É indiscutível a importância das medidas de espirometria, não apenas no acompanhamento individual e longitudinal de pacientes, mas também na avaliação populacional, com repercussões até mesmo em medidas de saúde pública e coletiva.(1) Acresce-se ainda que, com os enormes avanços da medicina e a interface das mais diversas subespecialidades pediátricas, os dados obtidos nos laboratórios de função pulmonar podem auxiliar no standard of care desses pacientes, onde, sem dúvida, a espirometria é o exame mais popular, de mais fácil acesso e exequibilidade a partir da fase pré-escolar. Para tanto, é importantíssimo termos os valores de referência da população sadia para permitir a distinção entre saúde e doença, mensurar o impacto das doenças na função pulmonar, diagnosticar corretamente as patologias e maximizar o cuidado com o paciente que tem uma doença pulmonar crônica, além de acompanhar o crescimento e o desenvolvimento pulmonar e das vias aéreas em crianças sadias ou naquelas com diferentes patologias.(2)
Um laboratório de função pulmonar deve seguir rígidos critérios de qualidade para garantir que os valores funcionais obtidos sejam precisos.(1) Para tanto, há uma ferramenta indispensável que assegura se os dados obtidos são normais ou não: os valores de referência utilizados. O conhecimento da distribuição da curva de normalidade é um conceito amplamente arraigado na rotina e na prática da pediatria e puericultura, e sabemos que a elaboração de modelos de referência ou parâmetros de normalidade exige um trabalho hercúleo, sendo necessária a coleta de dados de uma amostra representativa da população considerada e que garanta o menor risco possível de viés de seleção com a exclusão de indivíduos que possam não representar de fato a população saudável.
Com o aprimoramento da investigação funcional respiratória em pediatria ampliou-se a execução da espirometria para a faixa etária do pré-escolar, seguindo critérios internacionalmente estabelecidos.(3) Com isso, passamos a necessitar também de equações de referência que incluíssem crianças brasileiras na faixa etária de 3 até 6 anos incompletos. Cabe destacar que a taxa de sucesso da espirometria em pré-escolares de 3-5 anos supera os 70-80% quando realizada por profissionais qualificados e com critérios de aceitabilidade adequados para essa população.(4) Isso demonstra a exequibilidade do teste e reforça a importância de o realizarmos mais frequentemente, bem como é importante termos equações de predição específicas para essa faixa etária para evitarmos vieses, tal como o da simples extrapolação de valores de referência de crianças maiores para essa faixa etária.
Após a publicação em 2012 da equação global multiétnica de Quanjer et al.(5) para diferentes faixas etárias, esses valores de referência passaram a ser utilizados nas mais diversas pesquisas e estudos na faixa etária pediátrica, pois ela abrange indivíduos dos 3 aos 95 anos. Entretanto, a depender das características das populações pediátricas, esses valores mostraram-se adequados em algumas populações específicas,(6,7) mas não tão assertivos em outras populações em outras regiões.(8,9)
Sabemos que o ideal é que cada população tenha seu próprio estudo com padrões de normalidade locais, já que há grandes interferências de fatores para a obtenção de critérios de normalidade, como idade, sexo biológico, etnia e tamanho de tórax, que nem sempre são bem representados pela estatura quando essa é usada como forma de extrapolar o tamanho da caixa torácica, pois, a depender das diversas compleições corporais, a relação tórax/estatura pode variar muito.(10,11)
As características inerentes à população brasileira no que concerne à enorme pluralidade e grande miscigenação das diversas etnias tornam o desafio de realizar uma equação de predição nacional ainda mais complexo. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2016,(12) cerca da metade da população brasileira é negra ou parda. No presente número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, o estudo de Jones et al.(13) permite levar em consideração as características étnicas da imensa maioria da população brasileira pediátrica entre 3 e 12 anos, uma vez que cobre os valores preditos para indivíduos de etnia branca, negra ou parda. A amostra ampla e representativa totalizou 1.990 sujeitos de diversas regiões brasileiras; entretanto, como houve predominância de sujeitos das regiões sul e sudeste, houve uma inclusão proporcional de um maior número de indivíduos brancos. Sabemos que os limites de normalidade da função pulmonar têm grande variabilidade entre os indivíduos, e as equações mais modernas permitem a obtenção de valores como o limite inferior da normalidade e a expressão dos resultados em escores Z, fornecendo dados mais robustos e facilitando o seguimento longitudinal do indivíduo durante seu diagnóstico, tratamento e monitoramento, assim como a avaliação de grandes grupos como em estudos populacionais. Além disso, o estudo de Jones et al.(13) teve um controle de qualidade rigoroso tanto na obtenção dos dados como nas aferições realizadas e com o preciosismo da revisão de todas as curvas espirométricas por dois pesquisadores antes de sua inclusão no banco de dados. Acresce-se a isso a exclusão dos dados espirométricos que tinham acima de quatro desvios-padrão. Por fim, o estudo mostra que os valores preditos atualmente utilizados para a população pediátrica brasileira(1) subestimam os valores de CVF e VEF1, bem como equações globais,(5) especialmente para a população negra. Isso destaca a importância de empregarmos esses novos valores preditos por Jones et al.(13) doravante, mas sem nos esquecermos que essas equações devem ser revisitadas e atualizadas periodicamente. Recebemos com grande satisfação o trabalho de Jones et al.(13) e acreditamos que brevemente essas equações de predição devam ser rotineiramente incorporadas nos laudos espirométricos de crianças brasileiras de 3 a 12 anos.
REFERÊNCIAS
1. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Diretrizes para testes de função pulmonar. J Pneumol. 2002;28(Suppl 3):S1-S82.
2. Gray D, Zar HJ. Lung Function in Children from Sub-Saharan Africa and the Global Lung Initiative 2012 Reference Equations. Am J Respir Crit Care Med. 2017;195(2):157-158. https://doi.org/10.1164/rccm.201609-1800ED
3. Beydon N, Davis SD, Lombardi E, Allen JL, Arets HG, Aurora P, et al. An official American Thoracic Society/European Respiratory Society statement: pulmonary function testing in preschool children. Am J Respir Crit Care Med. 2007;175(12):1304-1345. https://doi.org/10.1164/rccm.200605-642ST
4. Veras TN, Pinto LA. Feasibility of spirometry in preschool children. J Bras Pneumol. 2011;37(1):69-74. https://doi.org/10.1590/S1806-37132011000100011
5. Quanjer PH, Stanojevic S, Cole TJ, Baur X, Hall GL, Culver BH, et al. Multi-ethnic reference values for spirometry for the 3-95-yr age range: the global lung function 2012 equations. Eur Respir J. 2012;40(6):1324-1343. https://doi.org/10.1183/09031936.00080312
6. Madanhire T, Ferrand RA, Attia EF, Sibanda EN, Rusakaniko S, Rehman AM. Validation of the global lung initiative 2012 multi-ethnic spirometric reference equations in healthy urban Zimbabwean 7-13 year-old school children: a cross-sectional observational study. BMC Pulm Med. 2020;20(1):56. https://doi.org/10.1186/s12890-020-1091-4
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8. Hüls A, Krämer U, Gappa M, Müller-Brandes C, Schikowski T, von Berg A, et al. Age Dependency of GLI Reference Values Compared with Paediatric Lung Function Data in Two German Studies (GINIplus and LUNOKID). PLoS One. 2016;11(7):e0159678. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0159678
9. Arigliani M, Canciani MC, Mottini G, Altomare M, Magnolato A, Loa Clemente SV, et al. Evaluation of the Global Lung Initiative 2012 Reference Values for Spirometry in African Children. Am J Respir Crit Care Med. 2017;195(2):229-236. https://doi.org/10.1164/rccm.201604-0693OC
10. Takase M, Sakata H, Shikada M, Tatara K, Fukushima T, Miyakawa T. Development of reference equations for spirometry in Japanese children aged 6-18 years. Pediatr Pulmonol. 2013;48(1):35-44. https://doi.org/10.1002/ppul.22536
11. Haynes JM, Kaminsky DA, Stanojevic S, Ruppel GL. Pulmonary Function Reference Equations: A Brief History to Explain All the Confusion [published online ahead of print, 2020 Mar 10]. Respir Care. 2020;respcare.07188. https://doi.org/10.4187/respcare.07188
12. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Coordenação de Trabalho e Rendimento [homepage on the Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; [cited 2018 Sep 27]. Pesquisa nacional por amostra de domicílios 2016. Available from: http://www.ibge.gov.br
13. Jones MH, Vidal PCV, Lanza FC, Silva DCFMF, Pitrez PM, Olmedo APBF, et al. Refer-ence values for spirometry in Brazilian children. J Bras Pneumol. 2020;46(3):e20190138. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20190138