AO EDITOR,Desde os primeiros relatos ocorridos em Wuhan, na China, ficou claro que a manifestação clínica mais grave da coronavirus disease (COVID-19), doença causada pelo novo coronavirus e identificada em 2019, é a insuficiência respiratória hipoxêmica.(1) Foi a alta incidência de casos de severe acute respiratory syndrome (SARS, síndrome respiratória aguda grave) ou de acute respiratory distress syndrome (ARDS, síndrome do desconforto respiratório agudo), em um curto período de tempo, em pacientes que haviam tido algum contato epidemiológico com o mesmo local (no caso, o mercado de frutos do mar de Wuhan) que suscitou a possibilidade de um quadro infeccioso altamente contagioso como agente causador da doença, o que viria a ser confirmado pouco tempo depois com a identificação do novo coronavírus denominado SARS-CoV-2.(2)
A gravidade da insuficiência respiratória causada, a alta capacidade de transmissão do vírus e o grande número de mortos decorrente do quadro respiratório de COVID-19 fizeram com que houvesse uma corrida a diferentes modalidades terapêuticas. A identificação do agente etiológico e de mecanismos fisiopatológicos da lesão causada pelo vírus no parênquima pulmonar fez com que houvesse uma divisão nas perspectivas terapêuticas: tratamentos que visam a redução da carga e replicação viral (remdesivir e uso de plasma de pacientes recuperados de COVID-19) e aqueles que visam reduzir a resposta inflamatória pulmonar ao SARS-CoV-2 (cloroquina, corticoides, tocilizumab [anti-IL-6], entre outros).(3) Todos esses tratamentos, no entanto, ainda carecem de comprovação de eficácia em ensaios clínicos controlados.
Mais recentemente, uma terceira linha de perspectiva de tratamento da COVID-19 foi aventada na literatura médica: o tratamento da patologia vascular pulmonar induzida pelo SARS-CoV-2. Alguns estudos de necropsia identificaram a presença de endotelite(4) e mesmo de trombose na microvasculatura pulmonar.(5) Elevações de dímero D correlacionaram-se com pior prognóstico nos pacientes com COVID-19,(6) demonstrando a relevância da patologia vascular no curso clínico da doença. Gattinoni et al.(7) demonstraram também que a complacência pulmonar nos casos de ARDS induzida por COVID-19 é relativamente preservada, frente à magnitude da hipoxemia encontrada. No entanto, a fração de shunt vascular encontrado nesses mesmos casos foi surpreendentemente elevada, diferentemente de outras causas de ARDS, sugerindo novamente a contribuição da doença vascular na gravidade da patologia. Torna-se tentador, neste cenário, considerar o tratamento da patologia vascular da COVID-19. Um estudo retrospectivo chinês demonstrou que é possível que a heparina possua um papel nesse contexto,(8) mas, novamente, o uso dessa modalidade terapêutica ainda carece de estudos prospectivos controlados.
A COVID-19 chegou ao Brasil em meados de março de 2020, e a experiência clínica com essa condição demonstrou a heterogeneidade de apresentações pulmonares dessa patologia.(9,10) Considerar o tratamento da patologia vascular em pacientes com predomínio do acometimento parenquimatoso pode ser inadequado, tanto na inclusão de pacientes para ensaios clínicos aleatorizados quanto para o manejo clínico. A individualização dos pacientes para inclusão em estudos prospectivos, no suporte clínico e na terapêutica específica pode ser fundamental para atingir o resultado esperado. A Figura 1 mostra TCs de tórax de dois pacientes. O paciente A apresenta grande hipoxemia sem alteração parenquimatosa que justifique a mesma, assim como elevação acentuada do dímero D, sugerindo a presença de doença vascular concomitante como etiologia básica da hipóxia. Seria adequado associar a esse caso terapias capazes de interferir no processo inflamatório parenquimatoso, sendo que o problema básico nessa situação parece ser vascular pulmonar? Tal paciente foi manejado com internação, suporte com oxigênio e dose profilática de heparina. Por outro lado, o paciente B apresentou alteração em grande superfície do seu parênquima pulmonar, sem hipoxemia ou elevação do dímero D. Nesse caso, o manejo clínico ocorreu com o paciente em domicílio. Se não há patologia vascular evidente, vale a pena considerar a anticoagulação? Ambos os pacientes evoluíram com boa resposta clínica em torno do décimo dia da terapêutica e encontram-se hoje clinicamente bem. Esses exemplos sugerem que há variações fenotípicas da COVID-19 que podem interferir no seu manejo clínico. No entanto, essa individualização de condutas a partir do fenótipo apresentado de COVID-19 (parenquimatoso ou vascular) ainda carece de evidências na literatura.
Como múltiplas vias fisiopatológicas estão envolvidas na COVID-19, o tratamento da mesma de forma indiscriminada e sem individualização pode resultar tanto em resultados negativos de estudos clínicos quanto em desfechos clínicos individuais insatisfatórios. Identificar adequadamente o mecanismo fisiopatológico de lesão pulmonar do paciente com COVID-19 pode se provar fundamental no seu adequado manejo clínico e na interpretação dos resultados dos ensaios clínicos atualmente em andamento. Vale a pena enfatizar, entretanto, que qualquer estratégia terapêutica para o tratamento de COVID-19, além de suporte ventilatório, requer a comprovação de sua eficácia e segurança, que só virão dos resultados dos ensaios clínicos prospectivos em andamento.
REFERÊNCIAS1. Wang D, Hu B, Hu C, Zhu F, Liu X, Zhang J, et al. Clinical Characteristics of 138 Hospitalized Patients With 2019 Novel Coronavirus-Infected Pneumonia in Wuhan, China [published online ahead of print, 2020 Feb 7]. JAMA. 2020;323(11):1061-1069. https://doi.org/10.1001/jama.2020.1585
2. Wölfel R, Corman VM, Guggemos W, Seilmaier M, Zange S, Müller MA, et al. Virological assessment of hospitalized patients with COVID-2019 [published online ahead of print, 2020 Apr 1]. Nature. 2020;10.1038/s41586-020-2196-x. https://doi.org/10.1038/s41586-020-2196-x
3. Md Insiat Islam Rabby. Current Drugs with Potential for Treatment of COVID-19: A Literature Review. J Pharm Pharm Sci. 2020;23(1):58-64. https://doi.org/10.18433/jpps31002
4. Henry BM, Vikse J, Benoit S, Favaloro EJ, Lippi G. Henry BM, Vikse J, Benoit S, Favaloro EJ, Lippi G. Hyperinflammation and derangement of renin-angiotensin-aldosterone system in COVID-19: A novel hypothesis for clinically suspected hypercoagulopathy and microvascular immunothrombosis [published online ahead of print, 2020 Apr 26]. Clin Chim Acta. 2020;507:167-173. https://doi.org/10.1016/j.cca.2020.04.027
5. Dolhnikoff M, Duarte-Neto AN, de Almeida Monteiro RA, Ferraz da Silva LF, Pierre de Oliveira E, Nascimento Saldiva PH, et al. Pathological evidence of pulmonary thrombotic phenomena in severe COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Apr 15]. J Thromb Haemost. 2020;10.1111/jth.14844. https://doi.org/10.1111/jth.14844
6. Zhang L, Yan X, Fan Q, Liu H, Liu X, Liu Z, et al. D-dimer levels on admission to predict in-hospital mortality in patients with Covid-19 [published online ahead of print, 2020 Apr 19]. J Thromb Haemost. 2020;10.1111/jth.14859. https://doi.org/10.1111/jth.14859
7. Gattinoni L, Coppola S, Cressoni M, Busana M, Rossi S, Chiumello D. COVID-19 Does Not Lead to a "Typical" Acute Respiratory Distress Syndrome. Am J Respir Crit Care Med. 2020;201(10):1299-1300. https://doi.org/10.1164/rccm.202003-0817LE
8. Tang N, Bai H, Chen X, Gong J, Li D, Sun Z. Anticoagulant treatment is associated with decreased mortality in severe coronavirus disease 2019 patients with coagulopathy. J Thromb Haemost. 2020;18(5):1094-1099. https://doi.org/10.1111/jth.14817
9. Araujo-Filho JAB, Sawamura MVY, Costa AN, Cerri GG, Nomura CH. COVID-19 pneumonia: what is the role of imaging in diagnosis?. J Bras Pneumol. 2020;46(2):e20200114. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200114
10. Chate RC, Fonseca EKUN, Passos RBD, Teles GBDS, Shoji H, Szarf G. Presentation of pulmonary infection on CT in COVID-19: initial experience in Brazil. J Bras Pneumol. 2020;46(2):e20200121. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200121