(4) Os dois mecanismos de resistência evidenciados consistem em alteração do ribossoma bacteriano, com redução da afinidade aos antimicrobianos (fenótipo MLSB), e de efluxo ativo, para retirada das drogas do citoplasma do microorganismo (fenótipo M). Enquanto as cepas dotadas deste último mecanismo em geral apresentam baixo nível de resistência à eritromicina, claritromicina e azitromicina, os pneumococos com fenótipo MLSB mostram níveis elevados de resistência a esses antibióticos e também à clindamicina e estreptograminas, impedindo que elas sejam utilizadas na terapia dos pacientes infectados.
A redução na sensibilidade do pneumococo aos antimicrobianos, o qual permanece como o principal agente de pneumonias em adultos não hospitalizados, levou a uma revisão da antibioti-coterapia, tanto na infecção com etiologia conhecida, como no tratamento empírico para a pneumonia adquirida na comunidade. Em relação às penicilinas e cefalosporinas, avaliações do impacto clínico da resistência do pneumococo trouxeram resultados contraditórios em casos de pneumonia, algumas mostrando aumento da mortalidade dos pacientes, outras não evidenciando tal associação. Para infecções por pneumococos com elevado nível de resistência a beta-lactâmicos, deve-se recorrer a antimicrobianos de outros grupos, como as quinolonas com ação antipneu-mocócica e, eventualmente, à vancomicina. Por outro lado, existe certa confusão com os critérios microbiológicos de interpretação do teste de susceptibilidade da bactéria, uma vez que, em doses elevadas, penicilina G, amoxicilina, ceftriaxona, cefotaxima e outros beta-lactâmicos mais ativos alcançam níveis teciduais por tempo suficiente para controlar infecções respiratórias causadas por amostras com resistência intermediária à penicilina. A amoxicilina, particularmente, tem sido investigada no tratamento de pacientes infectados por esses pneumococos, verificando-se que apresenta propriedades farmacodinâmicas favoráveis e eficácia clínica, principalmente quando usada em doses diárias de 4 g, em adultos.(5)
A resistência do pneumococo aos macrolídeos e à azitromicina também limitou o uso destes antibióticos nas infecções respiratórias. Numerosos casos de falha terapêutica de macrolídeos, comprovadas por culturas persistentemente positivas, foram relacionadas com CIM = 4 g/mL para a eritromicina. Nas infecções causadas por estas bactérias, recorre-se a outros grupos de antimi-crobianos, como mencionado anteriormente para pneumococos penicilino não susceptíveis. Considerando-se, porém, o percentual relativamente pequeno, no Brasil, de amostras bacterianas resistentes a macrolídeos e azalídeos, estas drogas continuam sendo alternativas úteis na monoterapia empírica de casos não graves de pneumonia comunitária. Em se tratando de casos graves, que requerem hospitalização, tem sido reconhecida a eficácia da associação de cefalosporinas de terceira geração com macrolídeos, evidenciada em prognóstico mais favorável para pacientes com infecção pneumônica. É pertinente lembrar que a telitromicina, ketolídeo derivado da claritromicina, é ativa contra a maioria dos pneumococos resistentes a macrolídeos.
O uso criterioso de antimicrobianos, em nível comunitário ou hospitalar, contribuirá para preservar a posição do Brasil, menos dramática quanto à resistência do pneumococo, possibilitando que se continue usando beta-lactâmicos e macrolídeos nas infecções respiratórias causadas por esse microorganismo
Roberto Martinez
Professor Associado da Divisão de Moléstias Infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil
Referências
1. DiFabio JL, Castañeda E, Agudelo CI, De La Hoz F, Hortal M, Camou T, et al. Evolution of Streptococcus pneumoniae serotypes and penicillin susceptibility in Latin-America, Sireva-Vigía Group, 1993 to 1999. Pediatr Infect Dis J. 2001; 20(10):959-67.
2. Mason OE Jr, Wald ER, Bradley JS, Barson WJ, Kaplan SL; The United States Pediatric Multicenter Pneumococcal Surveillance Study Group. Macrolide resistance among middle ear isolates of Streptococcus pneumoniae observed at eight United States pediatric center: prevalence of M and MLSB phenotypes. Pediatr Infect Dis J. 2003;22(7):623-7.
3. Zettler FR, Zettler EW, Schmitt VM, Jahns MT, Dias CAG, Fritscher CC. Estudo fenotípico e genotípico da resistência aos macrolídeos do Streptococcus pneumoniae em amostras clínicas de hospitais de Porto Alegre - RS. J Bras Pneumol. 2005;31(4)312-7.
4. Mendonça-Souza CR, Carvalho MG, Barros RR, Dias CA, Sampaio JL, Castro AC, et al. Ocurrence and characteristics of erythromycin-resistant Streptococcus pneumoniae strains isolated in there major Brasilian states. Microb Drug Resist. 2004;10(4):313-20.
5 . Craig WA. Overview of newer antimicrobial formulations for overcoming pneumococcal resistance. Am J Med. 2004;117(Suppl 3A):16S-22S.