A pneumonia é a 3ª causa de óbitos no mundo e a 1ª nos países com renda per capita baixa.(1) Responsabiliza-se por um grande número de internações hospitalares e elevado consumo de recursos destinados à saúde da população. No Brasil, alocado entre os países com renda per capita média-alta (US$ 3.976 a US$ 12.275), a pneumonia é a 4ª causa de óbitos.(1) Em 2009, a esperança de vida do brasileiro ao nascer aumentou para 73,2 anos (70 e 77 anos em homens e mulheres, respectivamente).(2) Dos 190 milhões de brasileiros, 7,6% têm idade ≥ 65 anos, um segmento da população com um maior número de comorbidades, mais susceptível às pneumonias e às suas complicações e sujeito a maiores taxas de mortalidade.(3) Das 722 mil internações hospitalares por pneumonia registradas no Brasil em 2011, 194 mil (27%) acometeram indivíduos com mais de 65 anos.(3) Dos 47 mil óbitos por pneumonia, 33 mil (70,2%) ocorreram em indivíduos nesse grupo etário.(3) Cerca de R$ 600 milhões foram destinados ao manejo das pneumonias, comparados aos R$ 240 milhões gastos com infarto agudo do miocárdio e R$ 126 milhões, com acidente vascular cerebral.(3)
O advento da penicilina e de outros antibióticos nos anos 40 produziu um efeito dramático no prognóstico de diversas infecções bacterianas, sobretudo da pneumonia pneumocócica, cujas taxas de mortalidade caíram de 25-35% para 5% nas décadas seguintes.(4) Estas observações despertaram um otimismo exagerado pelo tratamento das pneumonias, cujo foco foi direcionado ao patógeno e à antibioticoterapia. Nas décadas subsequentes, o fenômeno da resistência bacteriana e os fatores relacionados à resposta imune do hospedeiro ganharam destaque. A despeito dos avanços no conhecimento científico e das estratégias de imunização, a mortalidade por pneumonia adquirida na comunidade (PAC) permanece inalterada nas últimas cinco décadas. Atualmente, diversos conceitos sobre a patogenia das pneumonias têm sido revistos.(5) Enquanto a infecção resulta de um fenômeno microbiológico, a resposta inflamatória sistêmica traduz uma reação complexa do hospedeiro a estímulos diversos, dentre eles, a infecção. Fatores relacionados à senescência e à resposta imune do hospedeiro passaram a ser valorizados. A avaliação molecular da carga bacteriana, a produção de toxinas e o efeito imunomodulador de determinados antibióticos têm despertado o interesse. As estratégias terapêuticas guiadas por marcadores biológicos, além de permitir distinguir os pacientes de maior e de menor risco, mostram-se promissoras na tomada de decisões, sobretudo na redução do consumo de antibióticos (início da prescrição e tempo de uso), possibilitando reduzir a pressão seletiva, o custo do tratamento e eventuais efeitos adversos. A terapia adjuvante, que transcende o emprego de antibióticos - compreendendo reposição volêmica, oxigenoterapia, suporte ventilatório e hemodinâmico, controle de comorbidades descompensadas, correção de distúrbios eletrolíticos e abordagem precoce da sepse, dentre outras - tem valor prognóstico. Ainda que diversos estudos procurem demonstrar a eficácia da terapia empírica iniciada precocemente, comparável ao tratamento dirigido ao patógeno, existem muitas limitações na identificação da etiologia da PAC, sobretudo no momento da decisão terapêutica. O papel dos testes rápidos, a exemplo da pesquisa de antígenos urinários, ainda não está definido. A utilização de escores de gravidade permite estratificar pacientes por critérios de risco, além de definir o local de tratamento. Essa estratégia tem se mostrado útil em tratar pacientes de baixo risco em regime ambulatorial, além de propor ações mais efetivas e imediatas para aqueles de maior risco. Além disso, a identificação de critérios de estabilidade tem permitido a utilização da terapia sequencial e a alta hospitalar precoce.
Durante muitos anos, a prática médica assistencial esteve baseada em recomendações derivadas da opinião consensual de especialistas (consensos), sem que as evidências resultantes de estudos bem delineados fossem o foco principal. No presente, o conceito de diretrizes considera um conjunto de recomendações produzidas de forma sistemática por um grupo de especialistas, a partir de evidências disponíveis na literatura médica.(6) Têm por objetivo auxiliar os médicos na tomada de decisões em circunstâncias clínicas específicas. Sua implementação visa aprimorar a qualidade da assistência à saúde, mediante a redução da proporção de decisões inconsistentes, e conferir maior celeridade à incorporação dos avanços científicos e tecnológicos à prática médica. As diretrizes estimulam a pesquisa e ensejam a criação de protocolos adaptados à realidade local.(6) Devido à sua importância epidemiológica, a PAC tem sido um dos principais alvos das diretrizes. Muitas têm sido publicadas e sistematicamente atualizadas, sem que resultem em reais benefícios à prática assistencial. Diante disso, quanto ao espectro entre as recomendações baseadas em evidências e a implementação das diretrizes, há mais perguntas do que respostas.(7) A heterogeneidade dos estudos acarreta resultados conflitantes. Muitos desses são retrospectivos e observacionais, com um pequeno número de pacientes. Outros alocam subgrupos de pacientes (ambulatoriais, idosos ou internados em UTI) e utilizam escores de gravidade distintos e desfechos diversos. Alguns avaliam a antibioticoterapia como intervenção primária capaz de reduzir a mortalidade e o tempo de permanência hospitalar, o que é altamente questionável, enquanto outros abordam as variáveis clínicas. A mortalidade de pacientes de baixo risco costuma ser muito pequena. Seria necessário recrutar um número muito grande de pacientes para demonstrar o impacto da antibioticoterapia na mortalidade nesse subgrupo de indivíduos. Alguns estudos têm demonstrado que a adesão às recomendações das diretrizes, considerando os escores de gravidade, reduz as internações de pacientes de baixo risco(8) e que a antibioticoterapia empírica instituída precocemente diminui a mortalidade e tempo de permanência hospitalar.(9) No entanto, a análise de desfechos clínicos específicos com base na adesão às diretrizes é uma tarefa árdua e pode não ser a melhor forma de avaliar as recomendações. Vários estudos analisam desfechos clínicos distintos pré e pós-intervenção (implementação das diretrizes), com resultados contraditórios. Estudos randomizados e controlados, com populações de risco bem definidas, com a adoção sistemática de esquemas terapêuticos estandardizados e prescrições gerenciadas, considerando desfechos clínicos específicos, ainda não estão disponíveis. Além do baixo poder dos estudos em que se baseiam várias recomendações, a implementação de diretrizes aos protocolos assistenciais constitui um grande desafio.(10) Em uma revisão sistemática envolvendo 76 estudos elegíveis, foram identificadas 293 potenciais barreiras à implementação das diretrizes em 120 tipos distintos de inquéritos. Os autores enfatizam a necessidade de que os potenciais empecilhos locais devam ser considerados antes da implementação das diretrizes.(6)
No presente número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Silveira et al.(11) relatam um estudo observacional, cujo objetivo primário foi avaliar, de forma retrospectiva, a concordância entre os critérios de hospitalização utilizados na admissão de pacientes com PAC no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, no período entre 2005 e 2007, e aqueles da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, assim como sua associação com a mortalidade em 30 dias. Demonstrou-se a concordância entre as internações hospitalares e as recomendações das diretrizes brasileiras (versão 2004)(12) na maioria dos casos (73,2%). Dos pacientes avaliados, 66 (58,9%) receberam tratamentos concordantes com as diretrizes. Entretanto, para os admitidos em UTI, essa proporção caiu para 43,8%. A antibioticoterapia adequada ocorreu em apenas 58,9% dos casos, e 21,4% foram tratados com um beta-lactâmico isoladamente, esquema considerado discordante. A taxa de mortalidade em 30 dias foi de 12,3%, e 10 dos pacientes (76,9%) que foram a óbito tinham idade ≥ 65 anos. A mortalidade em 12 meses foi de 19,4%. A despeito do mérito do estudo, há algumas limitações, várias delas associadas ao caráter retrospectivo observacional. Dos 709 pacientes admitidos com o diagnóstico de PAC, 357 (50,4%) foram excluídos, 133 não possuíam exames radiológicos disponíveis, e 31 não apresentaram alterações radiológicas compatíveis com o diagnóstico de pneumonia. A amostra final do estudo ficou restrita a 112 pacientes, com média de idade de 57,3 anos (mediana de 56 anos); 42 (37,5%) com idade ≥ 65 anos. O pequeno número de pacientes com idade ≥ 65 anos pode ter interferido nas taxas de mortalidade. A perda significativa de informações em prontuários pode ter permitido a inserção inadvertida de indivíduos com pneumonia nosocomial ou associada a cuidados de saúde. Além disso, o tempo decorrido até o início da antibioticoterapia, o tempo total de tratamento e a adesão ao mesmo após a alta não foram avaliados, acarretando possíveis inconsistências na proporção de mortalidade. Ademais, a natureza unicêntrica do estudo impede a generalização de seus resultados. Todavia, deve-se louvar a iniciativa dos autores em descrever comportamentos e atitudes perante pacientes com PAC em uma instituição universitária no Brasil, o que estimula a discussão da complexidade e dos diversos fatores envolvidos na elaboração e implementação de diretrizes assistenciais. A evolução do conhecimento científico irá permitir o aprimoramento das evidências em que se baseiam as recomendações emanadas das diretrizes sobre PAC, assim como irá promover estratégias mais efetivas à sua implementação e facilitar a imprescindível adesão.
Jorge Luiz Pereira-Silva
Professor Associado,
Disciplina de Pneumologia, Departamento de Medicina
Interna e Apoio Diagnóstico,
Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia,
Salvador (BA) Brasil
Referências
1. World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: World Health Organization [cited 2012 Mar 12]. The top 10 causes of death. Available from: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs310/en/index.html
2. World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: World Health Organization [cited 2012 Mar 12]. World Heath Statistics 2011. Available from: http://www.who.int/gho/publications/world_health_statistics/en/index.html
3. Ministério da Saúde do Brasil. Departamento de Informática do SUS [homepage on the Internet]. Brasília: DATASUS [cited 2012 Mar 12]. Sistema e Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS). Available from: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0205&VObj=http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10.
4. Austrian R, Gold J. Pneumococcal bacteremia with especial reference to bacteremic pneumococcal pneumonia. Ann Intern Med. 1964;60:759-76. PMid:14156606.
5. Waterer GW, Rello J, Wunderink RG. Management of community-acquired pneumonia in adults. Am J Respir Crit Care Med. 2011;183(2):157-64. PMid:20693379. http://dx.doi.org/10.1164/rccm.201002-0272CI
6. Cabana MD, Rand CS, Powe NR, Wu AW, Wilson MH, Abboud PA, et al. Why don't physicians follow clinical practice guidelines? A framework for Improvement. JAMA. 1999;282(15):1458-65. http://dx.doi.org/10.1001/jama.282.15.1458
7. Ewig S, Welte T. Evaluation of guidelines for community-acquired pneumonia: a story of confounders, surprises and challenges. Eur Respir J. 2008;32(4):823-5. PMid:18827148. http://dx.doi.org/10.1183/09031936.00105008
8. Atlas SJ, Benzer TI, Borowsky LH, Chang Y, Burnham DC, Metlay JP, et al. Safely increasing the proportion of patients with community-acquired pneumonia treated as outpatients: an interventional trial. Arch Intern Med. 1998;158(12):1350-6. PMid:9645830. http://dx.doi.org/10.1001/archinte.158.12.1350
9. Dambrava PG, Torres A, Vallès X, Mensa J, Marcos MA, Peñarroja G, et al. Adherence to guidelines' empirical antibiotic recommendations and community-acquired pneumonia outcome. Eur Respir J. 2008;32(4):892-901. PMid:18550608. http://dx.doi.org/10.1183/09031936.00163407
10. Blasi F, Iori I, Bulfoni A, Corrao S, Costantino S, Legnani D. Can CAP guideline adherence improve patient outcome in internal medicine departments? Eur Respir J. 2008;32(4):902-10. Erratum in Eur Respir J. 2009;33(1):223. PMid:18508826. http://dx.doi.org/10.1183/09031936.00092607
11. Silveira CD, Ferreira CS, Correa RA. Adherence to guidelines and its impact on outcomes in patients hospitalized with community-acquired pneumonia at a university hospital. J Bras Pneumol. 2012;38(2):148-157.
12. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Diretrizes para Pneumonias Adqüiridas na Comunidade (PAC) em Adultos Imunocompetentes. J Pneumol. 2004;30(Suppl 4):S1-S24.