Desde o primeiro transplante realizado com sucesso em 1983 em Toronto, Canadá, a realidade clínica dos transplantes pulmonares deve-se a um esforço conjunto de pesquisadores, cirurgiões, pneumologistas e equipes multidisciplinares no intento de resolver os inúmeros problemas inerentes a esse tipo de transplante. Dentre os órgãos sólidos, o pulmão permanece sendo o de preservação mais difícil, e os resultados do transplante pulmonar a longo prazo ainda permanecem inferiores aos dos demais órgãos, com sobrevidas globais em um, cinco e dez anos em torno de 80%, 50% e 28%, respectivamente.(1) Não obstante, a prova irrefutável do sucesso do transplante de pulmão está nos 19.792 procedimentos, computados até 2008, ao longo dos últimos 25 anos desde a criação do Registro Internacional de Transplantes Pulmonares.(1) Embora as indicações mais frequentes permaneçam essencialmente as mesmas (enfisema, 36%; fibrose pulmonar idiopática, 20%; e fibrose cística, 16%), o crescimento exponencial do número de transplantes criou uma demanda crescente de doadores. A despeito do desenvolvimento de políticas de doação de órgãos mais eficazes e dos avanços nos cuidados nas UTIs, a escassez de doadores permanece em descompasso com a demanda gerada pela proliferação dos transplantes pulmonares, sendo o fator de maior impacto na restrição ao número de transplantes realizados até o momento. Em nosso meio, uma revisão recente da oferta de doadores para transplante pulmonar revelou que apenas 4,9% dos doadores foram aceitos, sendo que a taxa de utilização dos enxertos pulmonares não ultrapassou 4%.(2) Tal constatação é alarmante, pois essas cifras são inferiores às de centros de transplante em outros países. Ademais, essa situação provavelmente será a de mais difícil solução a curto prazo, uma vez que requer um esforço conjunto de órgãos governamentais, entidades de transplante e hospitais, além de educação da população, treinamento de equipes médicas, etc. A desproporção crescente entre o número de órgãos doados e o número de receptores potenciais em lista de espera gera uma realidade cruel, uma vez que a escassez de órgãos viáveis é um fator determinante de mortalidade dos receptores potenciais em lista de espera. Outro fator restritivo importante é a qualidade dos órgãos oferecidos. Paralelamente aos avanços da imunossupressão, a evolução da preservação pulmonar mudou as perspectivas do transplante, permitindo evoluir-se do pesadelo logístico da extração pulmonar do doador no próprio centro de transplante para a busca de órgãos à distância. As duas últimas décadas de pesquisas em preservação pulmonar forneceram valiosos recursos e ampliaram os períodos de "isquemia segura". A criação de soluções específicas para a preservação do pulmão,(3) as novas técnicas de perfusão pulmonar, o controle da reperfusão, as estratégias e as alternativas de ventilação,(4,5) assim como a inclusão de aditivos e a utilização de captadores de radicais livres, prostanoides e terapia gênica, apenas para citar alguns, trouxeram a preservação pulmonar para a linha de frente como uma alternativa viável na ampliação das perspectivas de utilização de órgãos.
A utilização de "doadores marginais", cuja denominação refere-se aos portadores de pulmões que não preenchem os parâmetros ideais para doação, constitui-se em uma fonte alternativa de órgãos. A despeito de um aumento da mortalidade precoce (30 dias) nos receptores de órgãos obtidos de doadores marginais, se comparada aos receptores de órgãos de doadores com pulmões considerados ideais (17,5% e 6,5%, respectivamente),(6) órgãos de doadores marginais continuam sendo utilizados em situações específicas.
A doação pulmonar post mortem - após a parada cardiocirculatória (PCC) - considerada um verdadeiro tabu desde os primórdios do transplante, passou literalmente de medida desesperada para realidade clínica. Extensamente investigada em laboratório, teve sua aplicação clínica pioneira na Suécia há 10 anos.(7) Em um estudo recente, comparou-se a sobrevida de transplantados utilizando pulmões captados de doadores após PCC com a daqueles utilizando pulmões de doadores em morte cerebral. A sobrevida em seis meses, em um ano e em dois anos foi de 84%, 78% e 69% no primeiro grupo, respectivamente, e de 94%, 94% e 87% no segundo grupo.(8) Steen et al. desenvolveram o conceito de "recondicionamento pulmonar", no qual os pulmões extraídos são reaquecidos lentamente e submetidos a uma perfusão de baixo fluxo com uma solução desenvolvida pelo próprio autor. Essa perfusão de baixo fluxo com solução paucicelular hiperoncótica mostrou-se capaz de reverter o edema pulmonar e de melhorar as trocas gasosas ao mesmo tempo em que preserva os pulmões, permitindo assim que a equipe de transplante avalie a performance pulmonar do enxerto antes do implante. O autor realizou o primeiro transplante pulmonar a partir de pulmões inicialmente rejeitados, que foram recondicionados e transplantados 17 h mais tarde.(9) Sob a alcunha de "perfusão pulmonar ex vivo", o sistema foi utilizado, com sucesso, em outros seis pacientes pelo mesmo grupo recentemente. As vantagens adicionais desse processo incluem: períodos mais extensos de isquemia, permitindo a realização de todos os testes de compatibilidade do enxerto com o receptor; realização dos transplantes em horários diurnos e programáveis; e aumento substancial da disponibilidade de órgãos para transplante. Utilizando o mesmo processo, o grupo de transplante pulmonar da Universidade de Toronto relatou que a perfusão ex vivo, em pulmões humanos e de porcos, é exequível por períodos de até 12 h consecutivas. Outro relato do mesmo grupo concluiu que a perfusão ex vivo prolongada do enxerto resultou em um desempenho pulmonar superior após o transplante se comparada à perfusão convencional com solução preservadora e armazenamento hipotérmico.(10) Partindo-se da premissa de que 80% dos órgãos doados são considerados inadequados para o transplante, uma parcela desse manancial de órgãos poderá ser recondicionada e transplantada.
Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Pêgo-Fernandes et al.(11) inauguram a utilização pré-clinica da perfusão ex vivo em nosso meio utilizando pulmões rejeitados por critérios funcionais (gasometria e infecção) e captados para fins de pesquisa. Os resultados preliminares são simplesmente impressionantes, e repetem o que tem sido observado na literatura internacional. Há de se comemorar essa nova tecnologia, que vem de encontro à necessidade premente de um maior aproveitamento dos poucos doadores que dispomos para o transplante pulmonar, sobretudo em nosso meio, no qual o índice de aproveitamento de órgãos é baixo. Para todos nós, cirurgiões, clínicos e pesquisadores envolvidos com pesquisa clínica e experimental em transplantes, este talvez seja um momento único em que teremos todos juntos o privilégio de participar de um dos maiores avanços em preservação pulmonar desde a "fiel hipotermia", proposta inicialmente por Wilfred Bigelow em Toronto há mais de meio século.
Dedico este parágrafo final aos cirurgiões torácicos e pneumologistas brasileiros que, presentes em grande parte das publicações internacionais em transplantes pulmonares desde seus primórdios, têm contribuído significativamente para os avanços nas pesquisas em preservação pulmonar.
Paulo Francisco Guerreiro Cardoso
Professor Associado, Departamento de Cirurgia, Disciplina de Cirurgia Torácica,
Universidade Federal de Ciências da Saúde e Cirurgião Torácico do Pavilhão Pereira Filho, Santa Casa de Porto Alegre, Porto Alegre (RS) Brasil
Referências
1. Christie JD, Edwards LB, Aurora P, Dobbels F, Kirk R, Rahmel AO, et al. Registry of the International Society for Heart and Lung Transplantation: twenty-fifth official adult lung and heart/lung transplantation report--2008. J Heart Lung Transplant. 2008;27(9):957-69.
2. Fernandes PM, Samano MN, Junqueira JJ, Waisberg DR, Noleto GS, Jatene FB. Lung donor profile in the State of Sao Paulo, Brazil, in 2006. J Bras Pneumol. 2008;34(7):497-505.
3. Keshavjee SH, Yamazaki F, Cardoso PF, McRitchie DI, Patterson GA, Cooper JD. A method for safe twelve-hour pulmonary preservation. J Thorac Cardiovasc Surg. 1989;98(4):529-34.
4. Puskas JD, Hirai T, Christie N, Mayer E, Slutsky AS, Patterson GA. Reliable thirty-hour lung preservation by donor hyperinflation. J Thorac Cardiovasc Surg. 1992;104(4):1075-83.
5. Andrade CF, Martins LK, Tonietto TA, Koefender C, Anflor LC Jr, da Silva NB, et al. Partial liquid ventilation with perfluorodecalin following unilateral canine lung allotransplantation in non-heart-beating donors. J Heart Lung Transplant. 2004;23(2):242-51.
6. Pierre AF, Sekine Y, Hutcheon MA, Waddell TK, Keshavjee SH. Marginal donor lungs: a reassessment. J Thorac Cardiovasc Surg. 2002;123(3):421-7; discussion, 427-8.
7. Steen S, Sjöberg T, Pierre L, Liao Q, Eriksson L, Algotsson L. Transplantation of lungs from a non-heart-beating donor. Lancet. 2001;357(9259):825-9.
8. Mason DP, Thuita L, Alster JM, Murthy SC, Budev MM, Mehta AC, et al. Should lung transplantation be performed using donation after cardiac death? The United States experience. J Thorac Cardiovasc Surg. 2008;136(4):1061-6.
9. Steen S, Ingemansson R, Eriksson L, Pierre L, Algotsson L, Wierup P, et al. First human transplantation of a nonacceptable donor lung after reconditioning ex vivo. Ann Thorac Surg. 2007;83(6):2191-4.
10. Cypel M, Rubacha M, Yeung J, Hirayama S, Torbicki K, Madonik M, et al. Normothermic Ex Vivo Perfusion Prevents Lung Injury Compared to Extended Cold Preservation for Transplantation. Am J Transplant. 2009;9(10):2262-9. Epub 2009 Aug 6.
11. Pêgo-Fernandes PM, Medeiros IL, Mariani AW, Fernandes FG, Unterpertinger FV, Samano MN, et al. Ex vivo lung perfusion: initial Brazilian experience. J Bras Pneumol. 2009;35(11):1007-11.