Continuous and bimonthly publication
ISSN (on-line): 1806-3756

Licença Creative Commons
6561
Views
Back to summary
Open Access Peer-Reviewed
Artigo Original

Contribuição da análise molecular do gene regulador da condutância transmembrana nafibrose cística na investigação diagnóstica de pacientes com suspeita de fibrose cística leveou doença atípica

Diagnostic contribution of molecular analysis of the cystic fibrosis transmembrane conductanceregulator gene in patients suspected of having mild or atypical cystic fibrosis

Vinícius Buaes Dal'Maso, Lucas Mallmann, Marina Siebert, Laura Simon,Maria Luiza Saraiva-Pereira, Paulo de Tarso Roth Dalcin

ABSTRACT

Objective: To evaluate the diagnostic contribution of molecular analysis of the cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR) gene in patients suspected of having mild or atypical cystic fibrosis (CF). Methods: This was a cross-sectional study involving adolescents and adults aged ≥ 14 years. Volunteers underwent clinical, laboratory, and radiological evaluation, as well as spirometry, sputum microbiology, liver ultrasound, sweat tests, and molecular analysis of the CFTR gene. We then divided the patients into three groups by the number of mutations identified (none, one, and two or more) and compared those groups in terms of their characteristics. Results: We evaluated 37 patients with phenotypic findings of CF, with or without sweat test confirmation. The mean age of the patients was 32.5 ± 13.6 years, and females predominated (75.7%). The molecular analysis contributed to the definitive diagnosis of CF in 3 patients (8.1%), all of whom had at least two mutations. There were 7 patients (18.9%) with only one mutation and 26 patients (70.3%) with no mutations. None of the clinical characteristics evaluated was found to be associated with the genetic diagnosis. The most common mutation was p.F508del, which was found in 5 patients. The combination of p.V232D and p.F508del was found in 2 patients. Other mutations identified were p.A559T, p.D1152H, p.T1057A, p.I148T, p.V754M, p.P1290P, p.R1066H, and p.T351S. Conclusions: The molecular analysis of the CFTR gene coding region showed a limited contribution to the diagnostic investigation of patients suspected of having mild or atypical CF. In addition, there were no associations between the clinical characteristics and the genetic diagnosis.

RESUMO

Objetivo: Avaliar a contribuição da análise molecular do gene cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR, regulador da condutância transmembrana na fibrose cística) na investigação diagnóstica da fibrose cística em pacientes com suspeita de fibrose cística (FC) leve ou atípica. Métodos: Estudo transversal em adolescentes e adultos (idade ≥ 14 anos). Os voluntários foram submetidos à avaliação clínica, laboratorial e radiológica; espirometria, microbiologia do escarro, ecografia hepática, teste do suor e análise molecular do gene CFTR. Compararam-se as características dos pacientes divididos em três grupos, segundo o número de mutações identificadas (duas ou mais, uma e nenhuma). Resultados: Foram avaliados 37 pacientes com achados fenotípicos de FC, com ou sem confirmação pelo teste do suor. Houve predomínio do sexo feminino (75,7%), e a média de idade dos participantes foi de 32,5 ± 13,6 anos. A análise molecular contribuiu para o diagnóstico de FC em 3 casos (8,1%), todos esses com pelo menos duas mutações. Houve a identificação de uma e nenhuma mutação, respectivamente, em 7 (18,9%) e 26 pacientes (70,3%). Nenhuma característica clínica estudada se associou com o diagnóstico genético. A mutação p.F508del foi a mais comum, encontrada em 5 pacientes. A associação de p.V232D e p.F508del foi encontrada em 2 pacientes. Outras mutações encontradas foram p.A559T, p.D1152H, p.T1057A, p.I148T, p.V754M, p.P1290P, p.R1066H e p.T351S. Conclusões: A análise molecular da região codificadora do gene CFTR apresentou uma contribuição limitada para a investigação diagnóstica desses pacientes com suspeita de FC leve ou atípica. Além disso, não houve associações entre as características clínicas e o diagnóstico genético.

Palavras-chave: Fibrose cística/diagnóstico; Fibrose cística/genética; Regulador de condutância transmembrana em fibrose cística.

Introdução

A fibrose cística (FC) é uma doença com herança autossômica recessiva, causada por mutações em um gene localizado no braço longo do cromossomo 7, responsável pela codificação da proteína cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR, reguladora da condutância transmembrana da FC).(1,2)

Embora o diagnóstico de FC seja usualmente feito na infância (no primeiro ano de vida em 70% dos casos), a frequência do diagnóstico na adolescência e na vida adulta tem aumentado em decorrência da maior suspeita clínica e da disponibilidade de técnicas de diagnóstico.(3)

A FC apresenta uma variabilidade de expressão entre os acometidos. O diagnóstico é baseado nos achados fenotípicos, na história familiar, na triagem neonatal e na realização do teste do suor por iontoforese quantitativa pela pilocarpina.(4)

Considerado o padrão áureo para o diagnóstico de FC, o teste do suor(5) é tido como positivo quando houver uma dosagem de cloreto maior que 60 mEq/L em pelo menos dois testes realizados em momentos diferentes. Em casos com valores limítrofes ou normais, testes diagnósticos adicionais são necessários, e a pesquisa de mutações no gene CFTR deve ser realizada.(6,7) Tal análise apresenta alta especificidade para FC, mas baixa sensibilidade. Esse fato é explicado pela existência de um grande número de mutações conhecidas (mais de 1.900), mas somente uma minoria está incluída nos painéis comerciais disponíveis.(2,8) Apesar das ressalvas desse método, a pesquisa de mutações vem crescendo como método diagnóstico.

A identificação de duas mutações causadoras de FC confirma o diagnóstico de FC atípica. A identificação de uma mutação torna o diagnóstico inconclusivo. A ausência de mutações torna o diagnóstico de FC pouco provável, sendo recomendada a investigação de diagnósticos diferenciais, como a discinesia ciliar e as imunodeficiências.(9)

O objetivo do presente trabalho foi avaliar o quanto a análise molecular da região codificadora do gene CFTR auxilia na investigação diagnóstica de pacientes adolescentes e adultos com suspeita de FC leve ou doença atípica, assim como comparar as características de pacientes divididos em três grupos, segundo o número de mutações identificadas: pelo menos duas mutações no gene CFTR (diagnóstico molecular confirmado de FC), uma e nenhuma mutação identificada.

Métodos

O estudo teve delineamento transversal e foi realizado em único centro. Buscou-se avaliar a contribuição da análise molecular do gene CFTR na investigação diagnóstica de pacientes adolescentes e adultos com suspeita de FC leve (doença confirmada pelo teste do suor e doença pulmonar leve sem insuficiência pancreática) ou doença atípica (fenótipo clínico compatível sem confirmação pelo teste do suor).

O protocolo do estudo foi aprovado pela Comissão de Ética e Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), protocolo nº 08-549. O termo de consentimento livre e esclarecido foi obtido de todos os participantes. O projeto de pesquisa recebeu doações de empresas privadas (Roche e United Medical); porém, esses apoiadores não tiveram direito de participar do delineamento do estudo, de sua execução e da análise e divulgação dos resultados.

A população do estudo foi constituída por pacientes atendidos no ambulatório para adolescentes e adultos com FC do Serviço de Pneumologia do HCPA, localizado no município de Porto Alegre (RS). Foram incluídos indivíduos com idade igual ou superior a 14 anos e com achados fenotípicos de FC (baqueteamento digital, bronquiectasias, infecção bacteriana crônica por germes típicos e insuficiência pancreática exócrina), com ou sem confirmação pelo teste do suor.

Foram excluídos do estudo pacientes que tiverem outra doença identificada como causa dos achados fenotípicos, como, por exemplo, discinesia ciliar ou deficiência imunológica primária; pacientes gestantes; e pacientes que não aceitaram participar ou assinar o termo de consentimento livre e esclarecido.

Os voluntáriosforamselecionados em consultas de rotina no período entre 2009 e 2010 e entrevistados por um dos membros da equipe de pesquisa, utilizando-se uma ficha de coleta de dados composta pelas seguintes variáveis: idade, sexo, estado civil, etnia, história familiar para FC, presença de baqueteamento digital e índice de massa corpórea (IMC), em kg/m2.

Os pacientes realizaram o teste oral de tolerância à glicose de 2 h, exceto aqueles com diagnóstico prévio já definido de diabete melito através de glicemia de jejum, conforme critérios da American Diabetes Association.(10.11) A avaliação de sinusopatia crônica foi complementada com o uso da tomografia de seios da face.

O escore clínico de Shwachman-Kulczycki(12) foi utilizado para a mensuração da gravidade geral da doença. A avaliação considera quatro diferentes características (atividade geral, exame físico, nutrição e achados radiológicos de tórax), sendo cada uma delas pontuadas em uma escala de 5 a 25 pontos (melhor desempenho, maior pontuação), sendo que o escore final de 100 pontos representa o paciente em ótima condição clínica.

Foram revisados os exames bacteriológicos de escarro realizados na rotina clínica nos últimos 12 meses. A identificação de Pseudomonas aeruginosa (cepas mucoides e não mucoides), Staphylococcus aureus (sensível e resistente à meticilina), Burkholderia cepacia e Haemophilus influenzae foram registrados quando identificados pelo menos duas vezes em amostras de escarro coletadas na rotina clínica, em intervalos maiores do que 30 dias.

A espirometria foi realizada no Serviço de Pneumologia do HCPA, utilizando o equipamento MasterScreen com o programa v4.31 (Jaeger, Würzburg, Alemanha), dentro dos critérios de aceitabilidade técnica recomendados pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.(13) Foram registrados CVF, VEF1 e relação VEF1/CVF. O teste foi realizado em três manobras aceitáveis, e o melhor teste foi registrado. Todos os parâmetros foram expressos em percentual do previsto para idade, altura e sexo.(14)

Na avaliação hepática, foi utilizado o sistema de escore ultrassonográfico de Williams(15) para o diagnóstico de doença hepática na FC. Esse sistema considera três características ultrassonográficas: parênquima hepático - normal, grosseiro e irregular (1 a 3 pontos, respectivamente) -, borda hepática - lisa ou nodular (1 e 3 pontos, respectivamente) - e fibrose periportal - ausente, moderada e grave (1 a 3 pontos, respectivamente). O escore final igual a 3 é consistente com fígado normal, sendo escores crescentes sugestivos de doença hepática progressiva. O escore de 8-9 é compatível com cirrose hepática estabelecida. Esse sistema de avaliação ultrassonográfica é utilizado na rotina do HCPA, e a determinação e o registro do escore foram obtidos a partir da interpretação do ecografista em exames realizados por ocasião da avaliação de rotina.

A análise molecular foi realizada no Serviço de Genética do HCPA. Uma amostra de 5 mL de sangue periférico foi coletada para a extração do DNA. A região codificadora do gene CFTR foi amplificada por meio da reação em cadeia de polimerase (PCR). O sequenciamento dos fragmentos foi realizado utilizando-se o kit Big DyeTM Terminator v3.1 Ready Reaction Cycle Sequencing (Applied Biosystems, Foster City, CA, EUA) pelo método de terminação fluorescente em um analisador genético (ABI PRISMTM 3130xl, Applied Biosystems). As análises foram obtidas utilizando-se o DNA Sequencing Software v5.2 (Applied Biosystems). Foi realizado o sequenciamento dos 27 éxons do gene CFTR. As regiões flanqueadoras e a organização éxon-íntron também foram incluídas no sequenciamento. O polimorfismo do íntron 8 também foi analisado.

Para a análise estatística, as informações foram processadas e analisadas com auxílio do programa IBM SPSS Statistics, versão 18.0 (IBM Corporation, Armonk, NY, EUA).

Foi realizada uma análise descritiva, sendo os dados quantitativos apresentados como média ± dp ou mediana (amplitude interquartílica). Os dados qualitativos foram expressos em n (%).

Na análise estatística, os pacientes foram divididos em três grupos: grupo com identificação de pelo menos duas mutações conhecidas como causadoras da FC, grupo de indivíduos com identificação de apenas uma mutação conhecida como causadora da FC e grupo de indivíduos sem nenhuma mutação identificada.

A comparação entre os três grupos foi feita por ANOVA para um fator para variáveis contínuas com distribuição normal; pelo teste de Kruskal-Wallis para variáveis ordinais ou para variáveis contínuas sem distribuição normal; e pelo teste do qui-quadrado para variáveis categóricas, utilizando-se, se necessário, a correção de Yates ou o teste exato de Fisher.

O nível de significância do estudo foi estabelecido em 5%, e todos os testes utilizados foram bicaudais.

Resultados

No período entre maio de 2009 e novembro de 2010, foram avaliados 37 pacientes com achados fenotípicos de FC, com ou sem confirmação pelo teste do suor. Nenhum paciente selecionado se recusou a participar do estudo. Todos eles concluíram as avaliações preconizadas pela pesquisa.

A Tabela 1 mostra as características gerais dos pacientes. O grupo mostrou predomínio do sexo feminino, com 28 mulheres (75,7%) e 9 homens (24,3%). A média de idade foi de 32,5 ± 13,6 anos, (variação, 14-67 anos). A grande maioria era de etnia caucasiana (apenas 1 era não caucasiano), e 16 pacientes (43,2%) referiram ter algum familiar (primeiro e segundo graus) com diagnóstico confirmado de FC. Cinco pacientes (13,5%) tinham diagnóstico de insuficiência pancreática exócrina. A média do IMC foi de 22,4 ± 3,85 kg/m2 (variação, 15,3-30,0 kg/m2). Baqueteamento digital foi encontrado em 21,6% dos pacientes. Apenas 3 pacientes (8,1%) apresentaram critérios diagnósticos de diabete melito, e 13 (35,1%) os apresentaram para sinusopatia crônica. Em relação à microbiologia do escarro, P. aeruginosa foi a bactéria mais frequentemente isolada (43,2%), seguida por S. aureus (35,1%). H. influenzae foi identificado em 7 pacientes (18,9%), enquanto B. cepacia foi isolada em 5,4% dos pacientes. A média de VEF1, em % do previsto, foi de 68,31 ± 25,40%, a de CVF foi de 80,0 ± 19,4%, enquanto a relação VEF1/CVF foi de 71,68 ± 17,34%. Os eletrólitos no suor foram avaliados em duas amostras, sendo que o peso médio da primeira amostra foi de 242,00 ± 85,99 mg e o da segunda foi de 228,50 ± 95,00 mg. A concentração de cloreto na primeira e segunda amostras foi, respectivamente, de 54 ± 26,14 mEq/L e 51,76 ± 23,37 mEq/L.



A Tabela 2 compara as características entre os indivíduos com duas ou mais mutações identificadas, aqueles com apenas uma e aqueles com nenhuma. Não houve diferenças significativas entre os grupos com relação ao sexo, idade, etnia e história familiar de FC. A presença de insuficiência pancreática exócrina não diferiu estatisticamente entre os três grupos (em 2, zero e 3 pacientes, respectivamente). O achado de baqueteamento digital, IMC, presença de diabete melito e presença de sinusopatia crônica também não diferiram entre os grupos. Em relação à avaliação microbiológica do escarro, não foram identificadas diferenças significativas entre os grupos em relação à identificação de P. aeruginosa, S. aureus, H. influenzae e B. cepacia. Não houve diferenças significativas entre os grupos para o escore clínico de Shwachman-Kulczycki, escore hepático de Williams e presença de bronquiectasias. Tampouco foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os três grupos em relação às médias de CVF e VEF1, em % do previsto, e da relação VEF1/CVF. As dosagens de sódio e de cloretos no suor não diferiram entre os grupos. Os resultados do teste do suor, classificados como normal, limítrofe ou alterado, não diferiram entre os três grupos. Esses resultados foram observados, respectivamente, em 1, 2 e 1 pacientes no grupo com pelo menos duas mutações identificadas; em 1, 3 e 3 pacientes no grupo com uma mutação; e em 12, 4 e 10 pacientes no grupo sem mutação identificada.



As mutações identificadas na análise molecular estão descritas na Tabela 3. A mutação p.F508del foi a mais comum, encontrada em 5 pacientes. A associação das mutações p.V232D e p.F508del foi encontrada em 2 pacientes. Foram identificadas três mutações em um mesmo paciente (p.T351S, p.F508del no primeiro alelo e p.P1290P no segundo alelo). Outras mutações encontradas foram as seguintes: p.A559T, p.D1152H, p.T1057A, p.I148T, p.V754M, p.P1290P e p.R1066H.



Discussão

O presente estudo transversal avaliou pacientes com achados fenotípicos compatíveis com FC que foram encaminhados a um ambulatório de referência para o diagnóstico e tratamento de FC em adolescentes e adultos. A análise molecular do gene CFTR contribuiu para o diagnóstico definitivo de FC em 4 casos (10,8%) dentre 37 pacientes em avaliação. Em 7 pacientes (18,9%), foi identificada apenas uma mutação causadora de FC e, em 26 pacientes (70,3%), não foram identificadas mutações. Nenhuma característica clínica estudada se associou com o diagnóstico genético. Houve uma tendência de a presença de insuficiência pancreática exócrina ser mais frequente nos casos com diagnóstico genético confirmado, mas essa não atingiu significância estatística. Dos pacientes com diagnóstico genético, apenas 1 apresentava teste do suor classificado como alterado. Por outro lado, o teste do suor apresentou resultados alterados em 3 dos 7 casos com uma mutação identificada, assim como em 10 dos 26 casos sem mutação identificada.

As características clínicas e os motivos do encaminhamento incluíram a presença de doença pulmonar e sinusopatia crônicas, colonização broncopulmonar por germes sugestivos de FC, baqueteamento digital, história familiar para FC, anormalidades gastrointestinais e anormalidades nutricionais.(2) Todos os pacientes já haviam realizado testes do suor pelo menos duas vezes.

No presente estudo, dentre os 4 pacientes com diagnóstico genético de FC, 1 pode ser caracterizado como portador de doença clássica leve, pois apresentava manifestações tardias da doença e teste do suor alterado, enquanto os outros 3 podem ser caracterizados como portadores de doença atípica, pois apresentavam eletrólitos no suor com valores limítrofes ou normais.

O desenvolvimento de técnicas de análise molecular permitiu a identificação de mais de 1.900 mutações do gene CFTR, conforme o Cystic Fibrosis Mutation Database (http://www.genet.sickkids.on.ca/cftr). As mutações genéticas têm sido classificadas em seis classes, dividindo-se em graves (classes I, II e III) e leves (classes IV, V e VI), com base no mecanismo molecular alterado.(16,17) Nas mutações de classe I, a proteína CFTR não é sintetizada; na classe II, ela é inadequadamente processada no retículo endoplasmático; na classe III, ela é inadequadamente regulada; na classe IV, ela apresenta uma condutância anormal; na classe V, ocorre um defeito de produção; e, na classe VI, ocorre uma degradação acelerada. (18,19) As formas não clássicas da FC têm sido associadas com mutações que reduzem, mas não eliminam a função da proteína CFTR.(20) Em geral, os indivíduos homozigotos para as classes I-III possuem insuficiência pancreática, diabete, altas taxas de íleo meconial, mortalidade precoce, declínio mais rápido da função pulmonar, maior desnutrição e hepatopatia.(16) Já os pacientes com mutações das classes IV e V possuem uma doença mais leve, suficiência pancreática e maior sobrevida.(20,21)

Mutações no gene CFTR não são identificadas em 1,0-1,5% dos pacientes com FC clássica. Em casos de FC não clássica, vários fatores são importantes para se estabelecer o diagnóstico correto. No presente estudo, a análise molecular abrangeu a região codificadora e as regiões flanqueadoras. Mutações localizadas em regiões promotoras e em sequências regulatórias distantes não são avaliadas.(16) Entretanto, a frequência de mutações nessas regiões é mais rara e, provavelmente, não explicaria todos os casos em nossa amostra.

A mutação mais frequente é a p.F508del (ausência do aminoácido fenilalanina na posição 508); porém, a frequência dessa mutação difere entre as populações, sendo aproximadamente 47% no Brasil.(22,23) Em uma análise de pacientes brasileiros com FC, um grupo de autores mostrou que a p.F508del e outras quatro mutações (p.G542X, p.N1303K, p.G551D e p.R553X) representaram 56% dos alelos de FC.(24) O espectro de mutações de FC no Brasil indica uma forte influência europeia, particularmente similar ao da população italiana.(25,26) Em um estudo prévio realizado no HCPA, a mutação p.F508del foi encontrada em 48,7% dos alelos.(28)

A sensibilidade da genotipagem para FC depende inteiramente do número de mutações testadas e da etnia dos indivíduos.(24) Geralmente a baixa sensibilidade ocorre devido a esse grande número de mutações conhecidas e ao fato de que os painéis comerciais disponíveis somente pesquisam uma minoria dessas mutações.(2) No presente estudo, deve-se considerar o fato de que a população de pacientes foi selecionada pelo encaminhamento de casos com maior dificuldade diagnóstica para um centro de referência para FC.

Um grupo de autores(27) relatou 6 casos de FC diagnosticados na vida adulta, com doença pulmonar supurativa, função pancreática preservada e apenas uma mutação identificada. Os autores concluíram que o espectro diagnóstico dos pacientes investigados na vida adulta é diferente daqueles com diagnóstico na infância.

Um estudo avaliou se as alterações na função da proteína CFTR seriam responsáveis por todo o espectro de variantes dos fenótipos de FC.(28) Os autores realizaram a análise do gene CFTR em 74 pacientes com FC não clássica. Daqueles pacientes, 29 apresentaram duas mutações no gene CFTR, enquanto 15 e 30, respectivamente, apresentaram uma e nenhuma mutação. À semelhança de nosso estudo, a comparação das características clínicas e das concentrações no teste do suor não diferiu entre os grupos com duas, uma ou nenhuma mutação. Os autores concluíram que outros fatores produzem fenótipos clinicamente indistinguíveis da FC não clássica causada pela disfunção da proteína CFTR.

Em 2004, um grupo de autores(29) publicou um estudo avaliando as características clínicas e os parâmetros diagnósticos de pacientes com diagnóstico de FC na vida adulta. Dentre 1.051 indivíduos com diagnóstico de FC, 73 (7%) tiveram diagnóstico da doença na vida adulta. Dos 46 pacientes com diagnóstico depois de 1990, o teste do suor pôde estabelecer o diagnóstico em 30 (65%), a análise de mutações o fez em 15 (33%), e a combinação dos dois testes o fez em 31 (67%). A medida da diferença do potencial nasal isoladamente confirmou o diagnóstico nos 15 casos remanescentes (33%). Os autores concluíram que os pacientes que se apresentam com a doença na vida adulta geralmente apresentam suficiência pancreática, teste do suor inconclusivo e alta prevalência de mutações que não são evidenciadas na infância.

O presente estudo possui algumas limitações. Primeiro, a principal limitação advém do tamanho amostral pequeno, em especial, do número de casos com diagnóstico confirmado, o que impede a generalização dos achados na comparação das características clínicas dos três grupos e limita a validade externa. Outra limitação é que não foi realizada a técnica de diferença do potencial nasal, pois não dispúnhamos desse método em nossa instituição durante o período de estudo.

A implicação clínica do presente estudo consiste na demonstração da dificuldade diagnóstica enfrentada pelo especialista que avalia essa população de indivíduos adolescentes e adultos com suspeita clínica de FC. A investigação diagnóstica requer testes diagnósticos adicionais ao teste do suor. O teste do suor não possui especificidade suficiente para descartar a doença nesse grupo de pacientes.

Como conclusão, nessa população de pacientes com achados compatíveis com FC e encaminhados para avaliação em um programa de referência para adolescentes e adultos com FC, a análise molecular da região codificadora do gene CFTR contribuiu para o diagnóstico definitivo de FC em 3 pacientes (8,1%) e possibilitou a identificação das mutações em 1 paciente com doença leve, já confirmada pelo teste do suor. Pacientes com eletrólitos alterados no suor e sem mutações identificadas provavelmente possuem alterações ainda desconhecidas. Nenhuma característica clínica se associou com o diagnóstico genético.

Referências

1. Boyle MP. Adult cystic fibrosis. JAMA. 2007;298(15):1787-93.

2. Dalcin Pde T, Abreu e Silva FA. Cystic fibrosis in adults: diagnostic and therapeutic aspects. J Bras Pneumol. 2008;34(2):107-17.

3. Cystic Fibrosis Foundation. Patient Registry Annual Report 2010. Bethesda: Cystic Fibrosis Foundation; 2012.

4. Farrell PM, Rosenstein BJ, White TB, Accurso FJ, Castellani C, Cutting GR, et al. Guidelines for diagnosis of cystic fibrosis in newborns through older adults: Cystic Fibrosis Foundation consensus report. J Pediatr. 2008;153(2):S4-S14.

5. Gibson LE, Cooke RE. A test for concentration of electrolytes in sweat in cystic fibrosis of the pancreas utilizing pilocarpine by iontophoresis. Pediatrics. 1959;23(3):545-9.

6. Chmiel JF, Drumm ML, Konstan MW, Ferkol TW, Kercsmar CM. Pitfall in the use of genotype analysis as the sole diagnostic criterion for cystic fibrosis. Pediatrics. 1999;103(4 Pt 1):823-6.

7. Boyle MP. Nonclassic cystic fibrosis and CFTR-related diseases. Curr Opin Pulm Med. 2003;9(6):498-503.

8. Karczeski B, Cutting G. Diagnosis of cystic fibrosis, CFTR-related disease and screening. Prog Respir Res. 2006;34:69-76

9. De Boeck K, Wilschanski M, Castellani C, Taylor C, Cuppens H, Dodge J, et al. Cystic fibrosis: terminology and diagnostic algorithms. Thorax. 2006;61(7):627-35.

10. American Diabetes Association. Standards of medical care in diabetes--2012. Diabetes Care. 2012;35 Suppl 1:S11-63.

11. Moran A, Brunzell C, Cohen RC, Katz M, Marshall BC, Onady G, et al. Clinical care guidelines for cystic fibrosis-related diabetes: a position statement of the American Diabetes Association and a clinical practice guideline of the Cystic Fibrosis Foundation, endorsed by the Pediatric Endocrine Society. Diabetes Care. 2010;33(12):2697-708.

12. Shwachman H, Kulczycki LL. Long-term study of one hundred five patients with cystic fibrosis; studies made over a five- to fourteen-year period. AMA J Dis Child. 1958;96(1):6-15.

13. Sociedade Brasileira de Pneumologia. Diretrizes para Testes de Função Pulmonar. J Pneumol. 2002;28(Suppl 3):S1-S238.

14. Miller MR, Hankinson J, Brusasco V, Burgos F, Casaburi R, Coates A, et al. Standardisation of spirometry. Eur Respir J. 2005;26(2):319-38.

15. Williams SG, Evanson JE, Barrett N, Hodson ME, Boultbee JE, Westaby D. An ultrasound scoring system for the diagnosis of liver disease in cystic fibrosis. J Hepatol. 1995;22(5):513-21.

16. Castellani C, Cuppens H, Macek M Jr, Cassiman JJ, Kerem E, Durie P, et al. Consensus on the use and interpretation of cystic fibrosis mutation analysis in clinical practice. J Cyst Fibros. 2008;7(3):179-96.

17. Wallis C. Atypical cystic fibrosis--diagnostic and management dilemmas. J R Soc Med. 2003;96 Suppl 43:2-10.

18. Ratjen F, Döring G. Cystic fibrosis. Lancet. 2003;361(9358):681-9.

19. Collins FS. Cystic fibrosis: molecular biology and therapeutic implications. Science. 1992;256(5058):774-9.

20. Groman JD, Meyer ME, Wilmott RW, Zeitlin PL, Cutting GR. Variant cystic fibrosis phenotypes in the absence of CFTR mutations. N Engl J Med. 2002;347(6):401-7.

21. McKone EF, Goss CH, Aitken ML. CFTR genotype as a predictor of prognosis in cystic fibrosis. Chest. 2006;130(5):1441-7.

22. Raskin S, Pereira L, Reis F, Rosario NA, Ludwig N, Valentim L, et al. High allelic heterogeneity between Afro-Brazilians and Euro-Brazilians impacts cystic fibrosis genetic testing. Genet Test. 2003;7(3):213-8.

23. Faucz FR, Souza DA, Olandoski M, Raskin S. CFTR allelic heterogeneity in Brazil: historical and geographical perspectives and implications for screening and counseling for cystic fibrosis in this country. J Hum Genet. 2010;55(2):71-6.

24. Raskin S, Phillips JA, Kaplan G, McClure M, Vnencak-Jones C, Rozov T, et al. Geographic heterogeneity of 4 common worldwide cystic fibrosis non-DF508 mutations in Brazil. Hum Biol. 1999;71(1):111-21.

25. Bossi A, Casazza G, Padoan R, Milani S; Assemblea Dei Direttori Dei Centri. What is the incidence of cystic fibrosis in Italy? Data from the National Registry (1988-2001). Hum Biol. 2004;76(3):455-67.

26. Streit C, Burlamaque-Neto AC, de Abreu e Silva F, Giugliani R, Saraiva Pereira ML. CFTR gene: molecular analysis in patients from South Brazil. Mol Genet Metab. 2003;78(4):259-64.

27. McWilliams TJ, Wilsher ML, Kolbe J. Cystic fibrosis diagnosed in adult patients. N Z Med J. 2000;113(1102):6-8.

28. Groman JD, Meyer ME, Wilmott RW, Zeitlin PL, Cutting GR. Variant cystic fibrosis phenotypes in the absence of CFTR mutations. N Engl J Med. 2002;347(6):401-7.

29. Gilljam M, Ellis L, Corey M, Zielenski J, Durie P, Tullis DE. Clinical manifestations of cystic fibrosis among patients with diagnosis in adulthood. Chest. 2004;126(4):1215-24.



Trabalho realizado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre - HCPA - e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Pneumológicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre (RS) Brasil.
Endereço para correspondência: Vinícius Buaes Dal'Maso. Rua Uruguai, 1953, CEP 99010-115, Passo Fundo, RS, Brasil.
Tel. 55 54 3311-6711. E-mail: dalmaso@upf.br
Apoio financeiro: O presente estudo recebeu suporte financeiro do Fundo de Incentivo à Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (FIPE-HCPA) e doações das empresas United Medical e Roche.
Recebido para publicação em 23/10/2012. Aprovado, após revisão, em 4/3/2013.



Sobre os autores

Vinícius Buaes Dal'Maso
Professor Assistente. Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo (RS) Brasil.

Lucas Mallmann,
Médico Residente de Medicina Interna. Hospital de Clínicas de Porto Alegre - HCPA - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre (RS) Brasil.

Marina Siebert
Acadêmica. Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular, Laboratório de Identificação Genética, Centro de Pesquisa Experimental, Hospital de Clínicas de Porto Alegre - HCPA - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre (RS) Brasil.

Laura Simon
Acadêmica. Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular, Laboratório de Identificação Genética, Centro de Pesquisa Experimental, Hospital de Clínicas de Porto Alegre - HCPA - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre (RS) Brasil.

Maria Luiza Saraiva-Pereira
Professora Associada. Departamento de Bioquímica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre (RS) Brasil.

Paulo de Tarso Roth Dalcin
Professor Associado. Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre (RS) Brasil.

Indexes

Development by:

© All rights reserved 2024 - Jornal Brasileiro de Pneumologia