O tabagismo, como epidemia, teve inicio no final do século XIX, impulsionado pela invenção da máquina de fabricar cigarros; no século XX, ele foi impulsionado pela indústria da propaganda, o cinema, as grandes guerras e a ampliação da circulação de mercadorias e de pessoas. Detectados seus grandes males de maneira consistente a partir de 1950,(1) desde a última década do século passado, uma global e eficiente política(2) para sua redução ganhou impulso e, com ela, a redução do impacto na saúde das pessoas. No Brasil, a implementação de políticas, como a proibição de propaganda, o alerta em maços de cigarro, a ampliação das informações sobre os malefícios de seu consumo, a proibição de fumar em ambientes fechados, o aumento do preço dos produtos do tabaco e o aumento de serviços de apoio à cessação, contribuíram para uma redução significativa nas prevalências de fumantes(3) nos sexos masculino e feminino, respectivamente, que caíram de 43,3% e 27,0% em 1989(4) para 12,6% e 8,2% em 2015.(5) Entretanto, globalmente e entre nós, o tabagismo ainda é o segundo fator de risco de óbitos, sendo estimados 7,13 milhões em 2016.(6) Além disso, aproximadamente 1,1 bilhão de pessoas com 15 anos ou mais ainda fumam.(7)
Com o cerco se fechando contra o uso do tabaco, com os esforços mais recentes para a proibição de uso de aditivos flavorizantes e com a imposição do maço de cigarros genérico, a indústria reage apresentando novas estratégias. Busca se apresentar como interessada em proteger a saúde das pessoas, passa a reconhecer os malefícios do tabagismo e a oferecer alternativas, passando a produzir produtos como o cigarro eletrônico (aquecimento perto de 100°C) e o cigarro aquecido (aquecimento perto de 300°C), ambos os dispositivos/cigarros eletrônicos de oferta de nicotina na forma aquecida.
Tema do momento, controvérsia entre pesquisadores e sociedades médicas sobre seu emprego para a redução de danos ou como mais uma opção de tratamento para a cessação de tabagismo,(8-11) a nova estratégia da indústria do tabaco, que investe no cigarro eletrônico e no cigarro aquecido como forma de oferecer nicotina aos fumantes atuais e estimular à iniciação tabágica, vem sendo objeto de estudos em todo o mundo. Dispositivos com desenhos atraentes e uso de aditivos com sabores buscam atrair, sobretudo os jovens, como esforço de manter a dependência à nicotina, estimulando a dualidade no consumo - tabaco queimado e dispositivos eletrônicos - e assim manter seu lucrativo mercado.
Crescentes estudos trazem evidências da elevação do uso de cigarros eletrônicos pelos jovens e que os mesmos têm maior risco de se tornarem consumidores regulares de produtos do tabaco, com reduzida percepção dos riscos, e tornarem-se dependentes da nicotina.(12) Essas razões, associadas aos riscos do cigarro eletrônico que, além da nicotina, que causa dependência e não é isenta de riscos cardiovasculares, contém diversos produtos químicos tóxicos(13) e oferta uma quantidade de partículas inaladas que supera em muito as recomendações limite para a exposição ambiental a material particulado,(14) levaram a sociedades médicas respiratórias internacionais(12) a recomendar que o dispositivo seja considerado e regulado como um produto do tabaco, tenha sua venda proibida para jovens, tenha seu uso proibido em ambientes internos, ou seja, seja considerado seu impacto ambiental negativo, estimulando mais estudos sobre seus efeitos.
O estudo publicado por Oliveira e al.(15) no presente número do JBP a respeito do conhecimento sobre o cigarro eletrônico e sua experimentação/uso em estudantes universitários revelou que 37% dos mesmos tinham conhecimento sobre o produto, 2,7% o haviam experimentado, e 0,6% fazia uso regular do mesmo. As prevalências estiveram associadas à menor idade, a um maior nível de escolaridade dos pais e à presença de fumantes na família.(15) Apesar de a prevalência de uso regular ser inferior à observada em outros países(16,17) e em um estudo que avaliou uma amostra de indivíduos acima de 18 anos nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre,(18) o estudo de Oliveira e al.(15) chama a atenção pela elevada taxa de conhecimento do produto.
Um estudo recém-publicado realizado no Canadá envolvendo mais de 28 mil indivíduos de ambos os sexos (15-54 anos) reforça a necessidade de atenção sobre o tema.(19) O estudo revelou que 7,7%, 6,0% e 4,9% dos participantes, respectivamente, faziam uso de cigarro convencional, de cigarro eletrônico + cigarro convencional e apenas de cigarro eletrônico e que os usuários que combinavam o uso de cigarros regulares com o eletrônico apresentavam uma exposição à fumaça ambiental do tabaco (FAT) mais alta do que os fumantes de tabaco e que, embora os usuários exclusivos de cigarros eletrônicos estivessem menos expostos à FAT do que os fumantes de tabaco, ainda assim esses apresentavam uma exposição à FAT mais alta do que aqueles que nunca fumaram, evidenciando o perfil de comportamento do usuário do cigarro eletrônico.
No Brasil a implantação de políticas para a redução do tabagismo referidas acima é responsável pela queda acentuada na prevalência de fumantes, sendo um fator que deve desestimular a adoção da liberação do uso de mais um produto da indústria do tabaco, seja como estratégia para a redução de danos, seja para a cessação tabágica. Ainda temos medidas a ser implementadas, como a eliminação do uso de flavorizantes nos cigarros, a contenção do contrabando, a eliminação da venda de cigarros avulsos em bancas de jornal e em outros pontos de venda e a ampliação dos serviços de apoio à cessação, enquanto aguardamos informações de pesquisas adicionais sobre o impacto do uso crônico dos novos dispositivos.
Que razão deve ter um médico para prescrever um produto da indústria do tabaco que, mesmo tendo conhecimentos sobre o desastroso impacto para a saúde, sempre tardou em reconhecer esse impacto e a dependência causada pela nicotina e que persiste na recusa a reparar vítimas, como demonstram à exaustão os documentos produzidos pela própria indústria tabaqueira e liberados para conhecimento público nas últimas décadas?(20) Pelos conhecimentos atuais, nenhuma.
REFERÊNCIAS
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