AO EDITOR:
Uma consideração frequente em livros-texto e artigos em Pneumologia é a informação de que apenas entre 10-15% dos pacientes fumantes desenvolveriam DPOC. (1,2) Essa afirmação também é mencionada no primeiro e no segundo consenso brasileiro de DPOC da Sociedade Brasi-leira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT): 15% e 12%, respectivamente.(3,4) Embora tenha havido uma revisão da epidemiologia da DPOC no documento da SBPT em 2006,(5) o principal foco epidemiológico da mesma foi o importante estudo conhecido como PLATINO - Projeto Latino-Americano de Investigação em Obstrução Pulmonar - tendo, entretanto, deixado de desafiar o citado conceito.(5) O próprio texto trazia subsí-dios para tal, quando citava que no estudo PLATINO - apesar de sua natureza transversal - a prevalência de DPOC na faixa etária > 60 anos foi de 25,7%.(5)
Os tais 15% ganharam destaque na literatura médica a partir de 1977, quando Fletcher & Peto publicaram um artigo no British Medical Jour-nal,(6) que constituía um resumo de um livro editado no ano anterior.(7) Em pelos menos dois pontos diferentes da publicação os autores afir-mam que "susceptibilidade não é provavelmente um atributo do tipo tudo ou nada; na realidade, um espectro de susceptibilidade provavelmen-te existe".(7)
Devido ao restrito espaço da presente comunicação, torna-se impossível fazer uma análise mais aprofundada e detalhada das questões meto-dológicas do citado livro. Resumidamente, as conclusões do estudo foram feitas a partir de um seguimento de apenas 8 anos (1961-1969) de 792 pacientes, sendo que pelo menos 17 deles apresentavam diagnóstico clínico de asma (sem tratamento contínuo).(7) Inquéritos foram reali-zados no verão de 1961 seguidos por outros a cada seis meses até o verão de 1969 (exceto no inverno de 1966 e de 1967). Os grupos etários formados no primeiro levantamento em 1961 incluíam indivíduos com 30-34 anos, 35-39 anos, e assim sucessivamente, sendo o grupo mais velho formado por indivíduos com 55-59 anos. A cada inquérito eram feitas três medidas de VEF1, variável essa mensurada em 16 inquéritos.(7) A média de VEF1 em litros da amostra no levantamento inicial em 1961 era de 3,22 ± 0,72 l, sendo que 4,3% dos indivíduos apresentavam VEF1 < 2,0 l.(7) Duas medidas de CVF foram feitas em sete inquéritos após a medição de VEF1.(7)
Em seu livro, Fletcher & Peto demonstraram a perda de VEF1 de acordo com o status tabágico (103 não fumantes, 122 ex-fumantes que haviam parado de fumar antes de 1962, 387 fumantes de até 15 cigarros por dia e 180 tabagistas que fumavam em média mais de 15 cigarros por dia) em homens com e sem obstrução à espirometria.(7) Os homens considerados com obstrução eram os que tinham VEF1 < 2,5 l (indivíduos com altura de 1,71 m), o que corresponde a VEF1 entre 50 e 80% do previsto, que é classificado segundo os critérios da Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease (GOLD) como grau II (DPOC moderada)! Um total de 13% dos 792 pacientes apresentou obstrução: assim, os famosos 15% são um arredondamento de 13%!(7,8) Eles representam os fumantes suficientemente susceptíveis para ficarem muito doentes em conse-quência da redução da função pulmonar.
Assim, pelo menos quatro questões metodológicas fundamentais existem no estudo de Fletcher & Peto: 1) critérios de elegibilidade, os quais permitiram a inclusão de pacientes asmáticos; 2) critérios de obstrução à espirometria: pelos critérios de hoje, um maior número de fumantes teria sido classificado como tendo DPOC e, dessa forma, seriam chamados de susceptíveis; 3) tempo de seguimento do estudo de apenas 8 anos: a clássica curva de perda de VEF1 é uma extrapolação feita a partir de um curto período de observação, fato esse admitido pelos próprios autores; e 4) um viés foi introduzido pelos autores em 1968, os quais se sentiram obrigados a aconselhar os fumantes com obstrução e com as maiores inclinações na curva de VEF1 a pararem de fumar.(7)
Várias coortes com longos tempos de seguimento(9-11) estimaram o risco de os tabagistas desenvolverem DPOC utilizando a medida de risco mais simples e mais utilizada em epidemiologia: a taxa de incidência. O número de fumantes que continuam fumando e desenvolvem obstrução de vias aéreas vêm aumentando em diversas coortes porque uma fração dos pacientes seguidos deixa de morrer devido a riscos competitivos (por exemplo, cardiovascular) em idades mais precoces.
O Copenhagen City Heart Study (CCHS) é um estudo populacional prospectivo com uma amostra aleatória de 19.329 homens e mulheres brancos, com idades entre 20-93 anos, recrutados quando identificados no Registro Populacional de Copenhagen, Dinamarca, em 1 de janeiro de 1976.(9) Em uma das análises do CCHS, 8.045 homens e mulheres com idade entre 30-60 anos e com função pulmonar normal no início do estudo foram acompanhados por 25 anos.(10) Espirometrias foram realizadas em 1981-1983, 1991-1994 e 2001-2003. Quatro exames de função respiratória foram obtidos em 2.022 pessoas; o status tabágico desses indivíduos foi determinado no quarto exame: 581 nunca haviam fumado, 371 eram ex-fumantes, e 1.070 eram fumantes. Entre os fumantes, havia 614 fumantes contínuos.(10) A incidência cumulativa de DPOC em 25 anos foi de 35,5% nos fumantes contínuos, sendo 24,3% classificada como DPOC clinicamente significativa.(10) Em contraste, a incidência cumu-lativa de DPOC em 25 anos foi de apenas 7,8% naqueles que nunca fumaram.(10)
Os Obstructive Lung Disease in Northern Sweden Studies (estudos Olin) vêm coletando dados transversais e longitudinais em doenças respiratórias, incluindo a função pulmonar , em diversos grupos recrutados da população em geral em diferentes ocasiões desde 1985. Uma coorte do Olin foi iniciada em dezembro de 1985 com 6.610 indivíduos nascidos em 1919-1920, 1934-1935 e 1949-1950.(11) Em 1996, foi reali-zado o terceiro inquérito daquela coorte, sendo obtidas respostas de 5.189 indivíduos. O objetivo era medir a prevalência da DPOC segundo os critérios GOLD na coorte. Uma amostra aleatória de 1.500 indivíduos foi convidada para uma entrevista estruturada e realização de provas de função pulmonar em 1996 e 1997, sendo que 1.237 completaram a espirometria com técnica aceitável.(11) Em 1996-1997, a prevalência de fumantes era de 23,6% em homens e de 25,6% em mulheres. Os nascidos em 1919-1920, 1934-1935 e 1949-1950 tinham à época, respectiva-mente, idades de 46-47 anos, 61-62 anos e 76-77 anos. Os dados do estudo mostram que, no grupo de 76-77 anos, continuar a fumar fez com que 50% do citado grupo etário desenvolvesse DPOC segundo os critérios GOLD.(11) Idade e tabagismo têm um efeito multiplicativo, sendo que a odds ratio para DPOC no grupo 76-77 anos e fumante foi 33,66 (IC95%: 10,53-107,58).(11)
Concluindo, uma análise mais cuidadosa do livro clássico de Fletcher & Peto(7) e o seguimento prolongado de várias coortes permitem refutar a ideia ainda amplamente repetida de que "apenas 15% dos fumantes são susceptíveis à DPOC". Temos a responsabilidade de informar corre-tamente a nova geração de pneumologistas e divulgar amplamente aos nossos pacientes e à população em geral que até 50% dos fumantes desenvolverão DPOC se fumarem por tempo suficiente e não morrerem antes dos riscos competitivos. Descanse em paz, 15%!
REFERÊNCIAS
1. Ouellette DR. The answer is fifteen percent: what Is the question? Chest. 2004;125(1);3-5. http://dx.doi.org/10.1378/chest.125.1.3
2. Ito I, Nagai S, Hoshino Y, Muro S, Hirai T, Tsukino M, et al. Risk and severity of COPD is associated with the group-specific component of serum globulin 1F allele. Chest. 2004;125(1):63-70. http://dx.doi.org/10.1378/chest.125.1.63
3. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. I Consenso Brasileiro de Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC). J Pneumol. 2000;26(Suppl 1):S1-S52.
4. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. II Consenso Brasileiro sobre Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica - DPOC. J Bras Pneumol. 2004;30(Suppl 5):S1-S42.
5. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia [homepage on the Internet]. Brasília: Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia; c2008 [updated 2008 Jun 20; cited 2016 Apr 1]. Consenso brasileiro sobre doença pulmonar obstrutiva crônica - DPOC - Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia - SBPT - revisão de alguns aspectos de epidemiologia e tratamento da doença estável - 2006. [Adobe Acrobat document, 24p.] Available from: http://www.sbpt.org.br/downloads/arquivos/Consenso_DPOC_SBPT_2006.pdf
6. Fletcher C, Peto R. The natural history of chronic airflow obstruction. Br Med J. 1977;1(6077):1645-8. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.1.6077.1645
7. Fletcher C, Peto R, Tinker C, Speizer F. The natural history of chronic bronchitis and emphysema. New York: Oxford University Press; 1976.
8. Rennard SI, Vestbo J. Natural histories of chronic obstructive pulmonary disease. Proc Am Thorac Soc. 2008;5(9):878-83. http://dx.doi.org/10.1513/pats.200804-035QC
9. Schnohr P, Jensen G, Lange P, Scharling H, Appleyard M. The Copenhagen City Heart Study. Tables with data from the third examination 1991-1994. Eur Heart J. 2001;3(suppl H):H1-H83.
10. Løkke A, Lange P, Scharling H, Fabricius P, Vestbo J. Developing COPD: a 25 year follow up study of the general population. Thorax. 2006;61(11):935-9. http://dx.doi.org/10.1136/thx.2006.062802
11. Lundbäck B, Lindberg A, Lindström M, Rönmark E, Jonsson AC, Jönsson E, et al. Not 15 but 50% of smokers develop COPD?--Report from the Obstructive Lung Disease in Northern Sweden Studies. Respir Med. 2003;97(2):115-22. http://dx.doi.org/10.1053/rmed.2003.1446