A pneumonia adquirida na comunidade (PAC) é a maior causa de morbidade, hospitalização e mortalidade em todo o mundo e representa um desafio diagnóstico e de tratamento.(1) Excetuando-se as causas relacionadas a gestação, parto e puerpério, a PAC constitui-se na principal causa de internação no Brasil no Sistema Único de Saúde. Em 2017, ocorreram 598.668 internações e 52.776 óbitos por PAC em nosso país.(2) Apesar de ser uma afecção das mais frequentes, há poucos estudos nacionais em relação à PAC, sejam eles clínicos ou epidemiológicos.
Na presente edição do JBP, Bahlis et al.(3) publicam um estudo de coorte sobre a PAC em um centro único do interior do Brasil e cuja casuística englobou todos os pacientes que foram internados por PAC ao longo de um ano. Apesar de algumas limitações, a grande virtude do trabalho é a de reforçar alguns conceitos que possuímos em relação à PAC e alertar quanto à necessidade de implementação de medidas que visem melhorar o manejo dessa afecção em nosso país. Podemos destacar entre esses pontos os erros no diagnóstico inicial da pneumonia, a difícil identificação do patógeno, as vantagens na utilização dos escores de gravidade na avaliação inicial do paciente e a importância de se instituir medidas que melhorem o manejo hospitalar dos casos internados.
Observamos na prática clínica diária que há muito erro diagnóstico quando se fala em PAC. Sinais clínicos e laboratoriais característicos de infecção grave, como taquicardia, febre e contagem leucocitária alterada, são inespecíficos e frequentemente estão presentes em outras condições agudas. Biomarcadores, como a proteína C-reativa e a procalcitonina, também são inespecíficos e têm mais valor na eliminação do diagnóstico de infecções do que em um diagnóstico definitivo. Há muito se sabe que há falhas relativamente frequentes na interpretação radiológica feita pelos médicos não especialistas em pneumologia que atendem nos serviços de emergência. (4) Como consequência dessas dificuldades na avaliação clínica inicial, o diagnóstico com precisão da PAC muitas vezes pode ser um desafio. Chama a atenção no estudo de Bahlis et al.(3) que praticamente um terço dos pacientes internados por infecção respiratória não preenchiam critérios diagnósticos de PAC e foram excluídos da análise. Isso pode levantar o debate sobre se os dados de um número elevado de internações por PAC no Brasil estão corretos. Estariam nossas estatísticas insufladas por outras infecções respiratórias erroneamente diagnosticadas como PAC?
Após o diagnóstico, as principais diretrizes recomendam que se deva avaliar a gravidade da PAC por meio de critérios para se gerenciar o local de tratamento e a terapêutica antibiótica. A implementação de diretrizes aos protocolos assistenciais sempre foi outro grande desafio, pois, na prática diária, observa-se que os escores de gravidade não são utilizados por todos os médicos assistentes nas unidades de emergência. No entanto, apesar de falhas de avaliação que podem ser atribuídas a esses escores, a implementação dos mesmos reduz a mortalidade.(5) Silveira et al.(6) já haviam documentado uma concordância entre critérios de internação e terapêutica (73,2%) em uma amostra brasileira, e isso foi relacionado à menor mortalidade em 30 dias. Bahlis et al.(3) também encontraram uma boa capacidade de previsão de mortalidade intra-hospitalar realizada pelos principais escores de gravidade, sem diferenças estatísticas entre Confusion, Urea, Respiratory rate, Blood pressure, and age > 65 years (acrônimo CURB-65) e Pneumonia Severity Index (PSI). Portanto, especialmente para essa questão da avaliação inicial da PAC pelos escores de gravidade, talvez possamos utilizar o velho jargão popular que diz "se é ruim com eles, pior sem eles".
Aumenta o desafio no manejo da PAC a dificuldade na identificação do patógeno causador da infecção. Certos microrganismos também são particularmente difíceis de cultivar, exigindo meios de crescimento específicos ou um ambiente particular. Apesar de ser consagrado o conhecimento de que o principal patógeno relacionado à PAC é o Streptococcus pneumoniae, o fato é que os estudos sobre a etiologia da PAC não conseguem identificar o patógeno na maioria dos doentes.(7) O estudo agora publicado(3) não difere do conceito geral e encontrou o patógeno em apenas 17% dos casos, sendo o principal agente isolado o pneumococo, em 36%.
Conhecer os potenciais agentes etiológicos na PAC, quais deles estão aumentando a sua incidência, seu grau de resistência e sua taxa de letalidade é crítico para uma terapia eficaz. Bahlis et al.(3) observaram uma elevada necessidade de troca de antibióticos (63%) durante a internação. Na maioria das vezes, o tratamento inicial foi realizado com amoxicilina + clavulanato, e a principal alteração observada foi o acréscimo de azitromicina à terapêutica mediante avaliação clínica do médico assistente. A média de duração da hospitalização foi de 7,2 dias (mediana de 5 dias) e, na evolução dos pacientes, 29% necessitaram tratamento em UTI e 15,5% vieram a óbito intra-hospitalar.
Se fosse possível a identificação precoce do agente etiológico, uma provável consequência seria a promoção de um uso mais racional dos antibióticos, com redução das complicações e da mortalidade pela PAC. No entanto, o atual padrão de diagnóstico por meio da hemocultura geralmente leva pelo menos 48-72 h para fornecer um resultado, e, não raro, as culturas permanecem negativas mesmo quando as infecções bacterianas ou fúngicas são fortemente suspeitas. Isso faz com que pacientes com PAC tenham seu tratamento iniciado empiricamente e, em muitas vezes, com espectro antibiótico mais amplo para aumentar a probabilidade de um organismo patogênico ser adequadamente coberto. Essa abordagem, embora válida nos dias atuais, apresenta aspectos negativos, que incluem o potencial de toxicidade com múltiplos antibióticos, os altos custos associados e o desenvolvimento de resistência aos antimicrobianos.
Os resultados após o desenvolvimento recente de novos testes moleculares rápidos e muito sensíveis trouxeram informações surpreendentes sobre as causas da PAC. Pela primeira vez foram detectados múltiplos agentes que não foram observados em estudos mais antigos. Esses métodos cada vez mais identificam os vírus respiratórios em pacientes com PAC, entre eles, rinovírus e Influenza.(8) Patógenos foram identificados em até 6 h na corrente sanguínea de pacientes infectados com alta sensibilidade e com probabilidade três vezes maior de identificar um organismo do que a cultura padrão. Esses achados apresentaram o potencial de alterar o tratamento antibiótico em até 57% dos pacientes estudados.(9)
O conhecimento sobre a PAC passou por fases nas quais se valorizou bastante a presença dos patógenos chamados atípicos, e hoje estamos passando por uma fase onde os vírus estão sendo bastante considerados. A real importância do achado dos vírus nas secreções respiratórias dos doentes ainda está por ser estabelecida, pois ainda se desconhece se eles são patógenos efetivos ou copatógenos em pneumonias. Precisamos ainda desenvolver habilidades em lidar com os testes moleculares; eles trazem a perspectiva futura de se definir rapidamente a causa da PAC e modificar a abordagem inicial. Isso pode permitir uma terapia antibiótica dirigida e não empírica, como fazemos atualmente.
Outro desafio importante quando se fala no tratamento da PAC é o tempo de início da antibioticoterapia a partir do diagnóstico. Estudos consagraram que a demora no início da antibioticoterapia acima de 4 h eleva o potencial risco de complicações e de morte do paciente. (10) Já as diretrizes atuais de sepse recomendam o início da antibioticoterapia idealmente dentro da primeira hora, já que qualquer atraso na terapia pode resultar em diminuição da sobrevida.(11) O estudo publicado no presente número do JBP(3) levanta também essa discussão quando demonstra o elevado tempo decorrido para o início da antibioticoterapia (média de 10 h), sendo que foram poucos os pacientes que receberam antibióticos nas primeiras 4 h: apenas 19%. Pelo fato de a grande maioria dos pacientes ter recebido a primeira dose de antibiótico após um tempo bastante longo, os autores não puderam correlacionar essa demora com a alta taxa de mortalidade intra-hospitalar e a grande necessidade de internação em UTI na população estudada. Esses dados alertam para a necessidade de que os hospitais implementem medidas que agilizem a administração da primeira dose de antibiótico nos casos de PAC dentro do serviço de emergência, com a sugestão para que isso seja realizado até mesmo para aqueles doentes que irão realizar o tratamento domiciliar.
A PAC se constitui em um sério problema de saúde pública em nosso país. Em um momento em que revisamos e atualizamos as recomendações brasileiras para o manejo da PAC, a realização de estudos que desnudem a realidade nacional e alertem para a necessidade de medidas que melhorem o diagnóstico e o manejo terapêutico são fundamentais. Promover a adoção de protocolos de atendimento nas instituições com medidas ajustadas à nossa realidade pode reduzir o excessivo número de internações e a taxa de mortalidade por pneumonia no Brasil.
REFERÊNCIAS
1. Wiemken TL, Peyrani P, Ramirez JA. Global changes in the epidemiology of community-acquired pneumonia. Semin Respir Crit Care Med. 2012;33(3):213-9. https://doi.org/10.1055/s-0032-1315633
2. Departamento de Informática do SUS - DATASUS [homepage on the Internet]. Brasília: Ministério da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde. [cited 2018 May 26]. Morbidade Hospitalar do SUS - por local de residência - Brasil. Available from: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/obt10uf.def
3. Bahlis LF, Diogo LP, Kuchenbecker RS, Fuchs SC. Perfil clínico, epidemiológico e etiológico de pacientes internados com pneumonia adquirida na comunidade em um hospital público do interior do Brasil. J Bras Pneumol. 2018;44(4):261-66.
4. Morrone N, Freire JA, Pereira CA, Saito M, Mendes ES, Dourado AD. Erros diagnósticos em pneumonia adquirida na comunidade: freqüência, causas e conseqüências. J Pneumol. 1987;13(1):1-6.
5. Menéndez R, Torres A, Zalacaín R, Aspa J, Martín-Villasclaras JJ, Borderías L, et al. Guidelines for the treatment of community-acquired pneumonia: predictors of adherence and outcome. Am J Respir Crit Care Med. 2005;172(6):757-62. https://doi.org/10.1164/rccm.200411-1444OC
6. Silveira CD, Ferreira CS, Corrêa Rde A. Adherence to guidelines and its impact on outcomes in patients hospitalized with community-acquired pneumonia at a university hospital. J Bras Pneumol. 2012;38(2):148-57. https://doi.org/10.1590/S1806-37132012000200002
7. Welte T, Torres A, Nathwani D. Clinical and economic burden of community-acquired pneumonia among adults in Europe. Thorax. 2012;67(1):71-9. https://doi.org/10.1136/thx.2009.129502
8. Jain S, Self WH, Wunderink RG, Fakhran S, Balk R, Bramley AM, et al. Community-Acquired Pneumonia Requiring Hospitalization among U.S. Adults. N Engl J Med. 2015;373(5):415-27. https://doi.org/10.1056/NEJMoa1500245
9. Vincent JL, Brealey D, Libert N, Abidi NE, O'Dwyer M, Zacharowski K, et al. Rapid Diagnosis of Infection in the Critically Ill, a Multicenter Study of Molecular Detection in Bloodstream Infections, Pneumonia, and Sterile Site Infections. Crit Care Med. 2015;43(11):2283-91. https://doi.org/10.1097/CCM.0000000000001249
10. Lee JS, Giesler DL, Gellad WF, Fine MJ. Antibiotic Therapy for Adults Hospitalized With Community-Acquired Pneumonia. A Systematic Review. JAMA. 2016;315(6):593-602. https://doi.org/10.1001/jama.2016.0115
11. Dellinger RP, Levy MM, Rhodes A, Annane D, Gerlach H, Opal SM, et al. Surviving Sepsis Campaign: International guidelines for manage-ment of severe sepsis and septic shock, 2012. Intensive Care Med. 2013;39(2):165-228. https://doi.org/10.1007/s00134-012-2769-8