Do ponto de vista do conhecimento, o passar dos anos ou, como diria de forma eufêmica, a senescência, nos causa alguns dissabores. Limitações físicas, doenças degenerativas, perda da memória recente e, para os mais envaidecidos, a tortura do encanecer dos cabelos ou seu desaparecimento, além de outras mazelas.
O passar dos anos tem, todavia, uma série de vantagens, tais como a experiência acumulada, o amadurecimento, um maior discernimento das ideias, a convivência com mestres competentes e, em especial, se continuarmos estudando, uma visão histórica dos fenômenos, daquilo que é falso ou correto, do que foi superado pelos avanços persistentes e continuados da ciência. Venho vivenciando isso com a tuberculose, endemia que estudo e combato há cerca de 40 anos.
Esta introdução se faz necessária para comentar o artigo publicado, neste número do JBP, por Silva et al.(1)
Convivi com profissionais de uma época em que a tuberculose não tinha um tratamento curativo, mas sim o isolamento sanatorial, no período intervencionista cirúrgico mutilante da colapsoterapia e das ressecções pulmonares. Assisti os primeiros passos do tratamento quimioterápico, da vacinação BCG, até a emergência das drogas e associações mais potentes contra o Mycobacterium tuberculosis.(2)
Meu batismo deu-se na disputa entre clínicos e epidemiologistas sobre as prioridades das estratégias e recursos no Programa de Controle da Tuberculose. Logo aceitei o entendimento de que o combate deveria ocorrer na atividade periférica da atenção à saúde, da necessidade de horizontalização das ações, combate esse articulado com a hierarquização das condutas.(3) Assumi uma posição eclética e conciliadora, propondo uma convivência harmônica entre esses especialistas, na crença de que a coligação seria benéfica para o controle da epidemia.
Aprendi com Milton Fontes Magarão que a diversidade da tuberculose no mundo se deve a "fatores de várias naturezas, sociais, econômicas, hábitos ou limitações alimentares, influências do meio ambiente ainda pouco conhecidas no que se referem às micobactérias e às variações de comportamento por elas apresentadas nas diferentes regiões geográficas ou nos complexos ecológicos (...)".(4)
Por fim, assisti a simbiótica e funesta interação entre a endemia da tuberculose e a pandemia de HIV/AIDS, a re-emergência da doença no primeiro mundo e sua continuidade em altos índices nos países pobres. Compreendi que, entre esses polos, há um grupo intermediário de países, como o nosso, onde a tuberculose ainda existe com alta carga, mas com baixa prevalência, apresentando uma regressão consistente nas últimas décadas, tal como propõe Caminero Luna.(5)
Ocorreu, entretanto, uma série de radicalismos e visões estreitas de parte a parte: a abordagem quase exclusiva do eliminador de bacilo, ou seja, do portador de escarro positivo; o clamor do retorno da abordagem do paciente com tuberculose para pneumologistas.; o debate entre a baciloscopia e a radiologia; e tantas outras. Sabe-se que pacientes negativos no exame direto com cultura positiva são também transmissores, especialmente para contatos com imunidade baixa. Há aqueles que têm dificuldades de expectoração, especialmente as mulheres.
Normas técnicas simples, objetivas e bem elaboradas(6) podem ser assumidas por clínicos da atenção básica em conjunto com a equipe multiprofissional treinada persistentemente.
Acompanhei uma progressiva mudança do perfil da doença e seu declínio nessas últimas décadas no Brasil, retratadas em estudos históricos, como a revisão da década de 1980,(7) dos anos 1990 e início da década atual(8) e em diversos outros períodos, acompanhando a queda da mortalidade e a evolução da tuberculose nos estados.
Se a pandemia de HIV/AIDS incorporou malefícios terríveis para a humanidade, essa acabou se constituindo um desafio para a ciência, assim como para estudiosos e planejadores da saúde. Os avanços provocados pela necessidade de combate à virose foram e continuam sendo uma fonte de inspiração para avanços formidáveis.
Entretanto, os imunossuprimidos pelo vírus não são únicos, pois há outros deficientes que também apresentam riscos variáveis de associação com a tuberculose. Creio ser esse o mérito básico do artigo acima citado, o qual alerta para casos de outras doenças e situações de imunidade rebaixada que não os infectados pelo HIV, como é o caso dos idosos e dos portadores de diabetes, neoplasias, leucoses, assim como dos usuários de drogas imunossupressoras.
O estudo dá claras indicações de que, nos dias atuais, a atenção periférica e primária não basta. É preciso alocar especialistas em referências secundárias e terciárias, como é o caso do aparelho hospitalar para a atenção de casos com complexidade crescente, contando, para isso, com orientações de consensos e diretrizes, organizados por sociedades especializadas, que tomem por base estudos consistentes.(9)
Esses fatos provocam ainda novas questões, seja a necessidade de formação de agrupamentos de técnicos com experiência clínica, seja a necessidade de instituições com recursos laboratoriais complexos, que empreguem metodologia genética e proteômica, capazes de avaliar a imunopatogenicidade da doença e as defesas do doente, assim como a susceptibilidade dos contatos, a virulência e a transmissibilidade bacilar. É salutar a formação de redes e grupos de estudo da doença, associando profissionais de diversos matizes, e o esforço pela interação entre serviços e universidades. Por fim, a tuberculose coloca na ordem do dia dos programas de controles, nacional e estaduais, o treinamento de profissionais do setor terciário - hospitais, serviços emergenciais e de atendimento clínico especializados - capacitando-os na investigação de tuberculose.
Fernando Augusto Fiuza de Melo
Diretor Técnico do Instituto Clemente Ferreira, São Paulo (SP) Brasil
Membro do Comitê Técnico de Assessoria Científica do Plano Nacional de Combate à Tuberculose, Ministério da Saúde, Brasília (DF) Brasil
Doutor em Medicina, na área de Pneumologia, pela Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Referências
1. Silva DR, Menegotto DM, Shulz LF, Gazzana MB, Dalcin PT. Clinical characteristics and evolution of non-HIV-infected immunocompromised patients with an in-hospital diagnosis of tuberculosis. J Bras Pneumol. 2010;36(4):475-84.
2. Leão SC, Portaels F. History. In: Palomino JC, Leão SC, Ritacco V, editors. Tuberculosis 2007: From Basic Science to Patient Care. FlyingPublisher; 2007. p.25‑51.
3. Brasil. Ministério da Saúde. Divisão Nacional de Tuberculose; Comissão Técnica da Campanha Nacional Contra a Tuberculose. Ação anti-tuberculose em nível nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde; 1975.
4. Magarão MF. Variações sobre o Mycobacterium tuberculosis. O Complexo Mycobacterium tuberculosis. Rio de Janeiro:Fundação Ataulpho de Paiva; 1980.
5. Caminero Luna JA. Guía de la Tuberculosis para Médicos Especialistas. Paris: Unión Internacional Contra la Tuberculosis y Enfermedades Respiratorias; 2003.
6. Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Tuberculose: Guia de Vigilância Epidemiológica. Brasília: Fundação Nacional de Saúde; 2002.
7. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Centro de Referência Prof. Hélio Fraga. Documento Básico da Reunião de Avaliação Operacional e Epidemiológica do PNCT na Década de 80. Bol Pneumol Sanit. 1993.
8. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Centro de Referência Prof. Hélio Fraga. Análise da situação da tuberculose no Brasil nos anos 90 e início da década atual. Bol Pneumol Sanit. 2005;13:133-179.
9. Comissão de Tuberculose da SBPT; Grupo de Trabalho das Diretrizes para Tuberculose da SBPT. III Diretrizes para Tuberculose da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. J Bras Pneumol. 2009;35(10):1018-1048.