Ao Editor:Transexual homem-mulher, 24 anos, previamente hígida, apresentava dispneia, febre e sinais de hipoxemia grave (SpO2, 72%) há 48 h. Relatava ter sido submetida a um procedimento ilegal há 10 dias, quando silicone líquido industrial havia sido injetado em suas nádegas para fins cosméticos. Anteriormente, havia recebido implantes mamários de silicone. Após a internação, evoluiu rapidamente com insuficiência respiratória grave e necessitou de ventilação mecânica. Durante a intubação e durante todo o período de ventilação mecânica, observou-se sangramento pulmonar. O nível de hemoglobina era de 6 g/dL (hematócrito, 18%), e ela recebeu transfusão de sangue. A contagem de plaquetas, o tempo de tromboplastina parcial e o tempo de protrombina eram normais.
A TC de tórax mostrou opacidades em vidro fosco bilaterais com distribuição segmentada, sugestivas de hemorragia alveolar, e consolidações bibasais (Figura 1). Também se observou um pequeno derrame pleural bilateral. O exame ultrassonográfico do local da injeção não mostrou acúmulo anormal de líquido que necessitasse de drenagem ou de qualquer outro tipo de intervenção cirúrgica. Devido à grave hipoxemia, broncoscopia e LBA não foram realizadas. As hemoculturas foram negativas durante todo o período de tratamento.
A paciente recebeu o diagnóstico de embolia pulmonar por silicone com hemorragia alveolar, que foi inicialmente tratada com ventilação mecânica, acompanhada de pulsoterapia com metilprednisolona, juntamente com 14 dias de terapia antimicrobiana empírica (com oxacilina e ceftriaxona). A evolução foi favorável, e o nível de hemoglobina gradualmente retornou a um valor dentro da normalidade (11,4 g/dL). No 14º dia de internação, a paciente foi extubada e apresentavaSpO2 de 91%. No 21º dia de internação, seu estado geral era bom e ela recebeu alta.
Silicone é o nome químico e comercial do polidimetilsiloxano (dimeticona), um composto orgânico que compreende uma cadeia que alterna átomos de silício e oxigênio ligados a outros grupos orgânicos. O estado químico do polímero - gel (elastômero), líquido ou sólido - é determinado pelo número de ligações cruzadas na molécula.(1) É há muito tempo considerado um composto inerte com boa estabilidade térmica, o que favorece sua utilização na medicina em vários dispositivos implantáveis. Na forma pura, o silicone tem sido utilizado em procedimentos cosméticos e estéticos nas últimas cinco décadas, e sabe-se que produz reações teciduais mínimas e nenhuma resposta imunológica significativa, embora, em muitos países, seja aprovado apenas para utilização em dispositivos de aumento de mama e seja proibido na forma líquida injetável.(2) Porém, a prática generalizada e clandestina de injeção de silicone líquido industrial dentro da comunidade transexual em todo o mundo tem produzido vários casos com uma variedade de reações graves, principalmente evolvendo os pulmões e o sistema nervoso central.(2,3) Isso provavelmente está relacionado a impurezas presentes no silicone industrial ou à adulteração do mesmo, o que pode provocar infecção subcutânea (celulite) e formação de massas à distância em razão da migração do silicone, e também nódulos, necrose, hepatite granulomatosa, linfadenopatia regional e lesão pulmonar em razão de embolização pulmonar, hemorragia alveolar, pneumonite e síndrome do desconforto respiratório agudo.(3)
A lesão pulmonar vista em alguns indivíduos que receberam injeções de silicone parece ser desencadeada por embolia pulmonar. A embolia pode estar relacionada à alta pressão promovida por injeção de grandes quantidades do produto, massagem local para acomodação do conteúdo, migração regional ou injeção intravascular direta. Exames histológicos podem mostrar vasos capilares distendidos e preenchidos por material homogêneo, claro, globuloso e resistente a coloração (supostamente silicone), macrófagos apresentando inclusões citoplasmáticas da mesma substância, com um padrão patológico que vai desde a simples presença de êmbolos vasculares até congestão, hemorragia, pneumonite aguda e dano alveolar difuso.(4)
A pneumonite vista após a injeção de silicone pode ser aguda ou latente. A forma aguda, na qual os sintomas aparecem em poucos dias (em alguns casos já duas horas após a injeção), é mais comum. Na forma latente, os sintomas aparecem 6-13 meses após a injeção.(5) A mortalidade pode chegar a 24%.(6) Parece haver uma relação entre a mortalidade e a quantidade total de material embolizado.(6) Para casos em que há manifestações neurológicas, o prognóstico é reservado.
No presente caso, a evolução clínica foi muito típica da forma aguda da condição (com dispneia, tosse, febre e sinais de hipoxemia), e foram vistas alterações pronunciadas nas radiografias e na TC de tórax. As imagens eram muito sugestivas de preenchimento alveolar. A presença de sangramento durante a intubação e a redução dos níveis de hemoglobina eram indicativas de hemorragia.(4) A biópsia pulmonar não foi necessária devido ao histórico de injeção de silicone, e os aspectos clínicos e radiológicos eram altamente sugestivos de hemorragia alveolar. Foi estabelecido tratamento de suporte ventilatório. Em razão da rápida evolução para insuficiência respiratória, administrou-se pulsoterapia com metilprednisolona, apesar do fato de não haver evidências clínicas na literatura que suportem seu uso em tais casos.
O caso aqui apresentado destaca o risco de complicações sérias resultantes do uso clandestino de injeções de silicone para fins cosméticos. Apesar da gravidade do estado clínico da paciente no momento da internação, a evolução clínica foi favorável. Deve-se considerar o histórico de procedimentos cosméticos ilícitos envolvendo silicone, especialmente silicone líquido industrial, em casos de acometimento pulmonar agudo em adultos previamente hígidos.
Ronaldo Ferreira Macedo
Médico Assistente, Disciplina de Pneumologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP) Brasil
Ricardo Ananias Lobão
Chefe, Unidade de Terapia Intensiva de Adultos, Hospital Estadual de Sumaré, Sumaré (SP) Brasil
Eduardo Mello De Capitani
Professor Associado, Disciplina de Pneumologia, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP) Brasil
Maira Eliza Petrucci Zanovello
Médica Residente, Disciplina de Pneumologia, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP) Brasil
Paula Catarina Caruso
Médica Residente, Disciplina de Pneumologia, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP) Brasil
Maurício Souza de Toledo Leme
Médico Assistente, Hospital Estadual de Sumaré, Sumaré (SP) Brasil
Elza Maria Figueiras Pedreira de Cerqueira
Chefe, Divisão de Imagem, Hospital Estadual de Sumaré, Sumaré (SP) Brasil
Lair Zambon
Chefe, Disciplina de Pneumologia, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP) Brasil; e Diretor, Hospital Estadual de Sumaré, Sumaré (SP) Brasil
Referências1. POISINDEX® System [Internet database]. Greenwood Village, Colo: Thomson Reuters (Healthcare) Inc. Updated periodically.
2. Bartsich S, Wu JK. Silicon emboli syndrome: a sequela of clandestine liquid silicone injections. A case report and review of the literature. J Plast Reconstr Aesthet Surg. 2010;63(1):e1-3. http://dx.doi.org/10.1016/j.bjps.2009.04.004 PMid:19467623
3. Parikh R, Karim K, Parikh N, Han P, Daoko J, Shamoon FE. Case report and literature review: acute pneumonitis and alveolar hemorrhage after subcutaneous injection of liquid silicone. Ann Clin Lab Sci. 2008;38(4):380-5. PMid:18988932
4. Restrepo CS, Artunduaga M, Carrillo JA, Rivera AL, Ojeda P, Martinez-Jimenez S, et al. Silicone pulmonary embolism: report of 10 cases and review of the literature. J Comput Assist Tomogr. 2009;33(2):233-7. http://dx.doi.org/10.1097/RCT.0b013e31817ecb4e PMid:19346851
5. Chastre J, Brun P, Soler P, Basset F, Trouillet JL, Fagon JY, et al. Acute and latent pneumonitis after subcutaneous injections of silicone in transsexual men. Am Rev Respir Dis. 1987;135(1):236-40. PMid:3800149
6. Schmid A, Tzur A, Leshko L, Krieger BP. Silicone embolism syndrome: a case report, review of the literature, and comparison with fat embolism syndrome. Chest. 2005;127(6):2276-81. http://dx.doi.org/10.1378/chest.127.6.2276 PMid:15947350