Ao Editor:
O transplante pulmonar é uma intervenção complexa que exige estrita adesão a um regime médico muito específico, que envolve não só o uso de medicamentos, mas também uma rotina diária bastante restritiva. O grau de adesão dos pacientes ao regime prescrito desempenha um papel fundamental na obtenção dos melhores desfechos do transplante.(1) Portanto, a adesão ao tratamento é de grande importância no cuidado de pacientes submetidos a transplante pulmonar. O conceito de adesão implica participação ativa dos pacientes, que devem compreender sua doença e o tratamento proposto e seguir rigorosamente as recomendações da equipe de saúde.(1) A Organização Mundial da Saúde propõe uma estreita parceria entre médicos, equipe multidisciplinar e pacientes a fim de melhorar a adesão ao tratamento.(2) A morte recente de uma adolescente submetida a transplante pulmonar no Departamento de Transplante Pulmonar do Instituto do Coração, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na cidade de São Paulo, Brasil, que morreu porque não aderiu ao tratamento, despertou grande preocupação com essa questão e levou-nos a rever nossa abordagem multidisciplinar aos pacientes e a examinar o que atualmente se sabe a respeito de adesão ao tratamento.
Uma paciente de 18 anos de idade foi submetida a transplante pulmonar bilateral em virtude de fibrose cística terminal. A terapia imunossupressora inicial consistiu em basiliximabe e metilprednisolona, seguida de tratamento de manutenção com ciclosporina (ajustada aos níveis sanguíneos), micofenolato e prednisona. A paciente permaneceu estável durante um ano e cinco meses e então apresentou falta de ar aguda e progressiva, hipoxemia, perda da função pulmonar e opacidades em vidro fosco difusas na TCAR. Embora seus medicamentos ambulatoriais incluíssem ciclosporina, micofenolato, prednisona, itraconazol e sulfametoxazol-trimetoprima, seus níveis sanguíneos de ciclosporina estavam muito abaixo da meta mínima. Quando consultado, seu cuidador admitiu que, apesar de seus esforços, a paciente não havia tomado seus medicamentos conforme a prescrição no mês anterior e vinha fumando narguilé em seu tempo livre. A biópsia pulmonar a céu aberto revelou rejeição aguda grau A3, rejeição crônica das vias aéreas ou bronquiolite obliterante (C1), rejeição vascular crônica (D) e pneumonia em organização. A paciente foi tratada com globulina antitimocítica de coelho e corticosteroides, mas morreu em consequência de hemorragia alveolar e múltiplas complicações infecciosas.
Estudos recentes demonstraram que 25-50% dos pacientes com doenças crônicas podem ser considerados "descumpridores", alguns temporários e outros permanentes.(1,2) As taxas de não adesão podem chegar a 80% em pacientes submetidos a transplante, especialmente em adolescentes.(3) Embora diferentes métodos e definições de não adesão (por exemplo, deixar de tomar o(s) medicamento(s), medicação atrasada e modificação da dose) possam influenciar as taxas supracitadas,(1,4) a não adesão é sem dúvida um tema de grande importância.
Para pacientes submetidos a transplante pulmonar, o alívio dos sintomas incapacitantes da doença pulmonar crônica tem um preço: tratamento em longo prazo; regime terapêutico complexo; efeitos colaterais dos medicamentos; dieta restritiva; uso limitado do álcool; cessação do tabagismo e restrições à socialização entre pares. Após o alívio inicial dos sintomas crônicos, alguns pacientes perdem a motivação para seguir as regras rígidas necessárias para manter o enxerto. Portanto, o alívio imediato (ou alívio de sentimentos de ansiedade) pode reduzir ou anular os efeitos positivos da duração do enxerto no longo prazo, podendo levar ao abandono do uso dos medicamentos prescritos. Certas populações de pacientes submetidos a transplante pulmonar devem receber atenção especial. Ser adolescente é um fator predisponente para a baixa adesão ao tratamento, por causa do sentimento de invulnerabilidade característico desses indivíduos.(1) Pacientes com fibrose cística constituem a maioria em nosso serviço; estão exatamente nessa faixa etária, e seu perfil psicológico aumenta o risco de não adesão. No entanto, o descumprimento das recomendações médicas não pode ser entendido simplesmente como desobediência. Os pacientes não devem ser coagidos, levados a se sentir culpados ou punidos enquanto a equipe permanece na confortável posição de que cabe aos pacientes fazer exatamente o que lhes é dito. Culpar os pacientes por perder seu enxerto por causa da falta de adesão não é a maneira correta de lidar com a situação. Os profissionais de saúde devem ser treinados para avaliar e administrar a adesão ao tratamento, pois o treinamento de habilidades de comunicação com foco em administração da adesão resulta em taxas de adesão significativamente maiores.(3,5)
Os fatores ambientais que influenciam o grau de adesão dos pacientes ao tratamento recomendado devem ser identificados.(5,6) Dentre esses fatores destacam-se as crenças dos pacientes a respeito de sua doença e de seu tratamento; problemas emocionais e cognitivos transitórios; a qualidade do apoio social recebido e um relacionamento estabelecido com a equipe de saúde.(5) Estratégias para melhorar a adesão dos pacientes ao regime terapêutico devem ser implantadas com base em características e necessidades individuais.(5) Por fim, a equipe de saúde e os pacientes devem formar um grupo coeso.
Como a falta de adesão ao tratamento é um problema complexo e multidimensional, nenhum dos esforços supracitados jamais resultará em uma solução única do problema. No entanto, as equipes de transplante devem rotineiramente rever e melhorar sua abordagem multidisciplinar aos pacientes. Mais estudos e mais educação são necessários para que se compreenda melhor como as características dos pacientes afetam a adesão ao tratamento.
André Nathan Costa
Pneumologista, Departamento de Pneumologia, Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Elaine Marques Hojaij
Psicóloga, Departamento de Psicologia e de Transplante Pulmonar, Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Liliane Saraiva de Mello
Enfermeira, Departamento de Transplante Pulmonar, Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Felipe Xavier de Melo
Pneumologista, Departamento de Pneumologia, Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Priscila Cilene Leon Bueno de Camargo
Pneumologista, Departamento de Pneumologia, Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Silvia Vidal Campos
Infectologista, Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Jose Eduardo Afonso Junior
Pneumologista, Departamento de Pneumologia, Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Rafael Medeiros Carraro
Pneumologista, Departamento de Pneumologia, Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Ricardo Henrique de Oliveira Braga Teixeira
Pneumologista, Departamento de Pneumologia, e Coordenador Clínico, Grupo de Transplante Pulmonar, Instituto do Coração - InCor - Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil
Referências
1. Korb-Savoldelli V, Sabatier B, Gillaizeau F, Guillemain R, Prognon P, Bégué D, et al. Non-adherence with drug treatment after heart or lung transplantation in adults: a systematic review. Patient Educ Couns. 2010;81(2):148-54. http://dx.doi.org/10.1016/j.pec.2010.04.013
2. World Health Organization. Adherence to long-term therapies: evidence for action. Geneva: WHO; 2003.
3. Dobbels F, Hames A, Aujoulat I, Heaton N, Samyn M. Should we retransplant a patient who is non-adherent? A literature review and critical reflection. Pediatr Transplant. 2012;16(1):4-11. http://dx.doi.org/10.1111/j.1399-3046.2011.01633.x
4. Germani G, Lazzaro S, Gnoato F, Senzolo M, Borella V, Rupolo G, et al. Nonadherent behaviors after solid organ transplantation. Transplant Proc. 2011;43(1):318-23. http://dx.doi.org/10.1016/j.transproceed.2010.09.103
5. Moraes AB, Rolim GS, Costa Jr AL. O processo de adesão numa perspectiva analítico comportamental. Rev Bras Ter Comp Cogn. 2009;11(2):329-45.
6. Morrissey PE, Flynn ML, Lin S. Medication noncompliance and its implications in transplant recipients. Drugs. 2007;67(10):1463-81. http://dx.doi.org/10.2165/00003495-200767100-00007