O tabagismo segue liderando a interminável maratona de fatores de riscos que contribuem para a ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis, sendo objeto para a implementação do plano de ação global de prevenção dessas doenças até 2020(1) e da Agenda do Desenvolvimento Sustentável 2030, ambos da Organização Mundial da Saúde.(2)
Como principal causa de doença evitável no mundo, o tabagismo é responsável direto por um sexto de todas as mortes no mundo e ainda mata oito milhões de pessoas a cada ano,(3) sendo 156 mil no Brasil.(4)
Com a pressão exercida pela introdução de cigarros eletrônicos e cigarros aquecidos, novas ondas promovidas pela indústria do tabaco na internet e direcionadas a adolescentes e adultos jovens têm levado a uma epidemia de consumo de tabaco sem precedentes, detectada pelo Food and Drug Administration nos EUA em 2018.(5) Isso poderá minar os esforços da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde.(6,7)
A despeito dos excelentes resultados das políticas de controle do tabagismo no Brasil através de um conjunto de medidas voltadas para a prevenção da iniciação tabágica e redução de seu consumo,(8) há ainda 18 milhões de tabagistas que requerem uma abordagem para a cessação do tabagismo.(9) O Brasil foi um dos países pioneiros na oferta de tratamento do tabagismo no Sistema Público de Saúde, previsto no artigo 14 da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco.(7) As evidências científicas demonstram que a abordagem do tabagista requer, além de programas de intervenção custo-efetivos e baseados em aconselhamento comportamental associado à farmacoterapia,(10) que se reconheçam os fatores de natureza física, emocional e comportamental que favorecem, condicionam, estimulam ou mantêm a dependência química de nicotina.(11) Entre esses fatores, é importante que o médico considere a percepção de riscos à saúde devido ao consumo de tabaco pelo tabagista e o quanto essa percepção pode favorecer a motivação para parar de fumar.
Além da tradicional escala de avaliação do grau de dependência introduzida por Karl Fagerström, outras escalas têm sido testadas e validadas para avaliar o contexto dos fatores relacionados a motivação, autoeficácia, níveis de ansiedade e depressão, razões para fumar e estágios para a mudança do comportamento.(12)
O treinamento para a aplicação da maioria dessas escalas é simples, e sua aplicação despende pouco tempo na avaliação clínica inicial do tabagista e permite conhecer os fatores preditores e dificultadores na prevenção, cessação tabágica e manutenção da abstinência, além daqueles que mantêm o indivíduo oscilando na mudança comportamental, em estado de ambivalência.(13,14)
Em geral, o tabagismo é descrito por muitos indivíduos como um meio para controlar seus sentimentos. Tomkins(15) descreveu quatro características motivacionais básicas do comportamento dos fumantes: fumar para aumentar um efeito agradável/positivo; fumar para reduzir um efeito negativo; fumar como hábito ou sem buscar atenuar/aumentar algum efeito; ou fumar por ter dependência química. Essas características exigem que se trabalhe com afetos positivos e negativos. Com base nesse modelo, foi criada a Reasons for Smoking Scale (RSS, Escala Razões para Fumar), originalmente composta por 23 itens e seis subescalas: manejo, prazer, hábito/automatismo, estímulo, redução de tensão/relaxamento e dependência.(16,17)
A Modified Reasons for Smoking Scale (MRSS)(18) consiste em 21 questões e sete subescalas. A MRSS é uma escala amplamente aceita que oferece a oportunidade de uma avaliação mais integral do fumante e um perfil psicológico mais detalhado. Além disso, a MRSS é prática para uso porque é curta, não levando mais do que alguns minutos para ser preenchida.
A validade e a confiabilidade da MRSS foram confirmadas em versões traduzidas em alguns idiomas. Berlin et al.(18) testaram a versão francesa do MRSS em fumantes do sexo masculino e feminino que participaram de um programa de cessação do tabagismo e que tinham grande intenção de parar. A versão holandesa da MRSS foi testada em homens e mulheres fumantes que também tinham uma grande intenção de parar.(19) A versão brasileira foi testada por de Souza et al.(20) em doadores de sangue do sexo masculino e feminino e que não tinham intenção de parar de fumar.
A MRSS tem sido aplicada em estudos com subgrupos de tabagistas. Em um estudo longitudinal com 97 grávidas fumantes foram avaliados os fatores psicológicos e sociais possivelmente relacionados à interrupção do tabagismo durante a gravidez. A razão mais importante para se continuar fumando foi a redução da tensão emocional, seguida por prazer e dependência.(21) Outros estudos relataram que grávidas tinham a percepção dos riscos à saúde do feto associados ao tabagismo, mas esse conhecimento foi insuficiente para motivá-las a parar de fumar.(22,23) Um estudo sugeriu que a dependência da nicotina pode ser a barreira de saúde mais importante para a cessação do tabagismo durante a gravidez.(24)
No presente número do JBP, Rocha et al.(25) realizaram um estudo de corte transversal, de base populacional, utilizando a escala MRSS da Universidade de São Paulo, validada para uso no Brasil,(26) e avaliaram os escores dos respectivos domínios da escala segundo variáveis demográficas (sexo, classe socioeconômica e escolaridade), carga tabágica (anos-maço), distúrbios de humor (ansiedade e depressão) e diagnóstico de DPOC por espirometria.
O estudo teve como foco principal a identificação de fatores envolvidos no consumo de tabaco com o propósito de atuar na prevenção da dependência de nicotina e no aconselhamento para a cessação tabágica. Os autores destacaram a importância de informações sobre as razões que mantêm o indivíduo fumando, o que é um diferencial relevante em relação a outros estudos por desenvolver estratégias para a cessação do tabagismo.
Conhecer e aplicar a escala MRSS, portanto, faculta ao médico uma melhor abordagem do tabagismo. Essa é uma extraordinária ferramenta que permite avaliar as motivações para fumar.
REFERÊNCIAS
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