AO EDITOR,Estima-se que um quarto da população mundial tenha infecção latente por Mycobacterium tuberculosis (ILTB), o que gera potenciais novos casos de tuberculose ativa.(1) A maioria dos casos que progridem para a doença ativa ocorre nos primeiros 2-5 anos após a exposição ao caso índice de tuberculose.(2) Os profissionais de saúde que apresentam conversão aos testes para a ILTB - prova tuberculínica (PT) ou interferon-gamma release assay (IGRA, ensaio de liberação do interferon-gama) - estão sob esse risco de adoecimento. Diante disso, o Ministério da Saúde(3) recomenda o monitoramento anual desse grupo para a ILTB e a prescrição da profilaxia para aqueles casos que apresentarem conversão a qualquer um dos testes utilizados para o diagnóstico dessa infecção.
No presente estudo foi utilizado o teste QuantiFERON-TB Gold In-Tube (QTF; Quiagen, Hilden, Alemanha), um IGRA, para avaliar a incidência da ILTB entre profissionais da atenção básica à saúde em duas cidades brasileiras: Vitória (ES) - taxa de incidência = 40/100.000 habitantes - e Manaus (AM) -taxa de incidência = 71/100.000 habitantes.
Trata-se de um estudo de coorte prospectiva, realizado entre 2011 e 2013, em profissionais da atenção básica à saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares ou técnicos em enfermagem e agentes comunitários de saúde) submetidos a QTF em dois momentos diferentes, entre 18 e 24 meses de acompanhamento.
Todos os profissionais assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. A coleta das amostras de sangue para a realização de QTF e do teste rápido para HIV e demais detalhes metodológicos foram realizados conforme descrito por de Souza et al.(4)
Em 2013, foi realizada a segunda avaliação da coorte. Além dos critérios de inclusão anteriores, consideramos como critério de inclusão, para a segunda etapa do estudo, ter apresentado resultado negativo no primeiro QTF. Para minimizar a variabilidade, protocolos semelhantes foram utilizados para os testes basais e no acompanhamento.
Como naquela ocasião o resultado do QTF não era padronizado para o diagnóstico da ILTB no Brasil,(5) os participantes com resultados positivos na primeira etapa foram avaliados por um médico infectologista, que considerou os resultados de QTF e PT. Logo, aqueles com conversão à PT foram encaminhados ao Programa de Controle de Tuberculose.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo, localizada na cidade de Vitória (ES) (Protocolo no. 007/10, março de 2010). Todas as informações foram codificadas e armazenadas anonimamente em um banco de dados criado em Microsoft Excel for Windows. Para a análise descritiva, foi utilizado o software Stata, versão 13.1 (StataCorp LP, College Station, TX, EUA), e foi incluída a estimativa do risco de conversão a QTF por meio do método atuarial Cumulative Incidence Based on the Life-Table Interval Approach (Actuarial Life Table).(6,7) Nesse método, a probabilidade cumulativa do evento durante um determinado intervalo de tempo (t0 − t) é a proporção de novos eventos durante esse período, sendo o denominador a população inicial (N0) corrigida pelas perdas (W) que, como pressuposto, se distribuem homogeneamente no intervalo de tempo considerado; por isso, na média, é como se todas as perdas ocorressem no meio do período de observação (W/2), conforme a equação(6,7):
onde t0 − t é o intervalo de tempo considerado (entre 18 e 24 meses); I é o número de casos novos em t0 − t (12 profissionais de saúde converteram a QTF); N0 é o número de indivíduos sob risco no início do período de seguimento (339 profissionais de saúde); e W é o número de perdas em t0 − t (276 profissionais de saúde).
Na primeira etapa do estudo, 339 profissionais de saúde foram avaliados. Entre eles, 303 (89,4%) eram mulheres, e a mediana [intervalo interquartil] da idade foi de 41 [26-63] anos.
A prevalência de ILTB de acordo com o QTF na primeira etapa foi de 23,3%. Com isso, 260 profissionais de saúde foram elegíveis para o seguimento, posto que apresentaram resultado negativo para o primeiro QTF. Devido à rotatividade desses profissionais na rede pública, acrescido da ausência dos mesmos nas unidades de saúdes no dia agendado, 63 profissionais de saúde (24,2%) estavam disponíveis para realizar a segunda avaliação.
A mediana da idade na segunda etapa foi de 46 [39-53] anos, 10 indivíduos (16,4%) afirmaram ser portadores de alguma morbidade, e apenas 7 (11,1%) referiram ter convivido com alguém com tuberculose nos últimos 2 anos. Em relação às características ocupacionais e de biossegurança, 44 indivíduos (69,8%) relataram assistência à pacientes portadores de tuberculose nos últimos 2 anos, e 40 (64,4%) referiram que nem sempre havia disponibilidade de uso da máscara N95.
Ao considerar as perdas aleatórias e a razão do cálculo proposto, a probabilidade de conversão a QTF entre 18 e 24 meses de acompanhamento foi de 7,4%.
Estudos realizados em países de baixa e média renda revelaram que a taxa de conversão a IGRA em profissionais de saúde variou de 10-30%.(8) Em estudos realizados na atenção básica e secundária em países com alta taxa de incidência da tuberculose, ao se considerar o nível de atenção à saúde, a taxa de conversão a IGRA variou de 14-22%.(9) Na atenção terciária, em um estudo realizado na Índia, essa taxa foi de 11,6%.(10) Contudo, nenhum desses estudos considerou as perdas de seguimento no cálculo da incidência de conversão a IGRA.
Este foi o primeiro estudo a fornecer estimativas da incidência da ILTB na atenção básica no Brasil e a utilizar um IGRA como teste diagnóstico para a avaliação dessa medida de frequência. Contudo, há algumas limitações do estudo: a perda de seguimento foi alta (em torno de 75%) e, como não havia um teste de referência para o diagnóstico da ILTB, a estimativa da incidência dessa infecção pode ter sido influenciada pelo desempenho do QTF.
Entre as estratégias propostas para o alcance do controle da tuberculose pela Organização Mundial da Saúde e pela estratégia End TB, destaca-se a importância do diagnóstico e tratamento da ILTB como uma das ações capazes de imprimir as necessárias mudanças nessas ações programáticas. Por fim, avaliar, monitorar e tratar adequadamente pessoas sob o risco de ILTB, como os profissionais de saúde, são, sem dúvida, algumas das ações que podem contribuir para o fim da tuberculose como epidemia até 2035.
APOIO FINANCEIROO presente estudo recebeu apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq; Edital Universal no. 14/2009) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES; Edital Universal no. 012/11).
REFERÊNCIAS1. Behr MA, Edelstein PH, Ramakrishnan L. Revisiting the timetable of tuberculosis. BMJ. 2018;362:k2738. https://doi.org/10.1136/bmj.k2738
2. World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: World Health Organization [updated 2018; cited 2019 Mar 10]. Latent tuberculosis infection: Updated and consolidated guidelines for programmatic management. [internet]. 2018. Available from: https://www.who.int/tb/publications/2018/latent-tuberculosis-infection/en/
3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Protocolo de vigilância da infecção latente pelo Mycobacterium tuberculosis no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.
4. de Souza FM, do Prado TN, Pinheiro Jdos S, Peres RL, Lacerda TC, Loureiro RB, et al. Comparison of interferon-γ release assay to two cut-off points of tuberculin skin test to detect latent Mycobacterium tuberculosis infection in primary health care workers. PLoS One. 2014;9(8):e102773. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0102773
5. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.
6. Jekel JF, Katz DL, Elmore JG, Wild D. Epidemiology, biostatistics, and preventive medicine. Philadelphia: Elsevier Health Sciences; 2007.
7. Szklo M, Nieto FJ. Epidemiology: Beyond the Basics. 4th ed. Burlington (MA): Jones & Bartlett Learning; 2018.
8. Apriani L, McAllister S, Sharples K, Alisjahbana B, Ruslami R, Hill PC, et al. Latent tuberculosis infection in health care workers in low- and middle-income countries: an updated systematic review. Eur Respir J. 2019;53(4). pii: 1801789. https://doi.org/10.1183/13993003.01789-2018
9. Machado PC, Valim ARM, Maciel ELN, Prado TN, Borges TS, Daronco A, et al. Comparison of tuberculin test and interferon-gamma release assay for diagnosing latent tuberculosis in Community Health Workers, State of Rio Grande do Sul, Brazil, 2012 [Article in Portuguese]. Epidemiol Serv Saude. 2014;23(4):675-681. https://doi.org/10.5123/S1679-49742014000400009
10. Pai M, Joshi R, Dogra S, Mendiratta DK, Narang P, Kalantri S, et al. Serial testing of health care workers for tuberculosis using interferon-gamma assay. Am J Respir Crit Care Med. 2006;174(3):349-55. https://doi.org/10.1164/rccm.200604-472OC