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Editorial

Pandemia por COVID-19 e ventilação mecânica: enfrentando o presente, desenhando o futuro

COVID-19 pandemic and mechanical ventilation: facing the present, designing the future

Marcelo Alcantara Holanda1,2, Bruno Valle Pinheiro3,4

A ventilação mecânica (VM) é fundamental na manutenção da vida em condições graves de insuficiência respiratória. Suas origens remontam ao século XVI, com a descrição da técnica por Vesalius, no livro "De Humani Corporis Fabrica". Ventiladores de pressão negativa foram desenvolvidos no final do século XIX, enquanto a VM invasiva, tal como a conhecemos, surgiu em resposta à pandemia de poliomielite em 1952 na Dinamarca. Naquela ocasião, o aneste-sista Bjorn Ibsen utilizou traqueostomia e ventilação com pressão positiva de forma manual em pacientes com formas graves da doença com paralisia muscular respiratória, reduzindo a letalidade dessa condição de 97% para 40%.(1,2) A VM passou a ser reconhecida como técni-ca salvadora de vidas e sua história confunde-se com a das UTIs. (1,2) Desde então, a VM evoluiu de um suporte voltado basicamente a normalizar as trocas gasosas para uma técnica capaz de fazê-lo, porém sem lesar os pulmões, comprometer a fisiologia cardiovascular e de outros órgãos ou promover disfunção diafragmática, assegurando a resolução da doença subjacente e uma boa interação paciente-ventilador, com a menor necessidade de sedação possível.(1) Após quase 70 anos, a VM se depara com o seu maior desafio, uma nova pande-mia, a COVID-19. Enquanto a poliomielite cursava com acidose respiratória por falência neu-romuscular, a pneumonia pelo novo conoravírus causa lesão grave do parênquima pulmonar em 10-20% dos casos, com hipoxemia intensa e muitas vezes refratária às intervenções habi-tuais.(3)

Poucos meses depois da descrição do primeiro caso na China, a COVID-19 tornou-se pandê-mica, com mais de 6,9 milhões de casos confirmados e 400.469 óbitos em 8 de junho de 2020.(4) Na mesma data, o Brasil já apresentava 645.771 casos notificados, com 35.026 óbitos, números que o colocam como o terceiro país com maior número de mortes.(4) Esses núme-ros, alcançados em tão pouco tempo, mostram o elevado grau de contagiosidade do vírus causador da doença, denominado SARS-CoV-2. As formas graves da doença ocorrem em uma fração pequena de pacientes mas perfazem um número absoluto expressivo, eventualmen-te capaz de causar o colapso dos sistemas de saúde. A limitação estrutural mais crítica é a falta de leitos de UTI e de ventiladores mecânicos, posicionado o suporte ventilatório no cerne do problema. Esse fato se associa às restrições ao uso de ventilação não invasiva e de cânula nasal de alto fluxo, pelo risco de dispersão de aerossóis no ambiente e de contágio da equipe multiprofissional ou de outros pacientes. O tempo do paciente com COVID-19 intubado em VM pode chegar de duas até quatro semanas de cuidados intensivos. Além disso, complica-ções, como pneumonia associada à VM, tromboembolismo pulmonar, assincronias de difícil resolução, delirium, entre outros, contribuem para o aumento da morbidade e mortalida-de.(3,5) Os desafios para o fornecimento seguro de VM incluem a manutenção do suprimen-to de insumos, como equipamentos de proteção individual, acessórios para a VM (por exem-plo, filtros e circuitos) e medicamentos para sedação, analgesia e bloqueio neuromuscular, assim como a necessidade de suporte de serviços de engenharia clínica.

Erros nos ajustes do ventilador mecânico podem causar graves iatrogenias e risco de morte, enquanto o seu uso apropriado reduz a mortalidade, a ocorrência de complicações, o número de dias de VM, o tempo de permanência em UTIs e os custos hospitalares.(6) Nas últimas décadas, o desenvolvimento tecnológico levou a melhorias significativas dos ventiladores mecânicos, com o surgimento de equipamentos microprocessados, com diferentes modos ventilatórios e funcionalidades avançadas, mas também com interfaces homem-máquina complicadas quanto à usabilidade.(7) Junto a esses avanços, houve uma limitação do proces-so de aprendizado e, portanto, do manejo desses aparelhos por estudantes, residentes e profissionais de saúde.(7,8) Para dar conta da pandemia foram criados milhares de novos leitos de UTI e adquiridos números similares de novos ventiladores por todo o país. A força de trabalho especializada para atuar nesse contexto é escassa. Novos profissionais têm sido chamados a atuar na linha de frente que não dispõem do conhecimento, treinamento e ex-periência necessários para o manejo dos diferentes tipos de ventiladores em pacientes com-plexos. É de se esperar que se sintam inseguros e com dificuldades em aplicar as melhores práticas baseadas em evidências e intervenções recomendadas em protocolos e diretrizes das principais sociedades médicas. O risco de desvios de práticas consolidadas é alto.(3,8)

O enfrentamento contra esse cenário de guerra se caracteriza por um conjunto de ações visando mitigar os riscos e reduzir a letalidade da doença. Essas ações incluem promover o acesso ao treinamento digital em VM em larga escala por meio de cursos e simuladores virtu-ais(9); viabilizar o acesso à telemedicina; apoiar o desenvolvimento e a fabricação de ventila-dores com tecnologia mais acessível, usabilidade adequada e não dependente de compo-nentes e insumos do mercado internacional; orquestrar esforços para restauração de mode-los antigos inoperantes e adaptação de aparelhos usados em anestesiologia ou de transpor-te; construir ambientes hospitalares seguros para o uso de ventilação não invasiva e cânula nasal de alto fluxo, em quartos isolados e, se possível, com pressão negativa; e buscar alter-nativas para o suporte ventilatório não invasivo com baixo risco de contaminação da equipe de saúde, reduzindo a pressão para a indicação da intubação traqueal como primeira opção em caso de falha da oxigenoterapia (Figura 1).(10) Agências de fomento à pesquisa, universidades, setores da indústria, sociedades médicas e outras entidades têm se unido em torno dessas ações, muitas vezes de forma solidária e altruísta, num esforço louvável.



O momento é histórico por marcar uma tomada de consciência e mudanças de paradigmas quanto ao papel do suporte ventilatório mecânico nos sistemas de saúde. Acessibilidade, expertise, tecnologia, inovação, usabilidade, treinamento, excelência, segurança, efetivida-de, baixo custo, equidade e universalidade são alguns dos conceitos que perpassam o papel da VM nas políticas de saúde em todo o mundo.(11,12) É certo que novas catástrofes e pan-demias nos atingirão e que a saúde de milhões, quiçá bilhões de pessoas, pode ser afetada de forma grave. Planos de contingência à atual e às futuras ameaças à saúde global, em espe-cial infecções e agravos respiratórios, devem nortear e viabilizar o acesso universal ao supor-te ventilatório seguro e de qualidade, mesmo em regiões com recursos financeiros limita-dos.(11,12) Os desafios estão postos; cabe a nós enfrentá-los no presente ao mesmo tempo que construímos as bases de um futuro promissor para a VM no Brasil e no mundo.

REFERÊNCIAS

1. Slutsky AS. History of Mechanical Ventilation. From Vesalius to Ventilator-induced Lung Injury. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(10):1106-1115. https://doi.org/10.1164/rccm.201503-0421PP
2. LASSEN HC. A preliminary report on the 1952 epidemic of poliomyelitis in Copenha-gen with special reference to the treatment of acute respiratory insufficiency. Lancet. 1953;1(6749):37-41. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(53)92530-6
3. Berlin DA, Gulick RM, Martinez FJ. Severe Covid-19 [published online ahead of print, 2020 May 15]. N Engl J Med. 2020;10.1056/NEJMcp2009575. https://doi.org/10.1056/NEJMcp2009575
4. World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneve: World Health Or-ganization; [cited 2020 Jun 8]. Coronavirus disease (COVID-19) pandemic [about 9 screens]. Available from: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019?gclid=Cj0KCQjww_f2BRC-ARIs-AP3zarGPN3jVnt36qWvYS5TZ54HLi_8KsVwBpxNq4sEQsXCJ6_Vb7b_zsRoaArIBEALw_wcB
5. Richardson S, Hirsch JS, Narasimhan M, Crawford JM, McGinn T, Davidson KW, et al. Presenting Characteristics, Comorbidities, and Outcomes Among 5700 Patients Hospitalized With COVID-19 in the New York City Area [published correction appears in doi: 10.1001/jama.2020.7681]. JAMA. 2020;323(20):2052-2059. https://doi.org/10.1001/jama.2020.7681
6. Mechanical Ventilation Committee of the Brazilian Intensive Care Medicine Associa-tion; Commission of Intensive Therapy of the Brazilian Thoracic Society. Brazilian recommen-dations of mechanical ventilation 2013. Part I. J Bras Pneumol. 2014;40(4):327-363. https://doi.org/10.1590/S1806-37132014000400002
7. Kacmarek RM. The mechanical ventilator: past, present, and future. Respir Care. 2011;56(8):1170-1180. https://doi.org/10.4187/respcare.01420
8. Tallo FS, de Campos Vieira Abib S, de Andrade Negri AJ, Cesar P Filho, Lopes RD, Lo-pes AC. Evaluation of self-perception of mechanical ventilation knowledge among Brazilian final-year medical students, residents and emergency physicians. Clinics (Sao Paulo). 2017;72(2):65-70. https://doi.org/10.6061/clinics/2017(02)01
9. Lino JA, Gomes GC, Sousa ND, Carvalho AK, Diniz ME, Viana Junior AB, et al. A Critical Review of Mechanical Ventilation Virtual Simulators: Is It Time to Use Them?. JMIR Med Educ. 2016;2(1):e8. https://doi.org/10.2196/mededu.5350
10. Patel BK, Kress JP, Hall JB. Alternatives to Invasive Ventilation in the COVID-19 Pan-demic [published online ahead of print, 2020 Jun 4]. JAMA. 2020;10.1001/jama.2020.9611. https://doi.org/10.1001/jama.2020.9611
11. Guérin C, Lévy P. Easier access to mechanical ventilation worldwide: an urgent need for low income countries, especially in face of the growing COVID-19 crisis. Eur Respir J. 2020;55(6):2001271. https://doi.org/10.1183/13993003.01271-2020
12. World Health Organization. Medical devices: managing the mismatch: an outcome of the priority medical devices project. Geneva: World Health Organization; 2010.

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