RESUMO
Objetivo: Descrever as taxas de cura, falência e abandono do tratamento da tuberculose com o esquema básico preconizado pelo Ministério da Saúde (tratamento com rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol por dois meses seguido de isoniazida e rifampicina por quatro meses) utilizando comprimidos em dose fixa combinada em regime autoadministrado e descrever os eventos adversos e seus possíveis impactos nos desfechos do tratamento. Métodos: Estudo descritivo utilizando dados coletados prospectivamente dos prontuários médicos de pacientes com tuberculose (idade ≥ 18 anos) tratados com o esquema básico em duas unidades básicas de saúde da região metropolitana de Goiânia, GO. Resultados: A amostra foi composta por 40 pacientes com tuberculose. A taxa de cura foi de 67,5%, a taxa de abandono foi de 17,5%, e não ocorreram casos de falência. Nessa amostra, 19 pacientes (47%) relataram reações adversas aos medicamentos. Essas foram leves e moderadas, respectivamente, em 87% e 13% dos casos. Em nenhum caso houve necessidade de mudança do esquema ou suspensão do tratamento. Conclusões: A taxa de cura do esquema básico com o uso de comprimidos em dose fixa combinada sob regime autoadministrado foi semelhante às taxas históricas do esquema anterior. A taxa de abandono, na amostra estudada, foi muito acima da taxa preconizada como adequada (até 5%).
Palavras-chave:
Tuberculose; Resultado de tratamento; Combinação de medicamentos.
IntroduçãoO esquema de tratamento da tuberculose tem eficácia de aproximadamente 95% e reduz rapidamente a transmissão da doença, quebrando seu ciclo.(1) Embora a distribuição da medicação no Brasil seja gratuita, a efetividade do tratamento da tuberculose varia muito nos diferentes locais.(2) Problemas nos variados níveis de adesão ao tratamento, como, por exemplo, o uso errado ou irregular do medicamento e o abandono do tratamento, podem ser apontados como fatores importantes que afetam a efetividade e, consequentemente, o controle da tuberculose no Brasil.(3)
Apesar das normas técnicas do Programa Nacional de Controle da Tuberculose, fatores como as desigualdades sociais, a fragilidade do Sistema Público de Saúde e as deficiências de gestão, fazem com que as metas pactuadas com a Organização Mundial da Saúde (OMS) não sejam completamente alcançadas no Brasil.(4)
De 2005 até 2010, no estado de Goiás, a cura como situação de encerramento para casos novos de tuberculose foi de 74,2% para 70,8%, o desfecho falência permaneceu constante (0,1%), e o abandono foi de 9,8% para 7,1%. Deve-se ter em conta que Goiás apresenta uma das menores taxas de incidência de tuberculose no país, com 13 casos para cada 100.000 habitantes (dados internos da Secretaria de Saúde do Estado de Goiás), enquanto a média no Brasil é de 38 casos para cada 100.000 habitantes.(5)
Em 2010, em função dos dados do II Inquérito Nacional de Resistência aos Fármacos antituberculose (2007-2008), que indicou um aumento da taxa de resistência primária à isoniazida e à rifampicina, respectivamente, de 3,5% para 6,0% e de 0,2% para 1,5% entre os anos de 1997 e 2007,(6,7) o Programa Nacional de Controle da Tuberculose decidiu por mudar o esquema utilizado - rifampicina, isoniazida e pirazinamida nos dois primeiros meses seguido de isoniazida e rifampicina por quatro meses (2RHZ/4RH) - com o acréscimo de um quarto fármaco (etambutol) à fase intensiva do tratamento da tuberculose, que passou a ser 2RHZE/4RH. Simultaneamente, foi também mudada a apresentação de cápsulas (contendo rifampicina e isoniazida e associadas aos comprimidos de pirazinamida) para comprimidos compostos por rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol em dose fixa combinada (DFC).(7)
A utilização de medicamentos combinados em um único comprimido é recomendada pela OMS como uma medida adicional para aumentar a adesão ao tratamento da tuberculose.(8,9) Essa apresentação farmacêutica facilita a gestão das medicações, diminui o erro de prescrição e diminui o risco de monoterapia, além de diminuir a quantidade de comprimidos a serem ingeridos. Entretanto, seu uso não atua no abandono nem no uso irregular da medicação.(7,8)
O objetivo principal do presente trabalho foi descrever os desfechos clínicos do tratamento com o esquema 2RHZE/4RH utilizando comprimidos em DFC sob o regime autoadministrado na rotina de Unidades Básicas de Saúde (UBS) na região metropolitana de Goiânia, GO. O objetivo secundário foi descrever os eventos adversos e seu possível impacto nos desfechos do tratamento.
MétodosEstudo descritivo utilizando dados secundários de pacientes atendidos no Centro de Referência em Diagnóstico e Terapêutica e Cais Nova Era, que são UBS localizadas na região metropolitana de Goiânia. Foram incluídos no estudo os pacientes atendidos no período entre novembro de 2010 e outubro de 2011 que atendiam os seguintes critérios de inclusão: ter idade 18 anos e estar em inicio de tratamento da tuberculose com o esquema básico. Foram excluídos do estudo os pacientes que foram transferidos para outra UBS que não as listadas acima ou cujas informações não estavam accessíveis no prontuário médico.
O instrumento de coleta de dados utilizado foi desenvolvido e pré-testado para o presente estudo.(10) A capacidade do instrumento de coleta de dados em produzir informações relacionadas às variáveis de interesse foi confirmada durante preenchimentos teste utilizando prontuários de pacientes anteriormente tratados de tuberculose com desfecho clínico do tratamento conhecido. Após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido pelos participantes, o instrumento foi preenchido uma vez por mês, a partir de dados contidos nos prontuários, sempre pela mesma pessoa.
As informações coletadas foram as seguintes: dados pessoais; tipo de diagnóstico (pesquisa de BAAR no escarro, cultura para Mycobacterium tuberculosis no escarro, exame histopatológico ou probabilidade clínica); tipo de caso de tuberculose (novo, retratamento ou recidiva); forma clínica de tuberculose; comorbidades; resultados da sorologia para HIV; esquema de tratamento adotado; tempo de tratamento; regime de tratamento; resultado da pesquisa de BAAR no escarro no segundo mês de tratamento; mudanças no esquema de tratamento inicialmente prescrito; apresentação farmacêutica em uso; assiduidade às consultas médicas; reações adversas relatadas; classificação das reações adversas; e desfecho clínico.
Foi definido como caso de tuberculose pulmonar aquele cujo paciente apresentava suspeita clínica de tuberculose e as seguintes situações: dois resultados positivos na pesquisa direta de BAAR no escarro ou um resultado positivo na pesquisa de BAAR no escarro em conjunto com alterações sugestivas de tuberculose na radiografia de tórax ou um resultado positivo na pesquisa de BAAR no escarro e uma cultura positiva para M. tuberculosis ou um resultado positivo na pesquisa de BAAR no lavado broncoalveolar ou ainda diagnóstico presumido por médico sem confirmação bacteriológica e indicação de tratamento.(11) Foi definido como caso de tuberculose extrapulmonar aquele cujo paciente apresentava confirmação bacteriológica ou histológica ou diagnóstico médico de tuberculose em local diferente do pulmão.(11)
Conforme a definição da OMS,(11) foram utilizados os seguintes desfechos clínicos: cura, paciente com resultado negativo na pesquisa de BAAR no escarro no último mês de tratamento ou em pelo menos uma ocasião prévia; tratamento completado, paciente que completou o tratamento e que não preenche a definição de alta por cura; abandono, interrupção de tratamento por dois meses ou mais; falência, paciente com resultado positivo na pesquisa de BAAR no quinto mês ou posteriormente durante o tratamento; óbito, óbito durante o tratamento por qualquer motivo; mudança de diagnóstico, troca do diagnóstico inicial de tuberculose por qualquer outro diagnóstico; transferência, paciente transferido para outro município; e sucesso de tratamento, soma dos desfechos cura e tratamento completado.
Foram consideradas reações adversas os sinais e sintomas, previamente descritos,(12) que ocorreram após o início do uso da medicação para o tratamento da tuberculose durante os primeiros dois meses do tratamento que foram relatados no prontuário do paciente. As reações adversas durante a fase intensiva do tratamento foram classificadas de acordo com os conceitos e critérios de gravidade descritos segundo o National Institutes of Health.(13)
Os medicamentos utilizados pelos pacientes no estudo foram todos fornecidos pelo Ministério da Saúde do Brasil seguindo o esquema 2RHZE/4RH, ou seja, a fase intensiva (dois meses) consistiu do uso oral de comprimidos em DFC dos fármacos rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol, respectivamente, nas seguintes doses por comprimido: 150 mg; 75 mg; 400 mg; e 275 mg, sendo que as doses máximas diárias de isoniazida e de pirazinamida eram de, respectivamente, 300 mg/dia e 1.600 mg/dia, enquanto a fase de manutenção (quatro meses) consistiu do uso oral de rifampicina e isoniazida em cápsulas. Foram utilizadas cápsulas de rifampicina e isoniazida nas doses de 300 mg e 200 mg, respectivamente, ou de 150 mg e 100 mg. A dose máxima diária de isoniazida era de 400 mg.
Para testar a hipótese de que o esquema 2RHZE/4RH apresenta o desfecho clínico de sucesso de tratamento de forma semelhante ao esquema 2RHZ/4RH, foi realizado o cálculo amostral. Utilizando a média nacional da taxa de sucesso de tratamento de 70%, a qual coincide com a do estado de Goiás e da região metropolitana de Goiânia, com um nível de significância de 5% e um poder do teste de 90%, seria necessária uma amostra de 38 indivíduos para se detectar uma diferença percentual de até 25% em ambas as direções.(14)
Os resultados foram analisados com o programa STATA, versão 11.0 (Stata Corp., College Station, TX, EUA). Os dados foram descritos em termos de média, mediana, intervalo interquartílico e desvio-padrão. O teste t foi utilizado para a comparação de médias das variáveis contínuas. Foram calculados os riscos relativos não ajustados com seus respectivos intervalos de confiança através de regressão logística univariada. Quando indicado, realizou-se a regressão logística multivariada para ajustar a associação entre o desfecho e cada variável independente. Utilizou-se teste de Kruskal-Wallis para a comparação de medianas. Para todos os testes, valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
O estudo foi apresentado para as diretorias técnicas das UBS envolvidas e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Humana e Animal do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás sob o número 157/2010.
ResultadosForam estudados 40 indivíduos que se submeteram ao tratamento de tuberculose com o esquema 2RHZE/4RH em regime autoadministrado. A maioria era do sexo masculino (72,5%) e tinha idade entre 18 e 44 anos. A forma clínica de tuberculose mais frequente foi a pulmonar (92,5%), e apenas 2 casos (5%) eram de recidiva de tuberculose. A forma extrapulmonar ocorreu em 3 pacientes (7,5%) e todos tinham tuberculose pleural (Tabela 1). Em 23 pacientes (57,5%), o diagnóstico foi realizado através da baciloscopia de escarro positiva, enquanto em 4, 4, 1 e 8 pacientes, respectivamente, esse foi realizado a partir da baciloscopia positiva no lavado broncoalveolar, por exame histopatológico de fragmento pulmonar ou pleural, por cultura de escarro positiva para M. tuberculosis e por diagnóstico de probabilidade clínica. Dos 23 indivíduos com baciloscopia de escarro positiva, 20 (87%) apresentaram resultados negativos para BAAR ao final do segundo mês de tratamento, enquanto 2 (8,7%) ainda apresentavam baciloscopia positiva no final do segundo mês e 1 (4,3%) não apresentava resultado da baciloscopia ao final do segundo mês. A mediana de retornos para consulta médica foi de 5,4 ± 1,3 por indivíduo e de 1,1 ± 0,4 por mês.
Na amostra estudada, 14 pacientes (35%) apresentaram alguma comorbidade, sendo diabetes mellitus a mais frequente (12,5%; Tabela 2). Havia a indicação de solicitação de sorologia para HIV em todos os incluídos, mas essa foi solicitada em apenas 32 (80,0%), e somente havia resultados disponíveis em 21 (65,6%).
A taxa de sucesso de tratamento (cura e tratamento completado) foi de 67,5%, e a taxa de abandono foi de 17,5% (Tabela 3). Não foi observado nenhum caso de falência. Em 4 pacientes (10%), houve mudança de diagnóstico, sendo diagnóstico de micobacteriose atípica em 3 e não havia relato no prontuário do novo diagnóstico em 1. Dois pacientes (5%) foram a óbito, mas esses óbitos não foram relacionados à tuberculose ou ao tratamento. Não se observaram efeitos na taxa de sucesso do tratamento em relação à presença de comorbidades (OR = 1,09; IC95%: 0,65-1,84; p = 0,74), à presença de reações adversas (OR = 2,8; IC95%: 0,69-11,4; p = 0,15) ou em relação ao gênero (OR = 0,3; IC95%: 0,05-1,70; p = 0,17). As medianas de idade não diferiram estatisticamente entre os desfechos sucesso de tratamento, abandono e a combinação entre os desfechos óbito e mudança de diagnóstico.
Do total, 19 pacientes (47,5%) apresentaram uma ou mais reações adversas relacionadas aos medicamentos em comprimidos em DFC na fase intensiva, num total de 31 ocorrências. Agrupadas por sistemas, as reações adversas relacionadas ao sistema digestivo (63,2%) e à pele (42,1%) foram as mais frequentes, e não houve necessidade de modificação do esquema de tratamento (Tabela 4). O sexo feminino estava associado à presença de reação adversa, mesmo após o ajuste por idade e presença de comorbidade (OR = 10,8; IC95%: 1,67-70,2; p = 0,01). Não houve diferenças estatisticamente significativas entre as médias de idade dos indivíduos com e sem reações adversas (p = 0,18), nem foi observada uma influência da presença de comorbidades no aparecimento dessas reações (OR = 1,08; IC95%: 0,65-1,78; p = 0,76).
DiscussãoA taxa de sucesso de tratamento do esquema 2RHZE/4RH em DFC encontrada no estudo (67,5%) foi semelhante à de outros estudos brasileiros (61,2% e 68,6%) que usaram o esquema 2RHZ/4RH em cápsulas contendo a combinação rifampicina e isoniazida associadas a comprimidos de pirazinamida.(15,16) Estudos controlados, realizados fora do Brasil e delineados para comparar o uso do esquema 2RHZE/4RH em comprimidos em DFC na fase intensiva com o uso dessas mesmas medicações em comprimidos separados, demonstraram taxas de cura que variaram de 80,4 a 95,0% e semelhança das taxas de cura entre os dois grupos.(17-19)
Na amostra estudada, o fator mais associado à baixa taxa de sucesso terapêutico foi a alta taxa de abandono (17,5%), visto que o desfecho transferência não ocorreu. As taxas de abandono, tanto a nacional(20) quanto a municipal (dados internos da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia), são inferiores às aqui encontradas, estando próximas a 12% e 10%, respectivamente, nos últimos 5 anos. Essa diferença deve ser analisada considerando-se a influência do desfecho transferência nos indicadores provenientes do banco de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), com a piora do percentual de cura e a melhora do percentual de abandono.
No presente estudo, o abandono, apesar de alto, foi menor que o demonstrado em dois estudos no Brasil, com taxas de 22% e 27,3%, respectivamente.(15,21) No estudo de Rabahi et al.,(15) além de haver uma elevada incidência de abandono, relacionou-se o abandono com a ocorrência de retratamento, hospitalização, uso de regime de tratamento de tuberculose diferente do preconizado pelo Ministério da Saúde do Brasil e não inclusão no programa de acompanhamento do tratamento. No presente estudo, o abandono não foi relacionado a outras variáveis porque a amostra foi insuficiente para esse tipo de análise.
A OMS sugere a utilização da apresentação em DFC com quatro comprimidos diários, tanto na fase intensiva quanto na fase de manutenção do tratamento. Observando que o esquema 2RHZ/4RH utilizava quatro comprimidos e duas cápsulas (total de seis) na fase inicial do tratamento da tuberculose, há uma redução do número de comprimidos a serem ingeridos nessa fase do tratamento. Uma vez que, no Brasil, a isoniazida e a rifampicina têm uma apresentação combinada e que, durante a fase de manutenção do esquema 2RHZ/4RH, há a ingesta de duas cápsulas dessa apresentação combinada por dia, o uso da apresentação em DFC aumenta a quantidade de comprimidos durante essa fase do tratamento. Portanto, no Brasil, a utilização de comprimidos em DFC não reduziu o número total de comprimidos.
No presente estudo, foi avaliado o esquema 2RHZE/4RH em comprimidos em DFC. No entanto, essa apresentação farmacêutica foi usada apenas na primeira fase do tratamento; na segunda fase, utilizou-se a apresentação combinada de rifampicina e isoniazida, pois os comprimidos em DFC ainda não estavam disponíveis para essa fase do tratamento na rede. Dessa forma, especificamente em nosso estudo, houve uma redução no número total de comprimidos ingeridos. Contudo, as taxas de sucesso e de abandono de tratamento foram de 67,5% e 17,5%, respectivamente, ou seja, essas foram semelhantes às encontradas no esquema anterior. Esses dados sugerem fortemente que a utilização de comprimidos em DFC possa não ter um impacto significativo na adesão ao tratamento. Assim, medidas para aumentar a adesão, como, por exemplo, o tratamento supervisionado, não podem ser negligenciadas.
No Brasil, foi demonstrado que ser do sexo masculino, apresentar abandono prévio e ser submetido a tratamento não supervisionado são preditores de abandono.(16) A OMS preconiza o tratamento supervisionado como uma das estratégias para diminuir o abandono.(9) Em um ensaio clínico, no qual essa estratégia foi utilizada para garantir a adesão aos tratamentos em estudo, houve uma taxa de adesão de 95%, independentemente da apresentação farmacêutica utilizada.(17) Adicionalmente, estudos nacionais também demonstraram a associação entre menor taxa de abandono e tratamento supervisionado.(21-23)
Um grupo de autores(21) mostrou melhora no abandono mesmo sob regime semissupervisionado, constatação importante diante do elevado encargo financeiro que o tratamento diretamente supervisionado pode representar para o paciente, principalmente aquele da camada social mais pobre.(24) Esse alto custo do tratamento diretamente supervisionado, provavelmente, contribui para as insuficientes taxas de sucesso terapêutico do tratamento supervisionado no Brasil, que estão abaixo dos 85% recomendados pela OMS.(24)
A frequência de reações adversas na fase intensiva do tratamento da tuberculose foi de 47,5% em nosso estudo. As reações adversas relacionadas ao sistema digestivo e à pele foram as mais frequentes. Não houve ocorrência de reações adversas graves ou de modificação do tratamento como consequência de manifestações de reações adversas. Especificamente, não foram relatadas reações adversas oftalmológicas, que poderiam estar associadas ao fármaco do novo esquema, o etambutol. De fato, a principal reação adversa ao etambutol (neurite óptica retrobulbar) é rara nas doses e no tempo utilizados habitualmente para o tratamento da tuberculose.(12) Porém, é importante salientar que o tamanho da amostra não tem poder para identificar reações incomuns, além da limitação do estudo relacionada ao viés de informação.
As reações adversas contribuem para a mudança de tratamento, o abandono, o aumento dos custos, a falência do tratamento e até o óbito nas condições mais graves.(25) No Brasil, historicamente, a incidência de eventos adversos menores em pacientes tratados com o esquema utilizando rifampicina, isoniazida e pirazinamida varia de 5% a 20%, enquanto a de eventos adversos maiores varia de 2% a 8%.(26) Não se conhece a frequência ou a gravidade das reações adversas do tratamento com o novo esquema, utilizando os fármacos em comprimidos em DFC, na população brasileira.
Estudos controlados demonstraram uma incidência semelhante ou menor de reações adversas desse esquema com comprimidos em DFC em comparação com uso da mesma medicação em comprimidos individuais.(17-19) Em dois desses estudos, nos grupos tratados com comprimidos em DFC, também não ocorreram reações adversas graves ou necessidade de modificação do tratamento em virtude da ocorrência de reações adversas.(17,19)
Um estudo prospectivo descritivo realizado em Vitoria, ES, com 79 pacientes com tuberculose, referiu a ocorrência de reações adversas em 83% dos pacientes tratados com esse esquema com a utilização dos fármacos individualizados. As reações adversas osteomusculares foram as mais frequentes (24,94%), seguidas das cutâneas (22,09%).(27)
Não foi demonstrada, na presente amostra, uma relação da maior incidência de reações adversas com a idade ou a presença de comorbidades. Entretanto, o gênero feminino correlacionou-se à manifestação de reações adversas, mesmo após o ajuste por idade e presença de comorbidades. Essa relação também já foi relatada, por outros autores, para reações adversas maiores.(28) Contudo, está bem definido que a dose, os horários de administração da medicação, a idade, o estado nutricional e a soropositividade para HIV são fatores relacionados às reações adversas dos tuberculostáticos.(25)
A amostra estudada foi obtida em duas UBS, nas quais não se observou falta de medicamento, mas onde há falta de recursos humanos treinados efetivamente para tratar e diagnosticar tuberculose, carência estrutural e laboratorial, além de ausência de qualquer tipo de supervisão do tratamento. Nessa realidade, é questionável a ausência do desfecho falência, mas, provavelmente, nenhum caso de falência foi detectado, pois é baixa a ocorrência de falência na região estudada.
Uma limitação da presente amostra foi a inclusão de indivíduos com diagnóstico de tuberculose definido por diferentes meios diagnósticos e a inclusão de pacientes com tuberculose sem distinção do estágio da doença ou da forma clínica. Essa heterogeneidade da amostra, somada às deficiências das UBS, pode ser a explicação do alto percentual do desfecho mudança de diagnóstico (10%).
Outra limitação do estudo é o fato de a amostra ser constituída apenas por pacientes tratados em UBS e, por esse motivo, suas conclusões podem não ser aplicáveis a outras unidades de maior complexidade ou de outras regiões. Entretanto, em um estudo realizado em um hospital terciário, referência da região Centro-Oeste para o tratamento de doenças infectocontagiosas, foram obtidos resultados comparáveis de abandono e cura.(15)
Em conclusão, as taxas de cura do tratamento com o esquema 2RHZE/4RH utilizando-se comprimidos em DFC em regime autoadministrado foram semelhantes àquelas do tratamento com o esquema 2RHZ/4RH utilizando-se cápsulas e comprimidos separados, essas últimas obtidas a partir de dados do SINAN e de estudos no Brasil. A taxa de abandono, na amostra estudada, foi muito acima da preconizada como adequada (até 5%).(9)
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* Trabalho realizado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública, Universidade Federal de Goiás - IPTSP/UFG - Goiânia (GO) Brasil.
Endereço para correspondência: Anna Carolina Galvão Ferreira. Rua T-30, número 1081, apto. 602, Setor Bueno, CEP 74210-060, Goiânia, GO, Brasil.
Tel. 55 62 3219-7114. E-mail: annacarolgalvao@gmail.com
Apoio financeiro: Anna C. G. Ferreira recebeu bolsa de formação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG).
Recebido para publicação em 2/6/2012. Aprovado, após revisão, em 1/10/2012.
Sobre os autoresAnna Carolina Galvão Ferreira
Mestranda em Medicina Tropical e Saúde Pública. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública, Universidade Federal de Goiás - IPTSP/UFG -; Professora Convidada. Departamento de Medicina, Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUCGO - Goiânia (GO) Brasil.
José Laerte Rodrigues da Silva Júnior
Professor. Curso de Medicina, Centro Universitário UnirG, Gurupi (TO) Brasil.
Marcus Barreto Conde
Professor Associado. Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
Marcelo Fouad Rabahi
Professor Adjunto. Universidade Federal de Goiás - UFG - Goiânia (GO) Brasil.