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Editorial

Narguilé, uma forma de consumo de tabaco em ascensão

Waterpipe smoking, a form of tobacco consumption that is on the rise

Stella Regina Martins1,a, Ubiratan de Paula Santos1,b

DOI: 10.1590/1806-3713/e20190315

O equipamento conhecido como narguilé (também chamado de shisha, hookah ou water pipe), usado principalmente em países do norte da África e da Ásia, surgiu provavelmente na Índia no século XVI.(1) O consumo de tabaco com seu uso vem crescendo em todo o mundo e, especialmente entre jovens, tem se tornado epidêmico.(2)

Um estudo envolvendo 11 mil recrutas das Forças Armadas dos Estados Unidos revelou que 28% já tinham feito uso de narguilé e que 10% fizeram seu uso no último mês. Seu uso foi maior entre fumantes de cigarros, indivíduos mais jovens e indivíduos solteiros.(3)

No presente número do JBP, Araújo et al.(4) abordam uma pesquisa realizada com estudantes do 3º e 6º anos de uma faculdade de medicina no estado de Goiás que, embora envolvendo um pequeno número de alunos, revelou uma preocupante situação. A prevalência de experimentação de narguilé alcançou cerca de 60%, sendo que um terço dos alunos afirmou tê-lo usado nos últimos seis meses e 28% o fez nos últimos 30 dias. A prevalência foi maior em fumantes (80%) e nos que consumiam bebidas alcoólicas (72%). A maioria dos estudantes informou que fumar narguilé fazia mal; essa proporção foi maior entre os alunos do 6º ano. Entretanto, apesar de seu maior conhecimento em relação aos riscos, não houve diferenças na prevalência de seu uso. Esses dados revelam uma prevalência maior em relação ao estudo com recrutas supracitado(3) e em uma pesquisa com estudantes de medicina de uma universidade brasileira.(5)

No Brasil, existem poucos estudos populacionais sobre a prevalência do uso do narguilé. No período entre maio e dezembro de 2015, foi realizado um estudo com 16.273 indivíduos na faixa etária de 12 a 65 anos, através de entrevistas presenciais, em 26 capitais e no Distrito Federal.(6) Os resultados evidenciaram que a proporção total do uso do narguilé nos últimos 12 meses foi de 1,65%, ou seja, o equivalente a 2,5 milhões de indivíduos. Entre os mais jovens (12-24 anos) que se declararam tabagistas, 18,96% fumaram narguilé nos últimos 12 meses, enquanto, entre não tabagistas, essa proporção foi de 2,71%. Esse mesmo estudo revelou que, comparado ao uso de cigarros, a maior prevalência de uso de narguilé está entre jovens de alto nível socioeconômico e na população de não heterossexuais.(6)

Durante muitos séculos, o narguilé foi visto como uma forma mais segura e menos danosa à saúde para se fumar o tabaco. Entretanto, as evidências científicas disponíveis na atualidade não sustentam mais essa hipótese.(7) Um fator importante no crescente uso do equipamento é a falsa percepção de segurança, sustentada, por um lado, pela crença de que as substâncias tóxicas seriam filtradas pela água e, por outro lado, pelo fato de que o narguilé é fumado com menor frequência que cigarros, devido à pouca praticidade de seu uso durante as atividades habituais. A propaganda cada vez mais extensa e intensa, o fácil acesso, a inclusão de aditivos com inúmeros sabores e aromas atrativos no fumo e o comportamento de se fumar em grupo são outros importantes determinantes.(8)

Sabemos que, durante o uso do narguilé, ocorre não somente a queima do carvão, mas também a combustão incompleta do tabaco, visto que essa acontece em uma temperatura próxima a 500°C, inferior à temperatura de combustão do cigarro comum. Nessa temperatura são liberadas concentrações mais elevadas de produtos tóxicos que são inalados pelos seus usuários e pelos que estão no mesmo ambiente não apenas no momento do uso, pois materiais particulados com cancerígenos adsorvidos persistem durante dias no recinto.(9)

Cerca de 300 produtos químicos já foram identificados na fumaça do narguilé.(10) Dentre os produtos identificados, foram quantificadas 82 substâncias tóxicas, 23 delas cancerígenas; entre elas, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, compostos heterocíclicos, aminas aromáticas primárias, aminas N-heterocíclicas, nitrosaminas específicas do tabaco e metais, responsáveis por doenças cardiorrespiratórias e câncer, além da nicotina, que causa dependência.(8)

No mercado, existem inúmeros produtos com e sem tabaco para uso no narguilé. Os produtos informados como sem tabaco, conhecidos também como essências herbais, estão isentos de nicotina. Nos rótulos das essências herbais, comercializadas como "uma alternativa mais saudável de fumar o narguilé", encontramos os descritores "livre de tabaco, 0% nicotina e 0% alcatrão", tornando-as mais atrativas para os jovens.(9) Entretanto, pesquisas evidenciaram que as essências herbais são adocicadas com a cana-de-açúcar, que forma o melaço. Mediante o aquecimento, são gerados altos teores dos cancerígenos aldeídos voláteis na fumaça.(11) A única diferença encontrada na corrente primária do fumo para narguilé com ou sem tabaco foi a ausência de nicotina no segundo. Todas as outras substâncias tóxicas e cancerígenas, como alcatrão, monóxido de carbono, óxido nítrico, fluoranteno, pireno, formaldeído, acetaldeído e acetona, estavam em concentrações iguais ou até mais elevadas nas essências herbais do que no fumo com tabaco.(8)

Os resultados das inúmeras pesquisas e os dados de estudos realizados no Brasil,(5,6) assim como os publicados no presente número do JBP,(4) reforçam a necessidade da adoção de novas medidas, baseadas nos artigos da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial de Saúde, ratificada pelo Brasil em 2005,(12) a fim de proteger as gerações atuais e futuras dos malefícios do produto em questão. Entre as medidas recomendadas, podemos citar a proibição de símbolos, imagens e palavras que levem à conclusão equivocada de que o narguilé, seus produtos e acessórios são menos prejudiciais à saúde; a proibição de aditivos atrativos; a proibição de estabelecimentos e de comércio do narguilé e de seus produtos perto de instituições educacionais; e a inserção de rótulos com advertências sobre os danos de seu uso tanto no corpo do equipamento, quanto nos seus acessórios. Também é fundamental a sensibilização e a qualificação de profissionais de saúde, educadores e de toda a população sobre os perigos à saúde causados não somente pelo narguilé, com ou sem tabaco, mas também pelas novas modalidades de produtos de tabaco, tais como o cigarro eletrônico e o tabaco aquecido, com os quais a indústria do tabaco tenta reverter a queda, mundialmente observada, na prevalência de tabagistas.(7,13-15)

REFERÊNCIAS

1. World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: WHO. Tobacco Free Initiative. WHO Study Group on Tobacco Product Regulation (TobReg) [cited 2019 Jul 1]: Advisory Note: Waterpipe Tobacco Smoking: Health Effects, Research Needs and Recommended Actions by Regulators; 2005. [Microsoft Word document, 20p.]. Available from: http://www.who.int/tobacco/global_interaction/tobreg/Waterpipe%20recommendation_Final.pdf?ua=1
2. Maziak W. The global epidemic of waterpipe smoking. Addict Behav. 2011;36(1-2):1-5. https://doi.org/10.1016/j.addbeh.2010.08.030
3. Linde BD, Ebbert JO, Pasker CK, Wayne Talcott G, Schroeder DR, Hanson AC, et al. Prevalence and predictors of hookah use in US Air Force military recruits. Addict Behav. 2015;47:5-10. https://doi.org/10.1016/j.addbeh.2015.03.012
4. Araújo RS, Milhomem YO, Pereira HFS, Silva Junior JLR. Factors related to the use of hookah among medical students. J Bras Pneumol. 2019;45(5):e20180184. https://dx.doi.org/10.1590/18063713/e20180184
5. Martins SR, Paceli RB, Bussacos MA, Fernandes FL, Prado GF, Lombardi EM, et al. Experimentation with and knowledge regarding water-pipe tobacco smoking among medical students at a major university in Brazil. J Bras Pneumol. 2014;40(2):102-10. https://doi.org/10.1590/S1806-37132014000200002
6. Bertoni N, Szklo A, Boni RD, Coutinho C, Vasconcellos M, Nascimento Silva P, et al. Electronic cigarettes and narghile users in Brazil: Do they differ from cigarettes smokers? Addict Behav. 2019;98:106007. https://doi.org/10.1016/j.addbeh.2019.05.031
7. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva [homepage on the Internet]. Rio de Janeiro: INCA; c2019 [cited 2019 Sep 1]. Narguilé: o que sabemos? [Adobe Acrobat document, 102p.]. Available from: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//narguile-o-que-sabemos.pdf
8. Shihadeh A, Schubert J, Klaiany J, El Sabban M, Luch A, Saliba NA. Toxicant content, physical properties and biological activity of waterpipe tobacco smoke and its tobacco-free alternatives. Tob Control. 2015;24 Suppl 1:i22-i30. https://doi.org/10.1136/tobaccocontrol-2014-051907
9. Torrey CM, Moon KA, Williams DA, Green T, Cohen JE, Navas-Acien A, et al. Waterpipe cafes in Baltimore, Maryland: Carbon monoxide, particulate matter, and nicotine exposure. J Expo Sci Environ Epidemiol. 2015;25(4):405-10. https://doi.org/10.1038/jes.2014.19
10. Hammal F, Chappell A, Wild TC, Kindzierski W, Shihadeh A, Vanderhoek A, et al. 'Herbal' but potentially hazardous: an analysis of the constituents and smoke emissions of tobacco-free waterpipe products and the air quality in the cafés where they are served. Tob Control. 2015;24(3):290-7. https://doi.org/10.1136/tobaccocontrol-2013-051169
11. Monzer B, Sepetdjian E, Saliba N, Shihadeh A. Charcoal emissions as a source of CO and carcinogenic PAH in mainstream narghile waterpipe smoke. Food Chem Toxicol. 2008;46(9):2991-5. https://doi.org/10.1016/j.fct.2008.05.031
12. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco.Texto oficial. Rio de Janeiro: INCA; 2011.
13. Hoffman SJ, Mammone J, Rogers Van Katwyk S, Sritharan L, Tran M, Al-Khateeb S, et al. Cigarette consumption estimates for 71 countries from 1970 to 2015: systematic collection of comparable data to facilitate quasi-experimental evaluations of national and global tobacco control interventions. BMJ. 2019;365:l2231. https://doi.org/10.1136/bmj.l2231
14. Levy D, de Almeida LM, Szklo A. The Brazil SimSmoke policy simulation model: the effect of strong tobacco control policies on smoking prevalence and smoking-attributable deaths in a middle income nation. PLoS Med. 2012;9(11):e1001336. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001336
15. GBD 2015 Tobacco Collaborators. Smoking prevalence and attributable disease bur-den in 195 countries and territories, 1990-2015: a systematic analysis from the Global Burden of Disease Study 2015. Lancet. 2017;389(10082):1885-1906. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(17)30819-X

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