Em dezembro de 2019, foram relatados os primeiros casos de uma pneumonia de etiologia desconhecida na cidade de Wuhan, Hubei, China. No dia 7 de janeiro de 2020, confirmou-se de que se tratava de um novo coronavírus, que mais tarde recebeu o nome de SARS-CoV-2, e a doença foi denominada COVID-19.(1) Passados quatro meses, a doença já foi detectada em mais de 185 países, acometendo quase três milhões de pessoas, com mais de 200 mil vidas perdidas.(2)
A escalada exponencial de casos levou governantes ao redor do mundo a adotar políticas restritivas de movimentação social com o objetivo de reduzir a taxa de transmissibilidade (R0) da doença, isto é, o número de contágios secundários a partir de um indivíduo infectado. O valor R0 de um agente infeccioso depende das características da doença - período de início de transmissão em relação ao início de sintomas, duração da transmissibilidade e formas de transmissão - e, em doenças de transmissão por via respiratória, da densidade populacional e do comportamento cultural. Usando modelos matemáticos, estudos observaram a redução da R0 após o fechamento da cidade de Wuhan e a restrição da movimentação social.(3)
É importante ressaltar que o isolamento social visa a redução da transmissibilidade inter-humana com consequente achatamento da curva de casuística, porém, por si só, não impede a transmissão da doença em algum momento da vida enquanto houver a circulação do vírus na comunidade. Ainda assim, a medida de isolamento é importante para preparar os sistemas de saúde e permitir que esses prestem assistência suficiente e adequada aos enfermos. Modelos matemáticos desenhados para a Região Metropolitana de São Paulo usando um valor médio de R0 e a proporção de indivíduos hospitalizados em UTIs disponíveis na literatura até então estimaram que, nos primeiros de 30 dias após a confirmação do primeiro caso, haveria uma demanda de aproximadamente 5.300 leitos de UTI, 130% acima da capacidade real da região (estudo submetido à publicação). Dados similares foram observados em outros países, reforçando a importância do isolamento social para a redução da letalidade da doença.(4,5)
Visando ampliar a capacidade assistencial aos pacientes com COVID-19 no sistema público, diversas medidas foram tomadas pelos governantes de diferentes esferas, como aberturas de hospitais de campanha, ampliação da capacidade de leitos de UTI e parcerias com hospitais privados. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - um hospital de alta complexidade e o maior hospital público da América Latina - tornou-se um dos hospitais de referência para o atendimento de pacientes graves com COVID-19, destinando seu maior instituto, o Instituto Central, com capacidade de 900 leitos, ao atendimento exclusivo desses pacientes. A capacidade de leitos de UTI foi dobrada, passando a 200.
Essa alta demanda de leitos hospitalares decorre da diferença da COVID-19 de outras doenças respiratórias virais agudas. Enquanto a infecção por influenza A(H1N1)pdm09 possui curso evolutivo curto, com alguns pacientes necessitando de internação nos primeiros dias da doença e com tempo relativamente curto de hospitalização,(6,7) pacientes infectados por SARS-CoV-2 apresentam deterioração clínica mais tardia e tempo de permanência hospitalar mais prolongado.(8,9) Essas características provocam a necessidade de maior tempo de monitorização ambulatorial - especialmente entre os pacientes dos grupos de risco - e menor rotatividade de leitos hospitalares. Esses fatores podem contribuir para maior letalidade devido à falta de suporte hospitalar. Além disso, outros aspectos clínicos da COVID-19 também diferem dos de outras infecções respiratórias virais. Chamam a atenção a baixa frequência de sintomas respiratórios altos, o tempo prolongado de febre e mialgia, assim como a alta frequência de anosmia e/ou ageusia.(10,11)
Apesar dessas diferenças clínicas, a confirmação etiológica de SARS-CoV-2 depende de técnicas de biologia molecular, com sensibilidade variável de acordo com o momento da coleta e o material biológico analisado.(12) Um estudo de Wang et al. observou uma sensibilidade de apenas 32% em swab de orofaringe e de 63% em swab de nasofaringe, amostras geralmente obtidas para confirmação diagnóstica.(13) Além disso, o desempenho dos testes sorológicos também varia de acordo com a gravidade da doença e o momento da coleta, tornando seu uso limitado no momento de internação hospitalar.(14) Diante desse cenário e somando-se o risco de exposição dos profissionais de saúde, diversas recomendações surgiram rapidamente na literatura médica em relação ao auxílio no diagnóstico, terapias de suporte (especialmente no contexto de terapia intensiva) e terapias antivirais específicas.
Entre as ferramentas de auxílio no diagnóstico, o padrão de alteração pulmonar na TC de tórax, com achados de infiltrado difuso de padrão em vidro fosco, foi a primeira estratégia adotada. Entretanto, é importante lembrarmos que diversas outras condições podem levar a esse achado radiológico, incluindo outras infecções pulmonares virais, como influenza.(15) Outra recomendação de diversas sociedades médicas refere-se às estratégias de suporte na insuficiência respiratória aguda. A recomendação de intubação orotraqueal precoce visando a redução do risco de exposição dos profissionais da saúde foi amplamente divulgada. Entretanto, vale lembrar que essa medida pode levar à intubação desnecessária em pacientes com outros diagnósticos etiológicos; além disso, os pacientes são expostos aos riscos e complicações de sedação e ventilação mecânica prolongadas. Simultaneamente, estudos mais recentes mostraram que o uso de suportes ventilatórios não invasivos, como cateter nasal de alto fluxo e ventilação mecânica não invasiva, promove menores distâncias de propagação de partículas virais que aquelas com o uso de cateter nasal de oxigênio comum.(16,17)
Estratégias terapêuticas e antivirais também surgiram rapidamente na literatura, especialmente a transfusão de plasma de pacientes convalescidos, anticoagulação profilática e/ou plena e uso de medicamentos antivirais. Porém, nenhuma estratégia, até o momento da escrita deste manuscrito, tem evidência científica suficiente para ser recomendada na prática diária. É nesse aspecto que nós, médicos, precisamos ter cuidado com as nossas decisões, lembrando sempre dos riscos de complicações aos quais podemos submeter os nossos pacientes. Ressalta-se que o uso off-label de uma estratégia terapêutica é resguardado às situações de risco iminente de vida, e o paciente e/ou seus familiares precisam estar cientes da ausência de comprovação de eficácia. Ao mesmo tempo, cabe aos pesquisadores manter os critérios de rigor científico na elaboração e execução das pesquisas, assim como na divulgação dos resultados de estudos relacionados à COVID-19, evitando erros de interpretação da comunidade médica e da sociedade leiga.(18,19)
REFERÊNCIAS
1. Wang C, Horby PW, Hayden FG, Gao GF. A novel coronavirus outbreak of global health concern [published correction appears in Lancet. 2020 Jan 29]. Lancet. 2020;395(10223):470-473. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30185-9
2. Johns Hopkins University. Center for Systems Science and Engineering (CSSE) [homepage on the Internet]. Baltimore MD: CSSE; c2020 [cited 2020 Apr 26]. COVID-19 Dashboard. Available from: https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6
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5. Tuite AR, Fisman DN, Greer AL. Mathematical modelling of COVID-19 transmission and mitigation strategies in the population of Ontario, Canada [published online ahead of print, 2020 Apr 8]. CMAJ. 2020;cmaj.200476. https://doi.org/10.1503/cmaj.200476
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